Não é segredo nenhum a minha admiração pelo Laerte. Pois bem, li hoje algo que me deixou muito satisfeito. As tirinhas que vêm sendo publicadas aos sábados na Folha viraram um livro, chamado "Laertevisão", e além disso, está sendo lançada ainda a saga completa dos Piratas em três volumes, o primeiro sai nessa semana.
Abaixo, uma longa entrevista publicada hoje, onde o Laerte faz uma auto análise e se diz em crise. E uma foto, que mostra que o cartunista tá um pouquinho mais velho do que eu pensava...não importa, o cara continua genial como sempre.
Um dia ainda sai TUDO compilado...mas tá valendo, o Laerte nunca nos deixou na mão, vira e mexe ele solta alguma coisa.
Ah, mais uma...tá pra sair um filme dos Piratas!
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Entrevista
Folha- Além da reedição dos "Piratas", você está lançando "Laertevisão", que é seu trabalho mais atual.
Laerte- Eu fazia comentários sobre a TV e isso estava chegando no meu limite, então resolvi dar uma guinada há cerca de um ano e partir para elementos biográficos, coisas de memória.
Folha - Isso já pega sua fase mais atual.
Laerte- É, porque eu perdi o jeito de um monte de coisas, de modos de fazer humor que eu tinha, de usar personagens, usar a engenharia de piadas que eu sempre usei. Tudo isso ficou esquisito, então passei a outros procedimentos. Em busca disso, passei dois anos fazendo uma tira absolutamente sem norte, sem nada que orientasse.
Folha- E por que você perdeu o jeito, como diz?
Laerte- Cansou, por um monte de motivos, ficou... [pausa] Bom, é uma explicação que tem de passar pela morte do meu filho também, isso foi um divisor. Eu passei a ver e pensar as coisas de um outro jeito, uma série de procedimentos começou a perder o sentido ou ganhar outros. Muito do que consistia a natureza das minhas tiras era um tipo de prestação de contas, era como se eu as estivesse fazendo para algum juiz, era um modo extenuante de trabalhar. Passei também a não achar mais graça no tipo de humor que eu fazia, não me identificava mais com aquele modo de fazer, então resolvi deixar de lado os personagens.
Folha - Para sempre?
Laerte- Não, não quer dizer que eu os matei, só que fui atrás de outra coisa, fui buscar um modo de fazer que eu tinha aos 17 anos, algo bastante livre, indagativo, experimental, porra-louca. Fui atrás desse espírito.
Folha- Porque nessa fase você ainda não tinha o tal "juiz", é isso?
Laerte- Sim, claramente foi começar a trabalhar que desenvolveu isso. Quando eu comecei a desenhar não tinha muito claro que seria humorista, desenhista. Eu queria ser músico, jogador de futebol, fazer teatro, cinema, tudo isso de uma maneira muito aberta e sem expectativa. Eu tentei ir atrás disso, trabalhar a linguagem de tiras dentro de outro contexto, fazer pequenos contos, cada tira sendo uma peça autônoma. Abandonei padrões gráficos, procedimentos humorísticos que eu tinha e parti em busca de outras narrativas.
Folha- Virou uma prestação de contas para si mesmo?
Laerte- Não, a idéia é trabalhar sem esse tipo de expectativa, passar por cima desse hábito muito encruado. Depois de mais de 30 anos, esse modo de trabalhar vira um vício, assim como o modo de desenhar, o narigão, os olhos... O que quer dizer isso? Pra mim, não queria dizer mais nada.
Folha- Tornou-se mais fácil, então, criar as tiras?
Laerte- Não, não facilitou. Abriu possibilidades, mas é muito mais trabalhoso, mais complicado. Eu demorava mais para fazer as tirinhas. Aí, no fim do ano passado, eu cansei, fiquei sem pé novamente e passei a republicar o material do Classifolha, os cartuns livres, achei que dava para tirar um ano sabático. Não que isso seja livre de trabalho, eu pego as tiras e reorganizo num tamanho diferente, o que às vezes implica em construções diferentes.
Folha- E por que esse novo estalo?
Laerte- Porque até essa linguagem nova, indagativa, de pesquisa, chegou a um ponto em que entrei numa crise, não sabia bem o que fazer. A isso soma-se meu acerto com a editora Desiderata para produzir uma história longa, de 96 páginas, e inédita. Passei seis meses fazendo um roteiro e cheguei à conclusão que ele não funcionava, então voltei à estaca zero, vamos ver se um dia isso frutifica. Estou começando novamente o roteirão.
Folha- Em que fase você está atualmente?
Laerte- Estou "Laerte em crise". Mas não sei se é algo muito fim do mundo, é um momento. Estou trabalhando nesse roteiro, acho que o resultado dele vai ser informativo para mim, vou ter mais dados. Talvez eu volte a fazer as tiras como eu fazia, dentro do conceito aberto de pequenos contos.
Folha- Você já teve uma crise anterior, quando largou o casamento, o Partido Comunista e o emprego formal e foi fazer quadrinhos. Elas se assemelham?
Laerte- Sim. Na verdade, um pouco antes do acidente com meu filho eu já estava mudando de rumo, já estava apontando isso, o cansaço com os personagens, com o humor, o esgotamento de uma linguagem e o problema, fazer o que agora? Eu não queria parar de fazer [as tiras], acho que dá para ter uma proposta, mas é um parto. Nesses momentos é muito legal estar num jornal como a Folha, dois outros deixaram de publicar a minha tira porque ela ficou estranha, não tiveram paciência.
Folha- Alguns leitores reclamaram.
Laerte- Teve desde a perplexidade positiva, uma curiosidade com vontade de ver mais, até gente que achou que não era mais a praia deles, além de leitores que se revoltaram contra algumas tiras específicas; os criadores de poodle, por exemplo, se revoltaram [em uma das tiras, Laerte fazia a cabeça do cão de bola de golfe].
Folha- Com essa mudança de foco você passou a se importar menos com o julgamento dos leitores?
Laerte- Sim, um pouco menos. Não tenho nenhum desprezo pelo leitor, mas passou a ter um peso diferente. É uma opinião, não quer ler, não quer renovar o contrato, tudo bem, aceito, isso acontece. A idéia é retomar essa linha de pesquisa porque alguns momentos desses dois anos que eu fiz essas tiras foram muitos legais, eu fiquei realmente satisfeito, que era algo que não acontecia há tempos, eu ficar satisfeito de verdade, não apenas achar que fiz uma boa piada. Essas tiras da TV, por exemplo, várias me satisfizeram bastante, o fato de serem sobre memórias ajuda bastante. Quando a gente passa dos 50 é meio natural começar a pensar em memórias, "como era quando eu tinha 13 anos?".
Folha- Com essas você continua?
Laerte- Sim, mas um dia minha memória acaba também.
Folha- Seus dois lançamentos e sua tira na Folha são relacionados ao seu passado. Você está em uma fase revisionista?
Laerte- É uma pergunta capciosa. Alguém que produz um livro de memórias não está fazendo uma coisa passadista, está usando como matéria-prima o que ele tem de experiência de vida, mas não está produzindo uma obra passadista. Mas eu acho que é verdade sim, não sei muito falar de projetos futuros cheios de energia. Tem o longa-metragem, por exemplo, que é dos Piratas [dirigido por Otto Guerra, que também fez "Wood & Stock", de Angeli].
Folha- Qual seu envolvimento?
Laerte- É grande, eu fiz o argumento e estou trabalhando no roteiro com um roteirista. Entrou o Tomas Créus, que fez um primeiro e segundo tratamentos do roteiro, e agora vai entrar o Gilmar Rodrigues, com quem vou continuar trabalhando, vamos começar a fazer desenhos de produção, cenários, vou meter a mão. Não tenho muito tempo nem energia, e moro aqui em São Paulo [a produção está sediada em Porto Alegre], mas vou mandar bastante coisa de fotos e desenhos que podem ajudar. A concepção dos Piratas era bastante livre, mas, de alguma forma, estava ligada ao que era a Marginal Tietê nos anos 80, e o cenário mudou bastante, tem muito mais coisa que eu gostaria que entrasse no filme.
Folha- E o roteiro é sobre o quê?
Laerte- É uma história nova, nunca foi publicada, algo que eu queria fazer em tiras continuadas, ensaiei esse começo. Nela, os Piratas ficam de posse de um documento assinado há 400 anos entre o dono do terreno onde fica São Paulo e uns bandeirantes, que alugam a área por todo esse tempo. Quando o contrato acaba, a cidade precisa ser devolvida aos herdeiros do dono, que são os Piratas. Tem um monte de coisas, teste de DNA, aspectos jurídicos, além de aventuras violentíssimas.
Folha- E você pretende colocar outros personagens?
Laerte- Não, acho que vão ser só eles. Talvez o Hugo entrasse, não tenho certeza se, no último tratamento do roteiro, ele ficou.
Folha- Você assistiu a "Wood & Stock"?
Laerte- Sim, achei muito legal. Do meu ponto de vista, me beneficia muito, porque o Otto aprendeu muito fazendo o "Wood & Stock" e está mais bala para fazer meu filme.
Folha - Os Piratas são seus personagens mais populares, não?
Laerte- Sim, acho que são os mais claros, tem mais peso, são mais específicos. São um achado muito bom, estavam prontos enquanto personagens, são auto-explicativos, misturam um fenômeno histórico que foi a pirataria com a visão romântica deste fato histórico, que foi construída depois, no século 19.
Folha- Você fez pesquisa para chegar neles?
Laerte- Sim, eu gosto do assunto. E os personagens se encaixam perfeitamente numa história crítica urbana brasileira atual. Todo dia vemos exemplos de como nós, enquanto cultura, somos flexíveis ao ponto da pirataria em relação a regras, normas. A pirataria é algo muito compreensível para qualquer um no Brasil.
Folha- E os livros que estão saindo agora são reedições das histórias dos Piratas?
*Laerte- Sim, das histórias, não das tiras. Algumas tiras foram usadas para fazer uma pontuação na feitura dos três volumes, mas a obra são as histórias, que saíram originalmente na "Chiclete com Banana" [e depois em revista própria, homônima].
Folha- No editorial da "Piratas" nº 1, em 1990, você perguntava qual era o plano geral do povo brasileiro. Você acha que já temos um?
Laerte- Naquele tempo eu tinha algum tipo de opinião nessa área, hoje eu tenho bem menos. Acho que é um autodesencanto, meus pontos de vista vão se comprovando errados à medida que o tempo passa. Já fui do Partido Comunista e tinha um código muito nítido de concepções, mas, com o tempo, fui perceber que eu não acreditava nisso ou não entendia direito o que era aquele negócio. Fui largando coisas e minhas percepções estão cada vez mais líquidas. Não tenho mais uma opinião sobre o povo brasileiro.
Folha- E sobre o presidente Lula, que você conheceu na época em que trabalhava com os sindicatos?
Laerte- Eu acho que ele é um cara legal. Não sei se é um bom presidente, o governo dele é
bastante estranho, a diferença entre as coisas em que ele um dia acreditou e afirmou e o que ele pratica hoje enquanto presidente é bastante grande. Um dos problemas sérios do Lula foi que o partido [PT] que todos achávamos que existia junto a ele, não existia. Mas eu o conheço, votei nele e ainda o acho uma pessoa muito interessante, perseverante. Mas político é político, é outra estrada.
Folha - Num cartum de "Laertevisão" você diz que foi um adolescente "parnasiano". Que tipo de adulto é hoje?
Laerte- Não sei te dizer. Acho que sou um adulto contemporizador, que põe panos quentes.
Folha- Você foi quase um coroinha quando criança e depois largou a religião. Mais tarde, transformou Deus em personagem. Qual sua relação com Deus hoje em dia?
Laerte- Eu gostava das tirinhas de Deus, mas elas eram atéias. Não fiz as tiras para discutir religião, acho um tema empolgante, mas gosto de tratá-lo fora da fé. Gosto da mitologia que as religiões propõem, acho um modo muito criativo de ver a vida, não quero discutir se aquilo é mentira ou verdade, se estão enganando o povo ou não. De certa forma, quando eu faço o personagem Deus, estou me colocando ali. Assim como o Deus do Allan Sieber é ele também, um sujeito com aquele nível de aguerrimento, bravo.
Folha- Falando em Sieber, uma boa parte da geração dele e outros mais antigos enfatizam a dureza da profissão de cartunista, a pobreza. Muitos tiveram origens humildes, enquanto você veio de uma família de classe média alta. Isso fez diferença na sua obra?
Laerte- Acho que sim. Sem fazer muita sociologia sobre a altura da classe média, a gente vivia bem, sempre tivemos carro, bife na mesa, essas coisas. Algumas vezes ficamos duros, mas era algo que passav
a. Eu nunca precisei trabalhar e sempre tive liberdade total para escolher o caminho que fosse. Mas muitos dos cartunistas que eu conheço tiveram problemas de sobrevivên
cia. O Angeli, por exemplo, foi trabalhar, foi office-boy, era um menino que trabalhava e foi para a via do cartum com uma gana diferente da minha, era mais punk, um cara da classe operária. Eu fui porque gostava da coisa, não queria ser um diletante, mas minha posição sempre foi muito mais cômoda.
Folha- E como você vê a profissão de cartunista hoje em dia?
Laerte- Está mais difícil, porque o preço caiu muito. O que se pagava pelo trabalho de humorismo gráfico na década de 1970 era claramente superior, assim como o espaço que essas linguagens ocupavam dentro dos veículos de mídia. Por exemplo, a "Playboy" era uma
maravilha para ilustradores, hoje não dá mais para contar com ela. Por outro lado, existem muito mais publicações, então pode-se dizer que o campo abriu bastante. Fora isso, os avanços tecnológicos, como programas de animação, colocaram linguagens que eram só sonhos, hoje são concretas. É possíve
l uma pessoa como Sieber fazer um filme quase sozinho, um grupo pequeno de pessoas pode se desincumbir de um filme com uma facilidade que era impensável. Mas ainda é difícil ganhar a vida.
Abaixo, uma longa entrevista publicada hoje, onde o Laerte faz uma auto análise e se diz em crise. E uma foto, que mostra que o cartunista tá um pouquinho mais velho do que eu pensava...não importa, o cara continua genial como sempre.
Um dia ainda sai TUDO compilado...mas tá valendo, o Laerte nunca nos deixou na mão, vira e mexe ele solta alguma coisa.
Ah, mais uma...tá pra sair um filme dos Piratas!
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Entrevista
Folha- Além da reedição dos "Piratas", você está lançando "Laertevisão", que é seu trabalho mais atual.
Laerte- Eu fazia comentários sobre a TV e isso estava chegando no meu limite, então resolvi dar uma guinada há cerca de um ano e partir para elementos biográficos, coisas de memória.
Folha - Isso já pega sua fase mais atual.
Laerte- É, porque eu perdi o jeito de um monte de coisas, de modos de fazer humor que eu tinha, de usar personagens, usar a engenharia de piadas que eu sempre usei. Tudo isso ficou esquisito, então passei a outros procedimentos. Em busca disso, passei dois anos fazendo uma tira absolutamente sem norte, sem nada que orientasse.
Folha- E por que você perdeu o jeito, como diz?
Laerte- Cansou, por um monte de motivos, ficou... [pausa] Bom, é uma explicação que tem de passar pela morte do meu filho também, isso foi um divisor. Eu passei a ver e pensar as coisas de um outro jeito, uma série de procedimentos começou a perder o sentido ou ganhar outros. Muito do que consistia a natureza das minhas tiras era um tipo de prestação de contas, era como se eu as estivesse fazendo para algum juiz, era um modo extenuante de trabalhar. Passei também a não achar mais graça no tipo de humor que eu fazia, não me identificava mais com aquele modo de fazer, então resolvi deixar de lado os personagens.
Folha - Para sempre?
Laerte- Não, não quer dizer que eu os matei, só que fui atrás de outra coisa, fui buscar um modo de fazer que eu tinha aos 17 anos, algo bastante livre, indagativo, experimental, porra-louca. Fui atrás desse espírito.
Folha- Porque nessa fase você ainda não tinha o tal "juiz", é isso?
Laerte- Sim, claramente foi começar a trabalhar que desenvolveu isso. Quando eu comecei a desenhar não tinha muito claro que seria humorista, desenhista. Eu queria ser músico, jogador de futebol, fazer teatro, cinema, tudo isso de uma maneira muito aberta e sem expectativa. Eu tentei ir atrás disso, trabalhar a linguagem de tiras dentro de outro contexto, fazer pequenos contos, cada tira sendo uma peça autônoma. Abandonei padrões gráficos, procedimentos humorísticos que eu tinha e parti em busca de outras narrativas.
Folha- Virou uma prestação de contas para si mesmo?
Laerte- Não, a idéia é trabalhar sem esse tipo de expectativa, passar por cima desse hábito muito encruado. Depois de mais de 30 anos, esse modo de trabalhar vira um vício, assim como o modo de desenhar, o narigão, os olhos... O que quer dizer isso? Pra mim, não queria dizer mais nada.
Folha- Tornou-se mais fácil, então, criar as tiras?
Laerte- Não, não facilitou. Abriu possibilidades, mas é muito mais trabalhoso, mais complicado. Eu demorava mais para fazer as tirinhas. Aí, no fim do ano passado, eu cansei, fiquei sem pé novamente e passei a republicar o material do Classifolha, os cartuns livres, achei que dava para tirar um ano sabático. Não que isso seja livre de trabalho, eu pego as tiras e reorganizo num tamanho diferente, o que às vezes implica em construções diferentes.
Folha- E por que esse novo estalo?
Laerte- Porque até essa linguagem nova, indagativa, de pesquisa, chegou a um ponto em que entrei numa crise, não sabia bem o que fazer. A isso soma-se meu acerto com a editora Desiderata para produzir uma história longa, de 96 páginas, e inédita. Passei seis meses fazendo um roteiro e cheguei à conclusão que ele não funcionava, então voltei à estaca zero, vamos ver se um dia isso frutifica. Estou começando novamente o roteirão.
Folha- Em que fase você está atualmente?
Laerte- Estou "Laerte em crise". Mas não sei se é algo muito fim do mundo, é um momento. Estou trabalhando nesse roteiro, acho que o resultado dele vai ser informativo para mim, vou ter mais dados. Talvez eu volte a fazer as tiras como eu fazia, dentro do conceito aberto de pequenos contos.
Folha- Você já teve uma crise anterior, quando largou o casamento, o Partido Comunista e o emprego formal e foi fazer quadrinhos. Elas se assemelham?
Laerte- Sim. Na verdade, um pouco antes do acidente com meu filho eu já estava mudando de rumo, já estava apontando isso, o cansaço com os personagens, com o humor, o esgotamento de uma linguagem e o problema, fazer o que agora? Eu não queria parar de fazer [as tiras], acho que dá para ter uma proposta, mas é um parto. Nesses momentos é muito legal estar num jornal como a Folha, dois outros deixaram de publicar a minha tira porque ela ficou estranha, não tiveram paciência.
Folha- Alguns leitores reclamaram.
Laerte- Teve desde a perplexidade positiva, uma curiosidade com vontade de ver mais, até gente que achou que não era mais a praia deles, além de leitores que se revoltaram contra algumas tiras específicas; os criadores de poodle, por exemplo, se revoltaram [em uma das tiras, Laerte fazia a cabeça do cão de bola de golfe].
Folha- Com essa mudança de foco você passou a se importar menos com o julgamento dos leitores?
Laerte- Sim, um pouco menos. Não tenho nenhum desprezo pelo leitor, mas passou a ter um peso diferente. É uma opinião, não quer ler, não quer renovar o contrato, tudo bem, aceito, isso acontece. A idéia é retomar essa linha de pesquisa porque alguns momentos desses dois anos que eu fiz essas tiras foram muitos legais, eu fiquei realmente satisfeito, que era algo que não acontecia há tempos, eu ficar satisfeito de verdade, não apenas achar que fiz uma boa piada. Essas tiras da TV, por exemplo, várias me satisfizeram bastante, o fato de serem sobre memórias ajuda bastante. Quando a gente passa dos 50 é meio natural começar a pensar em memórias, "como era quando eu tinha 13 anos?".
Folha- Com essas você continua?
Laerte- Sim, mas um dia minha memória acaba também.
Folha- Seus dois lançamentos e sua tira na Folha são relacionados ao seu passado. Você está em uma fase revisionista?
Laerte- É uma pergunta capciosa. Alguém que produz um livro de memórias não está fazendo uma coisa passadista, está usando como matéria-prima o que ele tem de experiência de vida, mas não está produzindo uma obra passadista. Mas eu acho que é verdade sim, não sei muito falar de projetos futuros cheios de energia. Tem o longa-metragem, por exemplo, que é dos Piratas [dirigido por Otto Guerra, que também fez "Wood & Stock", de Angeli].
Folha- Qual seu envolvimento?
Laerte- É grande, eu fiz o argumento e estou trabalhando no roteiro com um roteirista. Entrou o Tomas Créus, que fez um primeiro e segundo tratamentos do roteiro, e agora vai entrar o Gilmar Rodrigues, com quem vou continuar trabalhando, vamos começar a fazer desenhos de produção, cenários, vou meter a mão. Não tenho muito tempo nem energia, e moro aqui em São Paulo [a produção está sediada em Porto Alegre], mas vou mandar bastante coisa de fotos e desenhos que podem ajudar. A concepção dos Piratas era bastante livre, mas, de alguma forma, estava ligada ao que era a Marginal Tietê nos anos 80, e o cenário mudou bastante, tem muito mais coisa que eu gostaria que entrasse no filme.
Folha- E o roteiro é sobre o quê?
Laerte- É uma história nova, nunca foi publicada, algo que eu queria fazer em tiras continuadas, ensaiei esse começo. Nela, os Piratas ficam de posse de um documento assinado há 400 anos entre o dono do terreno onde fica São Paulo e uns bandeirantes, que alugam a área por todo esse tempo. Quando o contrato acaba, a cidade precisa ser devolvida aos herdeiros do dono, que são os Piratas. Tem um monte de coisas, teste de DNA, aspectos jurídicos, além de aventuras violentíssimas.
Folha- E você pretende colocar outros personagens?
Laerte- Não, acho que vão ser só eles. Talvez o Hugo entrasse, não tenho certeza se, no último tratamento do roteiro, ele ficou.
Folha- Você assistiu a "Wood & Stock"?
Laerte- Sim, achei muito legal. Do meu ponto de vista, me beneficia muito, porque o Otto aprendeu muito fazendo o "Wood & Stock" e está mais bala para fazer meu filme.
Folha - Os Piratas são seus personagens mais populares, não?
Laerte- Sim, acho que são os mais claros, tem mais peso, são mais específicos. São um achado muito bom, estavam prontos enquanto personagens, são auto-explicativos, misturam um fenômeno histórico que foi a pirataria com a visão romântica deste fato histórico, que foi construída depois, no século 19.
Folha- Você fez pesquisa para chegar neles?
Laerte- Sim, eu gosto do assunto. E os personagens se encaixam perfeitamente numa história crítica urbana brasileira atual. Todo dia vemos exemplos de como nós, enquanto cultura, somos flexíveis ao ponto da pirataria em relação a regras, normas. A pirataria é algo muito compreensível para qualquer um no Brasil.
Folha- E os livros que estão saindo agora são reedições das histórias dos Piratas?
*Laerte- Sim, das histórias, não das tiras. Algumas tiras foram usadas para fazer uma pontuação na feitura dos três volumes, mas a obra são as histórias, que saíram originalmente na "Chiclete com Banana" [e depois em revista própria, homônima].
Folha- No editorial da "Piratas" nº 1, em 1990, você perguntava qual era o plano geral do povo brasileiro. Você acha que já temos um?
Laerte- Naquele tempo eu tinha algum tipo de opinião nessa área, hoje eu tenho bem menos. Acho que é um autodesencanto, meus pontos de vista vão se comprovando errados à medida que o tempo passa. Já fui do Partido Comunista e tinha um código muito nítido de concepções, mas, com o tempo, fui perceber que eu não acreditava nisso ou não entendia direito o que era aquele negócio. Fui largando coisas e minhas percepções estão cada vez mais líquidas. Não tenho mais uma opinião sobre o povo brasileiro.
Folha- E sobre o presidente Lula, que você conheceu na época em que trabalhava com os sindicatos?
Laerte- Eu acho que ele é um cara legal. Não sei se é um bom presidente, o governo dele é
bastante estranho, a diferença entre as coisas em que ele um dia acreditou e afirmou e o que ele pratica hoje enquanto presidente é bastante grande. Um dos problemas sérios do Lula foi que o partido [PT] que todos achávamos que existia junto a ele, não existia. Mas eu o conheço, votei nele e ainda o acho uma pessoa muito interessante, perseverante. Mas político é político, é outra estrada.
Folha - Num cartum de "Laertevisão" você diz que foi um adolescente "parnasiano". Que tipo de adulto é hoje?
Laerte- Não sei te dizer. Acho que sou um adulto contemporizador, que põe panos quentes.
Folha- Você foi quase um coroinha quando criança e depois largou a religião. Mais tarde, transformou Deus em personagem. Qual sua relação com Deus hoje em dia?
Laerte- Eu gostava das tirinhas de Deus, mas elas eram atéias. Não fiz as tiras para discutir religião, acho um tema empolgante, mas gosto de tratá-lo fora da fé. Gosto da mitologia que as religiões propõem, acho um modo muito criativo de ver a vida, não quero discutir se aquilo é mentira ou verdade, se estão enganando o povo ou não. De certa forma, quando eu faço o personagem Deus, estou me colocando ali. Assim como o Deus do Allan Sieber é ele também, um sujeito com aquele nível de aguerrimento, bravo.
Folha- Falando em Sieber, uma boa parte da geração dele e outros mais antigos enfatizam a dureza da profissão de cartunista, a pobreza. Muitos tiveram origens humildes, enquanto você veio de uma família de classe média alta. Isso fez diferença na sua obra?
Laerte- Acho que sim. Sem fazer muita sociologia sobre a altura da classe média, a gente vivia bem, sempre tivemos carro, bife na mesa, essas coisas. Algumas vezes ficamos duros, mas era algo que passav
a. Eu nunca precisei trabalhar e sempre tive liberdade total para escolher o caminho que fosse. Mas muitos dos cartunistas que eu conheço tiveram problemas de sobrevivên
cia. O Angeli, por exemplo, foi trabalhar, foi office-boy, era um menino que trabalhava e foi para a via do cartum com uma gana diferente da minha, era mais punk, um cara da classe operária. Eu fui porque gostava da coisa, não queria ser um diletante, mas minha posição sempre foi muito mais cômoda.
Folha- E como você vê a profissão de cartunista hoje em dia?
Laerte- Está mais difícil, porque o preço caiu muito. O que se pagava pelo trabalho de humorismo gráfico na década de 1970 era claramente superior, assim como o espaço que essas linguagens ocupavam dentro dos veículos de mídia. Por exemplo, a "Playboy" era uma
maravilha para ilustradores, hoje não dá mais para contar com ela. Por outro lado, existem muito mais publicações, então pode-se dizer que o campo abriu bastante. Fora isso, os avanços tecnológicos, como programas de animação, colocaram linguagens que eram só sonhos, hoje são concretas. É possíve
l uma pessoa como Sieber fazer um filme quase sozinho, um grupo pequeno de pessoas pode se desincumbir de um filme com uma facilidade que era impensável. Mas ainda é difícil ganhar a vida.