quinta-feira, 25 de setembro de 2008

Antiamericanismo e a lei do WAR (sim, o da Grow)


Antiamericanismo é um preconceito como qualquer outro, só que está no seu auge. Em outros tempos, era natural pensar um monte de bobagens que ninguém questionava...era natural escravizar negros, natural que mulheres servissem de mesinha de centro, natural que homossexualismo fosse visto como doença.
Creio que o antiamericanismo é um sentimento provocado simplesmente pelo fato de que eles estão por cima. Proponho a reflexão sobre alguns temas:
“Se o Brasil fosse a maior economia do mundo, seríamos melhores para o mundo”
Será? O que indica que sim? O fato de que somos excelentes vizinhos para os hermanos latinos? Somos mesmo? Ao que me parece, o Brasil é visto pelos vizinhos como um país arrogante e imperialista...e isso muito antes de Hugo Chavéz, Evo Morales e Rafael Correa. Taí o Paraguai querendo renegociar Itaipu, a Argentina atravancando Doha...o que esses caras engolem, engolem porque podem ainda menos que a gente.
“Americanos são burros. Acham que Buenos Aires é a capital do Brasil”
Pois é, alguns muitos acham isso mesmo. E a gente sabe que Washington é a capital deles. Pergunto: alguém acha que notícias de Brasília são destaque nos EUA? Qual será a diferença do número de vezes que ouvimos falar em Washington e eles em Brasília? De qualquer forma, pense em um país que ocupe uma posição mais parecida com a nossa, ou seja, de menor destaque no cenário mundial:
1) Quantos brasileiros sabem qual é a capital da Austrália? Tenho certeza que de muita gente não tem a menor idéia, e de que muita gente acha que é Sidney. A Austrália é um país grandão no hemisfério sul.
2) Quantos brasileiros sabem qualquer coisa sobre a Índia? Um país grande, de população enorme e com uma economia mais ou menos do tamanho da nossa? Sabem qual é a capital?
Enfim, eu poderia passar o texto todo dando exemplos desse tipo. Os fatos são que nos EUA há menos analfabetos, o sistema público de educação é muito melhor (talvez pior que as melhores escolas particulares do Brasil), o ensino superior é MUITO melhor que o nosso, o nível de consciência política é muito maior que o nosso – mesmo entre os conservadores)...porque achar que o americano médio sabe menos que o brasileiro médio?
“A cultura americana é uma merda”
Discordo. Na minha opinião, na cultura americana tem muita merda. E tem muita coisa boa. Fazem música muito bem, cinema muito bem, quadrinhos muito bem, teatro muito bem, musicais como ninguém...
“ah, mas o cinema europeu é muito melhor”
Mas é menos massificado. O que a gente vê por aqui certamente é o filé mignon da produção européia...no seguinte sentido: para um filme europeu viajar o mundo, tem que ter algum sucesso por lá. Pode ser que a qualidade média seja melhor, mas por outro lado, temos que pensar no tamanho de Hollywood...é um lugar onde qualquer idiota com qualquer idéia e qualquer orçamento produz um filme. Se pudéssemos escolher os 20 melhores filmes americanos de cada ano talvez a impressão fosse outra.
“mas o cinema brasileiro é muito melhor”
É?
O que eu quero dizer com tudo isso: acho que esse sentimento de antiamericanismo, no fundo, esconde uma certa inveja. É como no WAR, aquele jogo da Grow...o cara que ta ganhando, de repente ta tomando tiro de tudo quanto é lado, e é um dos nossos, é amigo...quem ta ganhando não fez nada de mais, a não ser ter alguma sorte nos dados ou nos territórios de saída (e claro, alguma noção de estratégia).
Quem é rico no Brasil gosta de ostentar: carrões, jóias, roupas, penteados, cirurgias plásticas...e exatamente igual! Mesmo a nossa classe média tem um bom tanto disso...em cidades ricas e novas então...nem se fala!!
Isso não exime os EUA das críticas habituais, o governo é nefasto, as políticas internacionais são horríveis...mas o americano não tem culpa de ser alienado, da mesma forma que os meninos não tem culpa pelo crack que fumam. É uma questão de como a conjuntura das coisas se apresenta. Acontece que a crítica aos EUA tem proporções maiores porque eles SÃO maiores. Um peido do Bush faz um buraco maior na camada de ozônio que o do Lula, simples assim.
Enfim, não se trata de uma defesa dos EUA, sai de retro!!! É só uma reflexão sobre a hipocrisia de quem critica tudo aquilo que gosta pelo simples fato de que os caras estão melhor que a gente em praticamente tudo. Só isso.
Dá pra escrever um texto muito parecido sobre a birra Brasil x Argentina.
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calma, nada acabou

A atual conjuntura política norte-americana e a crise financeira atual me levaram a pensar em uma série de coisas. Este é um texto despretensioso, que me acusem caso eu escreva muita besteira por aqui.
A crise que vivemos é financeira, pelo menos até aqui. Crise financeira não é exatamente uma crise econômica, é uma crise do sistema capitalista financeiro – leia-se crise das bolsas de valores, crise de especuladores. Obviamente, uma crise financeira pode levar o mundo a uma crise econômica, uma vez que a economia mundial hoje é, em grande parte, sustentada em papéis. Alguns com lastro na economia real, outros com valores inflacionados ou deflacionados pela especulação dos investidores globais.
A economia dos Estados Unidos é, em grande parte, sustentada no mundo abstrato das finanças. As linhas de produção estão fora do país, muitas das empresas que mais se valorizaram são empresas de internet, cujo valor é avaliado pelo potencial de visibilidade e utilização por parte dos usuários da internet e softwares, outras, são empresas que cresceram aproveitando um período de ouro iniciado na era Clinton (bons tempos!), e começaram a oferecer crédito mobiliário sem qualquer lastro na economia real, simplesmente na expectativa de que o crescimento econômico seria capaz de manter os compradores pagando suas prestações.
Achar que o governo americano não interfere no mercado porque segue os princípios do liberalismo econômico é uma grande ingenuidade. Desde o crash de 1929 o governo tem comprado títulos podres, assumindo dívidas cada vez mais mirabolantes e agindo em todos os âmbitos possíveis – subsidiar agricultura não é interferência direta no mercado? Provocar artificialmente oscilações drásticas no preço do petróleo através da máquina de guerra não é influir no mercado? E quanto ao fato de que eles ainda são donos da moeda de troca internacional? Convenhamos, possuir estatais não é a única maneira de por uma mão muito visível na economia real.
De qualquer forma, o fato de que os Estados Unidos compraram a maior seguradora do mundo deixou muita gente enxergando indícios do fim do Império Americano, como se os princípios do liberalismo e não a riqueza material, territorial, poderio bélico e força da grana não fossem o que fazem deles a grande potência mundial. Acontece, que o capitalismo tem uma característica muito peculiar: quem comanda são os detentores dos meios de produção, e isso dá a essa gente o poder de manipular o meio econômico para fazer o que bem entenderem. A não-interferência estatal é desejável em muitos momentos, mas se tiver como objetivo salvar as bundas tocadas pela água que sobe, a história é outra.
No Brasil, cansamos de ver governo salvando pequenos banqueiros (pequenos mas muito, muito ricos e influentes). O Brasil quebraria sem o PROER? Certamente que não. O mundo financeiro quebra sem o pacote de salvamento às seguradoras e bancos de crédito imobiliário nos Estados Unidos? Não se sabe.
O problema dessa crise toda, é que como os valores das empresas variam conforme o humor dos investidores, ninguém sabe muito bem qual é o tamanho do buraco. Começaram falando em US$100 milhões, o pacote proposto pelo governo Bush é de US$700 bilhões, tem gente falando que na verdade, seriam necessários US$1,3 trilhões!!! Só como parâmetro, o PIB do Brasil em 2007 foi de exatamente US$1,3 trilhões.
Não me espanta ver o governo Bush pedindo essa quantidade de dinheiro ao Congresso. Quantas vezes vimos o legislativo americano liberando adicionais de 100, 200, 300 bilhões de dólares para financiar as guerras do Afeganistão e Iraque? Mas dessa vez, tem dois lados a serem analisados:
1) Os republicanos são malvados, mas burros eles não são. Nunca um presidente pediu tanta grana para o Congresso, se eles estão assustados na casa de US$700 milhões é melhor a gente pensar um pouco.
2) O governo Bush tem como característica conseguir as coisas do Congresso criando uma sensação de medo geral. Quem garante que dessa vez eles não estão se utilizando do mesmo recurso? Dizem “não há tempo para discutir, o mundo vai acabar, liberem a grana logo e depois a gente discute.” Isso tem deixado o Congresso com uma pulga atrás da orelha...é o problema de gritar “lobo” de brincadeirinha, de repente agora não levam a sério. Não nos disseram que tinham certeza de que havia armas de destruição em massa no Iraque?
Li ontem, em algum lugar que é inadmissível que na hora de repartir os lucros, as coisas sejam privatizadas, e na hora de repartir prejuízos, as coisas sejam socializadas. É verdade, mas é assim que as coisas são mesmo. Porque seria diferente agora? O dinheiro dos Estados Unidos vem de todos nós, mas talvez seja melhor que eles (o povo americano) tirem do bolso e resolvam logo essa merda do que deixar estourar e fazer com que todo o resto do mundo divida um problema cuja culpa reside exclusivamente nos investidores dos países desenvolvidos. É injusto pro povo norte-americano, a culpa é dos banqueiros, do governo, dos republicanos...mas ninguém mandou eleger aquela anta! Até agora não há números exatos, mas um economista disse na Globonews que 700 mil americanos já foram atingidos diretamente pela crise imobiliária – tiveram que devolver suas casas. Isso significa que 700 mil pessoas compraram casas sem ter condições de pagar, sob a garantia do mercado de que havia crédito dando sopa por aí. A pobreza é facilmente mascarável no mundo capitalista dos países ricos...mas em certas situações a realidade social aparece com toda a força – quem ficou pra trás em New Orleans quando a cidade foi devastada pelo furacão Katrina?
Não sei onde isso tudo vai dar, mas a coisa não cheira bem. Espero que isso tudo se resolva após as eleições presidenciais, pode ser jogo dos republicanos mesmo, tentando favorecer os apoiadores antes de talvez deixar o poder por um bom tempo...ou pode ser que a merda tenha chegado a um nível insuportável mesmo para os Estados Unidos, que na verdade, já convivem com a maior dívida pública do mundo há muito tempo.
P.S. No meio de tudo isso, vale lembrar que há alguns anos, o Brasil já teria de desmanchado no começo de uma crise dessas...é só lembrar que costumávamos desmanchar nas crises da Rússia, do México, da Argentina...dessa vez não é a crise de fucking Zâmbia, é a crise da maior economia do mundo, pelo amor de Zeus!! E tem gente mundo afora dizendo que o Brasil agüenta o tranco...e tem gente achando tudo por aqui muito ruim. Segundo a CNT/Sensus são 6% achando tudo uma merda, contra 77% que dariam o próprio rabo, caso o Lula estivesse a fim.
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quinta-feira, 11 de setembro de 2008

DINNING IN HELL

Ou
CHÁ PRA PÉRSIA III

Ou
SPARTANS GO HOME

Um texto muito longo que eu estava devendo faz tempo.


(eu não sou o autor desta imagem)

Não sou um advogado do preciosismo histórico na ficção, mas acho que não se pode olhar inocentemente pra um filme como “300”, de Zack Snyder. Nesta época pós-11/09 de antagonismo generalizado entre uma "civilização ocidental" genérica e uma “barbárie oriental” mais genérica ainda, é impossível não ver com preocupação o tipo de alegorias que o filme constrói — ainda mais sabendo-se como o autor da história original — o desgastado mas ainda endeusado Frank Miller — endossa essa oposição.

Há dois pontos que acho relevantes destacar aqui. Alguns já apontaram “laivos fascistas” no anarco-liberalismo de Miller, e muitos já ressaltaram em especial as relações entre certos traços da moral fascista e a HQ original “300”. Posso até prometer para o futuro uma discussão específica sobre a transformação (ou sublimação) política do quadrinhista mais “quente” do cinema atual e de como é chato que esse sucesso todo aconteça justamente no momento de sua decadência criativa.

Mas o que quero dizer agora, enfim, é que a bola me foi cantada por outros bem antes do filme ser feito. Assim, quando o assisti, fiquei chocado não com o conteúdo “fascista” – que está presente em muitos filmes de ação – mas sim com a clareza com que este se expressava lá e com o alto gral de estetização atingida. Embora eu não faça coro, compreendo bem quem chamou o filme de “samba-enredo fascista”.

Embora tenha visto vários comentários interessantes a respeito, como o de Jorge Coli (que já postei no “Chá pra Pérsia II”, post antigo no qual prometi retornar ao assunto), eu não vira ninguém desenvolver o ponto mais extensamente. Assim, procurei escrever a análise mais detalhada sobre o assunto que já cheguei a ler – justamente para clarificar meus próprios pensamentos a respeito.

I. Raízes

Bom, mas qual a relevância disso? É necessário dizer primeiro que facismo” não é uma coisa “morta” de livros de história, nem apenas um rótulo que esquerdistas caricatos gostam de jogar em cima de policiais e militares. “Fascismo”, além de um termo da Roma antiga que foi apropriado por um movimento ideológico-social-político específico do século XX, pode ser também considerado uma categoria mais ampla de movimento humano que ainda existe. Fora os óbvios como os neo-nazistas, esse tipo de movimento existiria sobre vários nomes, raças, culturas e países. Alguns até diriam que é um perigo por definição da modernidade – ou seja, que estaríamos, como sociedade capitalista-moderna-reificada-alienada-industrial-massiva, sempre à beira dele.
E quando vemos uma mistura de caracteres fascistas e de um ideário que costuma ter-se como sua antítese a saber, a moral e valores de liberdade e razão norte-americanos — o produto é tanto estranho como revelador. É o caso de “300”.

Em primeiro lugar, a associação de Esparta com fascismo não tem segredo algum, nem precisa ser fruto de exageros retóricos. Por suas características de eugenia, rigor extremo e militarização, Esparta foi um símbolo muito importante para a ideologia e estética nazi-fascista (como caracteres da cultura clássica greco-romana em geral o foram).
Mas é bom lembrar também que existem nos EUA vários times esportivos com o nome "Spartans". E isso não é nem de longe simples coincidência: muitos americanos enxergam-se sim como herdeiros culturais de um “ocidente clássico” genérico, como propagadores e, acima de tudo, PROTETORES da “civilização ocidental” – que, na boca deles, é na verdade apenas um nome modesto para a luz da humanidade.
É indispensável dizer, todavia, que essa reivindicação de herança, manutenção e propagação de valores clássicos a iluminar a humanidade também era compartilhada pelos nazistas. (nesse aspecto, o ótimo filme “A Arquitetura da destruição” é minha principal referência).


II. A amplificação e americanização do filme

Quando vi o filme, fiquei muito impressionado de ver como ele amplia justamente tudo o que já havia de tendente ao “fascista” na HQ (em especial o sentimento de ação congelada, escultórica, e a estetização da violência). Só que, à essa ampliação estética, o filme inclui uma dose de traços americanóides que fazem até a caricata HQ de Miller soar mais “historicamente” rigorosa. E o pior é que são elementos clichês e água-com-açúcar:

- o Leônidas-maridão-pai-carinhoso, que na HQ — que não perde um único momento com cenas de “afeto familiar” — é um personagem muito mais sarcástico e sem um pingo de “doçura”.

- a mulher-do-rei-se-metendo-na-política. Para resumir comparações entre HQ e filme, basta dizer que no original a mulher de Leônidas aparece em não mais que uns 6 quadrinhos. Essa maior ênfase na presença feminina a meu ver visa 4 coisas: uma é dar respaldo ao item supracitado do lado “maridão”; outra é fornecer aos ragazzos espectadores um “deleite visual” a mais, “adocicando” a áspera masculinidade exacerbada da HQ; outro talvez seja dar alguma atração empática a mais com o público feminino (não soa convincente nem pra mim); mas o que mais me incomoda é o motivo de enfatizar a “diferença” civilizatória: denunciando como os “orientais” tratariam mal suas mulheres (claramente confundindo Persas antigos com os muçulmanos) e sugerindo uma “democracia sexual” em plena antigüidade Grega que é dificilmente imaginável mesmo em Esparta, onde as mulheres eram mais respeitadas. Não acho que há nada de inocente em confundir a liberdade atual e (muito) recente da mulher no ocidente com a liberdade relativa que esta possuía em Esparta.

- o político-traidor-salafrário-vendido-sem-vergonha e seu complemento, o senado de bananas/bocós/basbaques que gritam “Traição! Traição!”. Uma alegoria primária e estúpida da qual (para minha dúbia felicidade) a HQ original foi poupada. (Aliás, a HQ também poupa Leônidas de, além de martirizado, ser corno.)
- a mais que batida e desnecessária vila-destruída-com-cabanas-queimadas-cadáveres-mutilados-e-crianças-inocentes-agonizando, feita pra mostrar como, nossa, esses Persas são uns bárbaros!!

- a ubiqüidade das deformidades físicas entre os persas (criativas, não?) que, na HQ, se limitam apenas ao traidor Ephialtes.

- Os GYM SPARTANS digitais. Os espartanos da HQ pelo menos eram mais honestamente casca-grossas (com direito a tremendas surras como “disciplinamento”), além de morenos, magrelos, e até com uns meio barrigudos (como qualquer exército desde o início dos tempos). Os de snyder, tornados saradões, bonitinhos e loiros(!!), são de uma hipocrisia cinematográfica Kitsch digna de pinturas nazistas – ou de filmes de ação.
III. O Fascismo em si – e os EUA

O que exatamente há de “fascista” na história e porque essas “adaptações” do filme ampliariam isso? Eu listei 7 itens amplos que tento desenvolver aqui.

1. Anti-intelectualismo ou filisteísmo (ou “ateniense é tudo filósofo-viadinho”).
Ainda que seja muito óbvio que trata-se da auto-representação de Esparta contra seu rival mais “intelectual”, o traço está lá e é reforçado pelo item 2:

2. A ojeriza à política.
Político é tudo corrupto, devemos confiar só em nosso grande líder personalista-carismático-heróico (nosso Führer!). O filme, com o “político-traidor-salafrário” e o “senado-bocó”, tem esse traço muito mais realçado do que a HQ original – nela, Leônidas é REI, tem pleno poder e acabou. O filme acaba fazendo uma apologia mais descarada. A diferença é bem ilustrada no texto original não-filmado:

-- “Espartamos, hoje marchamos para a glória!”
-- “Estamos com o senhor, meu rei, até a morte!”
-- “Eu não lhes dei opção. Deixe a democracia para os atenienses, rapaz”.
-- “...”

Esta mudança do filme em relação à HQ é um dos pontos onde se vê melhor como o filme projeta os EUA em Esparta – a "tricotomia" “democracia/família/poderio militar” é um problema dos EUA, e não de uma sociedade mais simples e francamente não-democrática como Esparta. O que nos leva ao ponto 3...

3. Militarismo e anti-sensualismo: uma moral ascética.
Precisa dizer algo no caso do filme? Esse é um traço constante também em Miller, relativamente comum em histórias de super-heróis e na cultura americana como um todo (também vamos encontrá-lo em qualquer cultura dita de “direita”). Poderia ser resumido de maneira mais abrangente como “elogio aos homens duros, honestos e disciplinados que têm a força e firmeza de caráter para fazer o que é preciso”.

Realmente, há o que se elogiar em muitas pessoas que têm essa fibra. Entretanto, o caráter alegórico comum de Miller com freqüência relaciona o conforto, a fragilidade, o sensualismo e até feminilidade com a falha moral. O assunto, obviamente, é mais complicado: daria pra escrever um artigo inteiro sobre como Miller retrata as mulheres, e não me interessa aprofundar o assunto aqui. Poderíamos sair pela tangente aqui e dizer que, em essência, seria uma questão de identificar o Eros como mal e o Thanatos como saneador... mas talvez seja ir muito longe. De qualquer maneira, este é um ponto onde é possível ver o que torna um Alan Moore um autor diametralmente oposto a Miller: Moore prefere sempre o sexo à guerra, e em Miller a guerra é um sexo e o sexo, quando é relevante, tem algo de guerra... O que nos leva ao item 4:

4. Estetização da morte e da violência.
Bom, ninguém faz um jorro de sangue espirrar tão graficamente ou uma cabeça decapitada rodopiar tão extaticamente quanto Miller, e Snyder faz de tudo pra amplificar essa sensação de movimento congelado.

5. Elogio racista da pureza.
Claro, a identificação questionabilíssima dos Persas com negros e morenos e mais ainda dos gregos com brancos e loirinhos é muito visível no filme (na HQ, ela é menos pronunciada, pois os gregos são todos mediterraneamente morenos).

Mas a questão não é essa. O teor fascista não é dizer simplesmente que uma “raça persa” é “inferior” — o que o transformaria em simples racismo, algo muito reconhecível hoje. A questão é algo bem mais sutil: no filme, tudo o que é contrário à Esparta é mostrado como impuro, corrompido e... mestiço.

Veja como os persas são retratados no quadrinho e no filme: uma multidão multicultural e multirracial tão variada, luxuriante e sedutora quanto moralmente errada, e muito mais “fraca” moral e militarmente (qual a diferença no filme?) em sua diversidade do que o espartanos em sua uniformidade. Aliás, acho um acaso (?) cinicamente divertido que justamente um BRASILEIRO, fruto do povo mais mestiço do mundo, vá representar uma nação múltipla, luxuriosa e corrupta.


E aqui temos um momento precioso do filme: o pequeno diálogo entre Xerxes e Leônidas que, não por acaso, é idêntico na HQ e no filme: Xerxes, sedutor e lânguido, especula conciliador sobre o quanto as duas “culturas”, grega e persa, teriam a partilhar; Leônidas, irônico, responde que “partilhamos nossa cultura com vocês durante a manhã toda”. O argumento vale-tudo relativista da “cultura” (talvez o elemento mais historicamente inverossímil dessa ficção, visto que é uma discussão absolutamente contemporânea) é colocado como recurso de tiranos, enganadores e aduladores. (Creio que não haveria um só republicano conservador americano que não vibrasse com isso.)

Esse é o cerne do fascismo, da “força pela união”: o múltiplo e misturado é corrupto e sedutor, o puro, que se impõe e não se mistura, é bom e forte. O que também pode se traduzir em “nós somos o máximo e os outros são ameaças”. O que já chega ao ponto 6...

6. A demonização do oponente e a auto-glorificação/vitimização.
A síndrome de “nós-somos-a-esperança-da-civilização-e-da-humanidade”, e portanto nosso inimigo quer nos destruir, no fundo, por causa disso; e como nós somos retos e lindos e gloriosos, nosso inimigo só pode ser vil e imoral e deformado.

Aqui há no filme uma distorção e ampliação extrema da HQ de Miller. Miller pinta os Persas como morenos exóticos, luxuriosos e cobertos de ouro, mas desorganizados e sem fibra. Snyder os faz deformados e distorcidos, tendo de belo apenas suas roupas. No filme, a tenda imperial onde o poderosamente afrescalhado Santoro-Xerxes "tenta" o corcunda traidor é nada mais nada menos que A CASA DO CAPETA, com direito a concubinas deformadas, carrascos com enxertos à la Hellraiser e um homem com cabeça de bode (!!!).

Snyder, como já dito, americaniza os espartanos mais do que Miller jamais o fez, tranformando-os em "bons pais e maridos". Ou seja, são tão justos e bravos e evoluídos e a favor da liberdade (?), ao mesmo tempo em que o inimigo é tão corrupto e escravizador e inumano (e satânico...), que qualquer violência propagada por eles contra esses inimigos é justa e sagrada de antemão, merece ser louvada e contada e embelezada. É o tipo de coisa que se torna mais preocupante em tempos em que os EUA mantém uma guerra imoral, discutem seriamente a liberação total da seu emprego da tortura e reduzem direitos civis baseando sua retórica nessa mesma imagem do "pai-justo-amoroso-trabalhador-porém-durão-que-só-quer-proteger-seus-filhos-cultura-e-civilização."

Vá ver como os Nazistas enxergavam a si mesmos em relação aos judeus: os judeus eram uma “doença social” que queria destruir o ocidente, ajudando inclusive a “poluir a moral” com “arte moderna” e “bolchevismo”. Os Nazis eram os vingadores das vítimas revoltadas – os “hardmen” que tinham a força pra “fazer o que é preciso” enquanto os políticos degenerados só ficavam enrolando, conchavando e roubando.

Se formos pensar no que ocorre hoje nos EUA, é impressionante ver essa marcante necessidade de se sentir vitimizado, de se dizer uma nação ameaçada por uma horda de bárbaros, quando no momento são que, abertamente, estão invadindo, ocupando e torturando. E é interessante ver isso projetado logo em Esparta.

Como se Esparta nunca tivesse planejado nem realizado invasões sangrentas e conquistas militares.

Ou como se a Grécia não se BASEASSE em invasões e conquistas militares, como toda grande civilização desde o início dos tempos.

Ou como se os EUA não se baseassem nelas.

Mas tenho comigo a crença que, diante da glória da conquista e da supremacia militar de sua pólis, um espartano jamais se esconderia na hipocrisia de achar que só estava defendendo suas mulheres, crianças, campos de trigo e civilização.


7. A reificação da história como parábola moral.
Certo, este está longe de ser um traço distintivo do “fascismo” em si. Toda construção ideológica recorre a um “mito fundador”, geralmente sendo este no mínimo “sanitarizado”. Ela está presente em qualquer nacionalismo e qualquer construção ideológica: o ato de projetar em uma história passada valores de guerra que encontram-se em choque hoje, buscando transformá-la numa parábola real que justifique a realidade vigente.

De início, quando li a HQ pela primeira vez e um 11 de setembro seria uma risível implausibilidade, achei até que Miller tinha uma consciência crítica a respeito do que estava fazendo, e os excessos unilaterais da história adviam apenas de sua vontade de contar a história pela óptica obviamente parcial e extremada dos espartanos. Apesar da americanização, poderia-se dizer em sua defesa que o autor não desgraçava os persas por completo. A forma como retratava Xerxes, por exemplo, embora fosse esquisitona, ainda seria algo “respeitosa”: não era apenas um “afrescalhado” sedento de poder, mas um rei-deus poderoso, altivo e belo. E pode-se encontrar um olhar não convencional quando se vê que aos seus Espartanos não faltava uma certa dose de homoerotismo — nada de homens se beijando, mas podemos ver um companheirismo “quentinho” em alguns desenhos (o que é comum em qualquer exército desde o início dos tempos).

Mas Miller, em sua HQ, acaba ecoando traços “ideológicos”, ao colocar na boca de gregos clássicos — e de espartanos, especificamente — uma auto-imagem de “esperança de Razão e justiça do mundo” contra o “obscurantismo e escravidão”. Essa tendência é ideológica porque, se é verdade que a sem os gregos não poderia haver a nossa noção de justiça e nem a universalização de uma noção de “humanidade”, também é igualmente verdade que ambas essas coisas ditas dessa maneira só iriam fazer sentido mais de dois mil anos após a batalha das Termópilas. (e nem iremos entrar no mérito da escravidão do homem pelo homem ser a base econômica da sociedade grega...)

Percebi que Miller na verdade estava reproduzindo acriticamente certos valores, e mais: projetando mesmo valores americanos nos espartanos. Entendam, não falamos aqui do problema de distorcer a história real, mas dos valores e representações que foram impressos numa HQ que é claramente alegórica. Quando coloca na boca dos espartanos uma fala historicamente absurda (porque um espartano não diria aquilo) de “a última esperança de justiça e razão do mundo”, o que se tem que ter em vista é que Miller está na verdade falando dos EUA. E não tem como ele deixar de falar, sendo que é essa a maneira como a cultura americana representa o bem — e que essa é a forma que vêem a si mesmos.

E é sem dúvida a maneira como Miller hoje vê os EUA. Poderia ser que, na época em que a HQ original foi lançada, ele até não compartilhasse conscientemente dessa visão sobre os EUA; mas basta ver algum comentário seu sobre a Guerra do Iraque para mostrar que hoje ele falaria isso com todas as letras.

Nas declarações recentes de Miller, é visível o forte rescaldo da visão pop-neocon-se–querendo-polêmica que virou moda no pós 11 de setembro, ancorada numa fantasia de “civilização ocidental” a ser protegida e a ser imposta como luz sobre a horda de bárbaros incultos que querem destruí-la.

A questão preocupante nisso tudo — e que torna relevante falar de “fascismo” — é que fantasiar uma “herança cultural” a ser militarmente defendida contra uma “barbárie” a partir de apropriações fantasiosas de um passado que nem é realmente seu é uma das características primordiais das ideologias fascistas que vivenciamos no século XX.


IV. Encerrando, afinal:
Não acho que o filme seja literalmente uma “propaganda fascista” como algumas pessoas mais fervorosas já chegaram a chamá-lo, e duvido que seu impacto “ideológico” na população como produto industriocultural chegue a ser “preocupante” (o mesmo comentário para “Tropa de Elite”). Acho até que Snyder só quis fazer o filme da maneira o mais grandiosa e mais atrativa o possível, sem notar em momento algum quão venenoso aquilo poderia ser – encarando, ora, como mero “entretenimento” e talvez mesmo tentando ser fiel a uma “obra de arte”. O que é um índice algo inquietante do quanto esses valores estariam entronizados, enraizados na cultura do país mais poderoso do mundo – que é também parte importante e indiscutível da nossa cultura de brasileiros “pós-modernos”.

Para mal e para bem.


Epílogo:

Zack Snyder é o diretor de Watchmen, adaptação da obra-prima de Alan Moore nos anos 80, que vai ser lançado logo.

Não tem como dar certo.

Mas pode ser que gere um texto como este ou melhor – daqui a um ano — sobre o porque das adaptações de Moore redundarem em distorções que às vezes fazem sucesso e as de Miller virarem sucessos com traduções literais.




Atualização (03/10)

Finalmente, reencontrei o link para duas discussões antigas em outros blogs sobre esse tema, que me motivaram a escrever este texto. Uma está no Blog Sedentário e Hiperativo, e data de 12 de abril do ano passado... e tem uma conclusão dela seja mais positiva do que negativa... http://www.sedentario.org/colunas/a-morte-do-sonho-americano-comics-addicted-1-2-596/

Outra discussão é esta, do blog "O Franco atirador":
http://malprg.blogs.com/francoatirador/2007/04/esta_noite_jant.html#more

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terça-feira, 2 de setembro de 2008

Gilmar Mendes e suas mentiras

(Já citei o mesmo blog no post passado, mas... )

Ótimo texto do Idelber no Biscoito Fino e a Massa sobre toda essa patacoada de polititica que já deu no saco.


Aqui um trecho que me foi particularmente instrutivo no sentido procedimental (se é que existe essa palavra):


"Em retórica, costumamos diferenciar o modo constativo do discurso do modo performativo. Frases como 1) está chovendo agora em New Orleans, 2) Lula foi eleito com 62% dos votos 3) o Flamengo é sistematicamente beneficiado pelas falcatruas da CBF descrevem fatos da realidade. São frases que estão no modo constativo. Mas a linguagem não serve só para comunicar ou descrever. Ela também é usada para moldar, produzir a realidade. O exemplo clássico é o padre ou o juiz que enuncia eu vos declaro marido e mulher. A frase não descreve um estado de coisas anterior à sua enunciação. Os personagens da frase viram marido e mulher pela própria intervenção do ato lingüístico. É a linguagem no modo performativo.
Uma das operações mais desonestas que se pode fazer com a linguagem é lançar enunciados pretensamente constativos com um objetivo que é, na verdade, performativo. É uma das desonestidades mais típicas de Gilmar Mendes. Quando ele diz que “o país passa por um quadro grave de crise institucional”, ele finge não saber que o Brasil não passa por crise institucional nenhuma. Nesse fingimento, ele quer é produzir a crise que supostamente descreve."

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segunda-feira, 1 de setembro de 2008

up for your rights

Decálogo dos direitos dos blogueiros.

Do blog do Idelber.


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pecado

(...) são poucos no Brasil que, poucas vezes, usam o termo “estadunidense”, e eu entendo: é feia essa palavra: o sumiço do plural de “estados” me causa desconforto, para só dizer o mínimo; e na verdade “americano” quer, no mais das vezes, dizer “relativo aos Estados Unidos da América”, que, indo mais longe do que no caso da África do Sul, é o único país cujos colonizadores não sentiram necessidade de nomear, tomando o nome do continente para si, como se dissessem: “América é onde chegamos, o resto é nada” - e é a partir disso que se comporta a língua ao redor desse conceito; acho natural e saudável que tentemos reagir a isso, mas “estadunidense” não é uma boa solução - nem “estados unidos” é propriamente um nome: o nome é América, “estados unidos” equivale a “república federativa” ou a qualquer outra designação genérica - e, de fato, o México é Estados Unidos do México e o Brasil foi, até pouco tempo, Estados Unidos do Brasil; quando aceitamos o equívoco termo “americano” como significando “dos Estados Unidos”, ou mesmo “norte-americano” (já que este se aplicaria igualmente ao México e ao Canadá), estamos apenas usando uma palavra pelo que ela mais freqüentemente significa: resistirmos a isso não mostra mais nossas forças do que nossas fraquezas) (...)




Peço perdão, mas aqui tive que mostrar um momento de pagação de pau minha para com Caetano Veloso.


O belo e rocambolístico texto completo, sobre Caymmi (mostly), está aqui.