terça-feira, 24 de agosto de 2010

The dream is over

Pára tudo. Pára tudo.

Silêncio.




Asterix agora faz propaganda de McDonald's.


Não por acaso, a cena usada é justamente a cena-tipo dos gauleses comemorando ao final de cada história de Asterix. Muito apropriado; citando o Koolhaas, call it closure.


Não, não há hambúrgueres de Javali.


Os romanos venceram.










(obs: A morte é sempre inclemente. Mas hoje certos cadáveres culturais são empalhados e levados de um lado para outro em procissão, como um estandarte, um boneco de Olinda ou uma imagem de Santa.)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

isso não é um tweet

Abri uma conta no twitter ainda no comecinho da coisa.  Mesmo sem entender muito pra que  servia o tal microblog, resolvi me inscrever, pelo menos pra não ficar muito pra trás no tão dinâmico universo da internet.  Pelo mesmo motivo entrei no orkut e no Wave, a grande promessa não concretizada da Google.

Como não vi muita graça no twitter, acabei não acompanhando muito de perto a evolução da criatura, de forma que as minhas considerações aqui são altamente discutíveis.

Pretendo aqui discutir o "fenômeno twitter" enquanto subproduto de outra coisa: a transição da internet de um meio cuja principal forma de aquisição de informação era a leitura, para um meio em que a palavra escrita vem sendo substituída por imagens e vídeos.  Minha opinião é de que isso está relacionado com um processo muito simples: o de que as coisas tendem a evoluir sempre na direção mais provável  de acordo com características de um ambiente favorável - conceito importante, apesar de óbvio.

Esse texto começou de uma discussão sobre o meu aborrecimento com o twitter com uma das leitoras mais assíduas do blog, a @sandramilk - twitteira de carteirinha.  Essa discussão foi muito interessante, e acredito que a Milk poderá defender seu ponto de vista por aqui, se quiser, utilizando até mais que 140 caracteres.  A intenção não era discutir se twitter é legal, se é uma ferramenta válida para divulgação do que quer que seja, se aproxima as pessoas ou não.  Eu estava mesmo a me queixar das coisas que aparecem na minha tela toda vez que abro o site - e olha que só faço isso para divulgar postagens desse blog.

Pra resumir, podemos colocar da seguinte forma:

Eu acho um twitter um troço bobo.

Milk gosta muito do twitter.

Pronto.  Se não tentarmos justificar o twitter como algo que revoluciona o universo da internet de forma benéfica, não há o que discutir.  Gosto de muitas coisas bobas também - o twitter só não é uma delas.

Imediatamente percebi - não por conta da contra-argumentação da Milk, mas pela minha própria necessidade de ser ponderado na discussão - que o twitter atingiu um status de coisa sagrada.  Criticar o twitter pode, potencialmente, ofender muita gente, e eu percebi o porque disso: o twitter tem sim uma utilização louvável: pode servir para divulgar eventos culturais e aquilo que encontramos de bacana na nossa navegação pela net.  Dessa forma, seria injusto falar dos twitteiros como uma coisa só - não são.

Quando os blogs apareceram no universo da internet, causaram certa estranheza - porque ler o que "um qualquer" está escrevendo?  Logo os blogs se transformaram, principalmente na Europa e nos Estados Unidos, num importante nicho de discussão paralelo à "imprensa oficial". - a ponto de se atribuir à blogosfera a eleição de Obama.  Em tese - e isso obviamente não é verdade - os blogueiros são independentes, escrevem sobre o que bem entendem e não estão, nesses espaços, vinculados à censura institucional.  Ainda assim, os blogs nasceram como "diários virtuais públicos", e esse modo ainda está bastante presente.  Num segundo momento, a blogosfera se converteu em uma espécie de observatório da imprensa.  Nos blogs que discutem qualquer coisa, uma boa parcela dos posts são reflexo daquilo que foi discutido na imprensa tradicional.

Pois bem, qual é a crítica ao twitter?  No princípio do site, a utilização foi caracterizada por uma substituição dos "diários virtuais públicos".  As pessoas twittavam - e ainda o fazem - sobre as pequenas coisas de seu cotidiano.  O que estão fazendo, pensando, comendo, escutando enquanto tomam banho...enfim, frivolidades.  Da mesma forma que não consigo me interessar ou ver grande relevância no que Pedrinho está escutando enquanto lê Paulo Coelho; não me interessa o que William Bonner ou qualquer famoso faça em sua casa.  Mas aparentemente é o tipo de coisa que interessa a muita gente.  William Bonner tem quase 800 mil seguidores e Kaká 1,7 milhões!!

A forma "louvável" de utilização do twitter são os posts do seguinte tipo:

"jlgoldfarb
Conferências Bienais Allen Debus Participação de historiadoras da França e do México e lanç livro sobre Simão Mathias http://bit.ly/do4JGo"

Esses posts de utilidade pública são twittados e retwittados pelos seguidores e são uma boa forma de nos informarmos sobre fatos e, de quebra, pegar umas boas dicas para um programa cultural de fim de semana.

Ainda assim, vejo isso como um movimento de divulgação cultural que não promove, de fato, um aumento no consumo de cultura.  Pelo contrário, acho que direciona as pessoas para determinadas coisas.  Normalmente quem está atrás de programação cultural, dicas de filmes e livros, já o faz através de outros meios: sites especializados, blogs, jornais, revistas, guias culturais e dicas de amigos.  Mais: se a intenção é dar dicas para os amigos já consumidores de cultura - ou pior, para todo mundo - pode se tornar um negócio meio pé-no-saco.  A minha experiência de internet, por exemplo, sempre foi a de um espaço com muito conteúdo no qual eu posso navegar livremente.  Nada contra dicas de amigos, especialmente aqueles nos quais confio cultural e intelectualmente, mas acho meio chato passar uma parte do dia dando dicas do que ver na internet.  A razão é a seguinte::

A quantidade de conteúdo na rede é enorme.  Não me impressiona que qualquer pessoa encontre 10, 20 ou 100 coisas que valham a pena ser vistas todos os dias.  A experiência de navegação livre quase sempre nos leva por caminhos inusitados e interessantes, e pra mim essa é a parte mais interessante de surfar na rede.  Considerando que nossos amigos consumidores de cultura, por mais próximos que sejam dos nossos gostos pessoais também devam achar interessante explorar a rede, porque induzir à uma reprodução de suas experiências pessoais de navegação?  Quero achar as minhas próprias coisas, porra!  De qualquer forma, quero evitar a radicalização...boa parte das boas coisas que vejo na internet diariamente vem de dicas de amigos, geralmente via e-mail.

Muita gente já deve ter passado pela experiência de estar em um grupo de pessoas com um laptop assistindo vídeos no youtube.  Existem dois tipos de experiências desagradáveis nessa situação:

1) tem alguém comandando o que vai ser visto, e vai passando os vídeos que achou legais pra cacete;

2) as pessoas combinam que deve haver um rodízio: cada um mostra um vídeo.

No primeiro caso, normalmente quem se diverte mais é quem está mostrando.  A pessoa ri daquilo que já riu quando viu pela primeira vez e fica ansioso pelas reações dos companheiros.

No segundo caso as pessoas, lá pelas tantas, estão mais preocupadas em pensar no que vão mostrar para os amigos do que com aquilo que estão assistindo no momento.

Em ambos os casos, não se conversa.  Eu adotei o seguinte como regra: quando pego o laptop para tocar música, ele vira um rádio.  Prefiro conversar com amigos a ver vídeos e prefiro nem usar o google para dirimir dúvidas que surjam num debate qualquer, por mais que esteja morrendo de vontade de mostrar que opinião tal está embasada nisso ou naquilo.  Pelo mesmo motivo me irritam as pessoas que costumam dar mais atenção ao celular que aos amigos.  Pra que pensar em redes sociais quando se está socializando com pessoas reais?

Quanto às dicas que recebo, se vejo que o e-mail foi endereçado a mim, ou a mim e a um grupo reduzido de pessoas, como um grupo de estudos de Pedologia, abro e leio.  Se for individual melhor ainda: sinal de que o remetente viu alguma coisa que achou que seria interessante pra mim.  Agora, as dicas twittadas são coisas que as pessoas acham que "todo mundo deve ver".  Devo reafirmar aqui que sei que muitas pessoas fazem isso com as melhores intenções possíveis, escolhendo muito bem aquilo que recomendam ao mundo...mas são uma minoria.

Alguém disse que o twitter "é muito mais do que 140 caracteres".  É apenas a porta para um universo que se abre à nossa frente.  É uma maneira de colocar a questão, mas na minha opinião, é um esforço intelectual para transformar em algo mágico uma coisa muito comum: os links!!  Twitter então se resume a isso: links com pequenos comentários.  Bom, obviamente um tweet tem que ser mesmo muito mais que 140 caracteres, mesmo porque 140 caracteres de fato não servem para informar ninguém de coisa alguma, pelo menos se desejamos que exista qualquer nível de profundidade no conteúdo que pretendemos divulgar.  Agora, é bom lembrarmos que justamente aquelas pessoas que lêem mais tendem a ser mais independentes  e ter apreço pela busca do conhecimento do que aquelas que não lêem.  E certamente já liam antes do twitter surgir na face da Terra.  Pra não deixar de lado a tradicional acidez, diria o seguinte: muchachos, peguem as suas preciosas dicas e enfiem na sua própria pasta de favoritos e nos e-mails particulares dos amigos mais próximos.  Ou no meu e-mail, se acharem que eu, particularmente, possa me interessar.

Por conta disso, não vejo o twitter como uma ferramenta que levará mais gente a ler.  Acho, aliás, que a internet caminha por um outro caminho.  Pra mim, o interesse pela leitura só pode ser despertado pelo próprio objeto de leitura, e pra isso, tem que se começar.  Acho mais fácil convencer alguém a ler algum livro relatando, oralmente ou textualmente o que nos encantou em livro tal.  E isso não se faz com 140 caracteres.  A não ser que isso leve as pessoas para um texto maior.  Não vejo a necessidade do intermediário nesse caso - ou de mais um intermediário, já que blogs, jornais, revistas e TV adoram nos dizer o que ler: mas dispõem de espaço para justificar.

Já quanto a pensar o twitter enquanto rede social...não pensei muito sobre o assunto (aliás, pensei menos ainda, esse texto não é algo tão bem pensado), mas acho que os sites de relacionamento social fazem um papel melhor.  Foram construídos para isso, são munidos de várias outras ferramentas , fotos, grupos de discussão...e eu também não vejo graça em limitar meus comentários ou recados a 140 caracteres.

Pensando nessa coisa do tamanho dos tweets, fui procurar outros textos que fossem críticos ao twitter e descobri o site Woofer.  Woofer significa "latidor", enquanto Twitter significa "piador".  Um "tweet", ou uma postagem no twitter seria um "piu" de passarinho, enquanto um "woof", um latido.  Ao contrário do twitter, que limita as postagens a 140 caracteres, o Woofer limita as postagens a um mínimo de 1400 caracteres.  Confesso que as coisas que li não são lá muito empolgantes, mas o exercício de escrever um pouquinho mais, ainda que sem muita qualidade, me parece algo a ser incentivado.  Para se ter uma idéia de escala: até aqui, esse post tem 10.606 caracteres.  Meus 140 caracteres se esgotaram lá em cima, na parte destacada em negrito.

Dito tudo isso, tirei como conclusões preliminares: o twitter não se justifica como meio eficaz de divulgação da leitura.  Ou melhor, pra divulgar serve, mas creio que não é um instrumento eficaz para ampliar a base de leitores de forma geral, ainda que possa sim ampliar a base de leitores de um escritor que se dedique muito à publicidade no twitter...agora, acho quem os leitores arrebanhados nessa estratégia serão, em sua maioria, gente que já lê.  Se todos os escritores fizerem igual, acho que o cenário geral permanece meio como está.  Também não é exatamente uma rede de socialização como facebook e orkut.  Aliás, não vejo o que pode ser feito por lá que não possa ser feito em outros meios.  Qual é a vantagem então?

A quantidade de pessoas dispostas a ler mensagens curtinhas, de até 140 caracteres.

Nesse ponto, passo a explicar o twitter como subproduto de outra coisa: preguiça.

Nada contra o ócio, aliás, sou grande fã.  Só não a ponto de encontrar no Google 20 outros textos críticos ao twitter e twittá-los todos em sequência...escolhi escrever esse texto até grandinho...mas é o que me diverte, também não acredito na força deste post para mudar qualquer coisa.

É inegável que todo conteúdo na internet compete por tempo.  Isso ocorre porque por mais que muitas horas de vídeos sejam colocados no youtube a cada segundo, nós só temos 24 horas no dia.  E só temos algumas horas de navegação todos os dias, de forma, que duas horas vendo vídeos equivalem a duas horas em que não fizemos outras coisas na internet.

A internet era, até bem pouco tempo atrás, uma mídia em que se lia coisas.  Os sites tinham, basicamente, informação escrita, ocasionalmente ilustrados por uma ou outra imagem.  De qualquer forma, as fotos jamais foram protagonistas na internet.  Isso mudou drasticamente com o surgimento do youtube.  E pra não ficar nas meias-palavras, o aumento do tempo vendo vídeos em detrimento do tempo de qualquer outra coisa na internet significa exatamente o seguinte: a gente quer ver TV.

Deve haver alguma estatística que mostre qual é a porcentagem dos tweets que encaminham as pessoas para vídeos.  A julgar pelo meu próprio Twitter, imagino que seja bastante coisa.  Mesmo divulgadores de cultura e formadores de opinião optam por esse caminho frequentemente: sabem que a informação em vídeo tem uma chance muito maior de ser vista e repercutida que um texto longo como esse.

À parte da discussão disso tudo ser bom ou ruim, a questão é que o ambiente da rede favorece esse tipo de coisa. Se fôssemos analisar à luz do Darwinismo Dawkinsiano, poderíamos dizer que o twitter é bem sucedido porque ele é exatamente adaptado ao meio da internet no atual período: o tempo rápido do mundo moderno e a busca de algum reconhecimento público.  Dessa forma, quer-se ver o máximo de coisas possíveis nesse pequeno tempo, e se somos cultos, porque não dar uns conselhos e ter uma pequena legião de seguidores repercutindo aquilo que você retwittou?  O twitter é um meme bem sucedido porque atingiu uma "EEE" - estratégia evolutivamente estável.

Por fim, uma reflexão sobre o curto tempo que temos online.  Será que é tão curto assim?  O que dá pra ler em uma hora de vídeos?  E se vamos ler algo e a internet propicia um mundo a ser explorado, porque abrir mão de descobrir, por nós mesmos, os caminhos que podem nos levar a coisas diferentes?  Porque seguir os passos da navegação de outras pessoas?  Isso me parece uma homogeneização de um processo, que só tem a se beneficiar da criatividade de navegação da cada usuário.  Twitter é muito bom pra quem produz o conteúdo  escondido nas 140 letrinhas e o divulga.  Certamente é um grande veículo de publicidade, dado o seu alcance...pra quem só lê (lê o que?) ou repassa, não sei.

Espero que não pareça que a minha intenção foi a de ofender os usuários do twitter  (nem sabia que podia fazer isso), mas sim, levantar a discussão a respeito dos motivos que fizeram com que esse site se tranformasse em algo dessa proporção.  Eu entendo que aqueles que sentem que trabalham em prol da cultura através do twitter  discordem, e temos uma boa chance de ver ótimos argumentos contra tudo isso que eu disse, e espero que apareçam.  Eu sei do potencial ofensivo desse texto porque o twitter parece estar se tornando uma unanimidade - digo parece porque conheço um bom número de pessoas muito íntimas da internet que não aderiram à onda; mas já vejo surgir um movimento de pessoas que pensam que esse tipo de comunicação pode revolucionar o mundo.  Eu não vejo assim, e penso que estão erradas.  O filósofo americano Daniel Dennet, ao comentar as reações dos leitores ao seu livro "Breaking the Spell", disse que testou os seus argumentos com vários grupos de pessoas, buscando torná-los o menos ofensivos possíveis, mas notou que isso era impossível: "não há uma maneira bacana de dizer às pessoas que elas estão perdendo seu tempo".

Não penso que as pessoas estejam perdendo seu tempo no twitter.  Pelo menos não mais do que eu perco  o meu tempo fazendo outras coisas na internet (youtube, orkut...).  Só não acho que se deva confundir lazer com "grandes serviços prestados ao público geral" - excetuando-se, claro, a função de marketing do twitter, quanto à eficácia disso não há discussão, ainda que ninguém pense que os twitteiros possam desempenhar um papel tão decisivo nas eleições daqui como fizeram os blogueiros nas eleições americanas.  O mesmo vale para a blogosfera nacional.  Agora, assumindo o uso do twitter como lazer e diversão, não temos nada a discutir.  Por mais saudoso que eu possa vir a me tornar da época em que a internet era um troço para ser lido...e mais ainda, da época em que as pessoas liam livros grossos.



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quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Brasília, outro lugar (2)



arte e lugares outros



Brasília nasceu uma obra de arte e uma utopia.
Digo "obra de arte" num dos sentidos "tradicionais" modernos (mais ou menos desde o século XVIII) que se costuma compreendê-la: fruto materializado para o mundo de uma idealização individual do "espírito".




Em contraste à "arte", eu poderia dizer que as cidades costumam ser produtos de cultura: uma produção social e coletiva de sentidos e de fazeres e de formas, cunhadas no diálogo e no conflito das práticas sociais "mundanas". 


Brasilia, conquanto seja coletiva no sentido estrito em que toda construção civil o é -- pois são muitos os que a constroem -- é também em certa medida a realização idealizada por um número reduzidíssimo de pessoas. Número geralmente resumido, por propósitos práticos de narrativa, a dois: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Nesse sentido (discutível) que aqui dei à "arte" moderna, há razões para considerar Brasília como sendo talvez  a mais vasta e definitiva obra de arte já criada na história recente da humanidade.



Acho essa linha de pensamento instigante porque é também fácil relacionar muitos de seus defeitos de origem às limitações inerentes de uma "obra de arte tradicional" frente à realidade. Limitação que poderíamos resumir em não considerar a cidade e a arte como  fruto coletivo. 
É preciso se perguntar: afinal, como uma cidade inteira se faz do nada sem considerar planos de moradias para as multidões que foram lá arduamente trabalhar na sua construção? Mas é claro que, ao se considerar aqui a velha questão da subordinação dos meios aos fins, é necessário lembrar do quanto a imbricação de processos e meios "atrasados" e espúrios a fins vanguardistas e "inovadores" está no D.N.A. das relações de classe de nossa sociedade de "liberais escravistas e comunistas empresários".


Mas a questão é que Brasilia era utopia, para além das conotações nacionalistas de refundação do "país do futuro", porque uma obra de arte é sempre uma utopia.
Não digo "utopia" no sentido popular de "mundo perfeito e impossível" (embora uma obra de arte, por ser um sistema fechado de regras autoreferentes que fazem sentido entre si seja, como a matemática, o que mais se aproxima do que chamamos de "perfeição"). Digo utopia no sentido mais literal da palavra cunhada por Thomas More: "ou-topos", ou outro lugar.




Brasilia é esse lugar outro do Brasil: tenho para mim que sua primeira característica de nascença, mas do que ser a si mesma, é a de não ser nenhuma das outras capitais do Brasil -- não ser Salvador, São Paulo, Recife, e principalmente não ser o Rio de Janeiro. Brasília se inicia, então, como esse lugar negativo, vazio.



democracia sonhada do vazio


Todos os signos arquitetônicos tradicionais do poder costumavam ser centrados nos edifícios. O poder era encarnado e imortalizado neles: os edifícios amedrontavam e impressionavam. Mas a caracterização arquitetônica de brasília, embora monumental, não amedronta; o que assusta e oprime em Brasília não é o poder dos edifícios -- é o espaço vazio.


Brasília em sua inauguração


O espaço vazio também é objeto de poder, claro. No Vaticano, o vazio da Praça de São Pedro é o enquadramento monumental do poder "sublime" da divindade "encarnada" na Basílica-mor da cristandade. Em Versailles, o "vazio" paisagístico é um conjunto supra-desenhado de jardins monumentais que criam perspectivas de amplidão absurda, falando do poder da monarquia francesa em seu ponto culminante. 
Mas em Brasília, o espaço vazio domina amorfo, não desenhado. Ele não é um coadjuvante desenhado por edificações, mas uma realidade dada, abstrata e infinda, na qual estas se inserem pontualmente.

Concedendo-me o precioso luxo da ingenuidade: diria que é naquelas fotos de multidões no eixo, cheias de gente observando ou protestando, que o sentido da amplidão de brasília se concretiza.




Brasília é uma construção simbólica de democracia. E talvez por acaso (e talvez não), a verdadeira democracia, a democracia em sua raiz, é um espaço vazio: pois o objeto da democracia -- o "povo" -- não tem nenhuma substância pré-dada, nenhuma"essência". Não é um dado grupo específico, uma etnia ou uma entidade coesa, não possui identidade real dada nem limites que não possam ser revistos. O "povo" da modernidade é a unidade coletiva da total instabilidade coletiva, onde tudo pode e está para ser criado -- a "democracia é esse espaço público, a res publica. 
Essa "democracia" vazia é naturalmente assustadora; e também é inabarcável à percepção fenomênica cotidiana do homem.


É esse vazio que Brasília encarna, é essa "insônia" de Clarice Lispector.  É possível ver, como muitos, Brasília como esse imenso espaço visual que derrota, oprime o indivíduo; mas a esses pergunto se não é precisamente ISSO que é o indivíduo quando confrontado sem mediações à "face gloriosa" da democracia: minúsculo, insignificante. Só a coletividade ocupa esse espaço.




O significado da minha Brasilia é a desse espaço ocupado por multidões; para além da formação de arquiteto e do encantamento com a forma e a fotografia: foi assim, cheio e revoltoso, que vi o eixo monumental pela primeira vez; e é assim que ela fica até hoje na minha memória.


Brasília pode ser tratada ou ocupada de maneira autoritária, usada como disneylândia burocrática, como o foi e o é há décadas. Mas o vazio está lá; e pra mim ele permanece, promessa ao futuro, à espera que "o povo" (seja o que isso for) o tome para si.




política de quintal e antibrasília


São comuns críticas a Brasilia por ser afastada, por estar fora do alcance -- aliás, estas são particularmente comuns entre cariocas um pouco mais velhos e conservadores. 


Compreendo bem os motivos, mas sou desconfiado de tais críticas. Nelas eu tendo a ouvir o eco de uma mal disfarçada saudade de uma política palaciana de favores. Uma política carioca, de Palácio do Catete, onde os políticos não poderiam "fugir da população" que os confrontaria.
Acredito que essas críticas dificilmente podem ser consideradas realmente democráticas. Sua concepção de "democracia" às vezes vai pouco além do direito de "reclamar cara a cara com os políticos". Ou seja: uma política que, travestida de "igualdade", na verdade é essencialmente doméstica. Uma política típica do "homem cordial" brasileiro (termo que, ao contrário do mal-uso genealizado, não quer dizer "homem amigável", mas sim homem que se pauta pelas relações pessoais. O homem cordial é tanto aquele que dá tapinha nas costas quanto aquele que pede favores em troca para fazê-lo. E, para mim, também é aquele que vincula a "participação" política a algum ideal de "conhecer" o político e poder encará-lo de perto.)


Morando no Rio, é até difícil falar de Brasília sem falar da antiga "anti-brasília", o Rio de Janeiro. Enquanto a paisagem brasiliana é vazio quase abstrato, a paisagem carioca é total protagonista. Enquanto a população brasiliana ainda está para ter uma "cara própria", o Rio exporta e esbanja sua identidade, contagiante e irritantemente seguro de si. Mas bem: uma capital com um Palácio do Catete seria ótimo para quem pensa e quer o Brasil em escala doméstica; um vício no qual, a despeito dos esforços paulistanos, os cariocas ainda me parecem ser absolutos campeões nacionais. Por motivos até compreensíveis. E é pelo pequeno tempo de convivência que me sinto tentado a dizer: sorry guys, o Brasil é MUITO maior que vocês. As futuras olimpíadas serão mais um desses momentos em que a mídia fará esforço para que se esqueça desse fato, mas eu pelo menos continuarei repetindo: O Rio não é mais distrito federal há 50 anos. Move the fuck on.


Sempre ouvi na minha vida inteira, e acho que sempre vai haver quem use o Rio como epítome do que é o Brasil, do "verdadeiro Brasil": essa natureza exuberante, essa gente criativa e bronzeada e desorganizada. Eu já digo que o não é o Rio que é mais "brasileiro" que o resto; os brasileiros é que são todos, uns mais outros menos, um pouquinho "cariocas". 
Mas tudo isso permanece pra mim algo doméstico e litorâneo. 


Pra mim o Brasil, como a Brasília mítica, é uma vastidão improvável.




Epílogo:


Quem leu este texto estranho até aqui pode ter percebido que falo de uma Brasília muito particular. Como indiquei antes,  desobrigado de manter a adequada distância crítica, falo aqui da minha Brasília mítica, a Brasília que vi encantada com olhos de estudante e que vejo nas fotos clássicas, a Brasília que me assombra não em desenho mas na própria idéia de sua existência.


      


Ao menos no instante congelado das fotos, nos parece que é com certo assombro que os migrantes se apropriaram dos edifícios no dia da inauguração: andavam naquela obra de arte, de ficção científica, de fantasia "paranóico-crítica" modernista.












Aquele foi o último, talvez pleno, momento de "Brasília-obra-de-arte". Brasília, no uso de décadas, agora que gerações nela nasceram e cresceram, é hoje uma obra de cultura. Já é uma construção coletiva. Já existem gerações de verdadeiros "brasilianos".







Mas a cidade permanece na mente de muitos brasileiros -- e, em muitos sentidos, na prática -- como esse "outro lugar".



Brasília, outro Lugar (1): Clarice Lispector



Deixei passar em branco a data exata dos cinqüenta anos da cidade-estado. Ainda assim, eu tinha as minha homenagens a fazer. Dividirei-as em partes.
Esta primeira são trechos vários de Clarice Lispector falando de Brasília. Estão entre as palavras mais bonitas que já vi sobre a cidade-mito da modernidade brasileira.






- Brasília é construída na linha do horizonte. 


– Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília.





–  Se eu dissesse que Brasília é bonita, veriam imediatamente que gostei da cidade. Mas de digo que Brasília é a imagem de minha insônia, vêem nisso uma acusação; mas a minha insônia não é bonita nem feia – minha insônia sou eu, é vivida, é o meu espanto. Os dois arquitetos não pensaram em construir beleza, seria fácil; eles ergueram o espanto deles, e deixaram o espanto inexplicado. A criação não é uma compreensão, é um novo mistério.


– Quando morri,um dia abri os olhos e era Brasília. Eu estava sozinha no mundo. Havia um táxi parado. Sem chofer. 


– Lucio Costa e Oscar Niemeyer, dois homens solitários. 


– Olho Brasília como olho Roma: Brasília começou com uma simplificação final de ruínas. A hera ainda não cresceu. 


– Além do vento há uma outra coisa que sopra. Só se reconhece na crispação sobrenatural do lago. 


– Em qualquer lugar onde se está de pé, criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira.


– Se eu morasse aqui, deixaria meus cabelos crescerem até o chão. 


– Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos, que não eram americanos nem suecos, e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. É por isso que em Brasília não há onde esbarrar. Os brasiliários vestiam-se de ouro branco. A raça se extinguiu porque nasciam poucos filhos. Quanto mais belos os brasiliários, mais cegos e mais puros e mais faiscantes, e menos filhos. Não havia em nome de que morrer.
Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos; eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. Esses eram homens e mulheres menores e morenos, de olhos esquivos e inquietos, e que, por serem fugitivos e desesperados, tinham em nome de que viver e morrer. Eles habitaram as casas em ruínas, multiplicaram-se, constituindo uma raça humana muito contemplativa.


– Esperei pela noite, noite veio, percebi com horror que era inútil: onde eu estivesse, eu seria vista. O que me apavora é: é vista por quem? 


– Foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. Construções com espaço calculado para as nuvens. O inferno me entende melhor. Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é uma manchete nos jornais.


– Aqui eu tenho medo. 


– Este grande silêncio visual que eu amo. Também a minha insônia teria criado esta paz do nunca. Também eu, como eles dois que são monges, meditaria nesse deserto. Onde não há lugar para as tentações. Mas vejo ao longe urubus sobrevoando. O que estará morrendo meu Deus? 


– Não chorei nenhuma vez em Brasília. Não tinha lugar.


– É uma praia sem mar. 


– Mamãe, está bonito ver você de pé com esse capote branco voando (É que morri, meu filho). 


– Uma prisão ao ar livre. De qualquer modo não haveria pra onde fugir. Pois quem foge iria provavelmente para Brasília. Prenderam-me na liberdade. Mas liberdade é só que se conquista. Quando me dão, estão me mandando ser livre.


– Todo um lado de frieza humana que eu tenho, encontro em mim aqui em Brasília, e floresce gélido, potente, força gelada da Natureza. Aqui é o lugar onde os meus crimes (não os piores, mas os que não entenderei em mim), onde os meus crimes não seriam de amor. Vou embora para os meus outros crimes, os que Deus e eu compreendemos. Mas sei que voltarei. Sou atraída aqui pelo que me assusta em mim.


– Nunca vi nada igual no mundo. Mas reconheço esta cidade no mais fundo de meu sonho. O mais fundo de meu sonho é uma lucidez. 


– Pois como eu ia dizendo, Flash Gordon… 


– Se tirasse meu retrato em pé em Brasília, quando revelassem a fotografia só sairia a paisagem. 


– Cadê as girafas de Brasília? 


– Certa crispação minha, certos silêncios, fazem meu filho dizer: puxa vida, os adultos são de morte. 


– É urgente. Se não for povoada, ou melhor, superpovoada, uma outra coisa vai habitá-la.