sexta-feira, 30 de maio de 2014

Às vezes precisa desenhar

Sempre me perguntei onde estão os arquitetos maranhenses na hora de discutir sua cidade. Afora a má escolha de trilha sonora (que polui a atenção que é necessário dar pra tanta informação, principalmente para pessoas que não estão acostumadas a dados estatísticos e cartográficos) é muito bom ver que finalmente alguém resolveu "desenhar" certas coisas que pareceriam óbvias a qualquer urbanista: no caso, Diogo Pires Ferreira, ludovicence formado em arquitetura com mestrado em Barcelona, onde se ligou ao projeto La Ciudad Idea. Sua tese foi sobre um projeto viário para São Luís.


Resgatando velhos conceitos para o futuro da cidade: caso de estudo São Luís. from Cidade Ideia on Vimeo.

Não comento a proposta, porque para julgá-la seria necessário mais informações e leitura mais cuidadosa; mas a análise me interessou porque nela vi várias coisas que já me chamavam atenção a respeito da cidade.

Quando saí da ilha e comecei a estudar arquitetura na USP de São Carlos (1998-2002), meu olhar sobre São Luís se transformou radicalmente, de forma que pode ser resumida em dois aspectos:

1. A maior conciência do valor, beleza e singularidade do conjunto arquitetônico colonial;

2. O fato de ser o caso mais extremo e acabado de "anti-cidade" que eu já vira: fragmentária e esparsa em um nível além da imaginação; completamente alheia a qualquer qualidade de espaço público para além de alguns pontos concentrados (parques, etc.); ao mesmo tempo cheia de mato e completamente avessa à arborização, com bairros inteiros de muralhas e calçadas universalmente estreitas.

O triste é que esse mesmo exato vídeo poderia ter sido feito em 2005 e ainda assim, com algumas diferenças de dados, todos os diagnósticos se aplicariam. A São Luis atual trata-se de uma catástrofe completamente anunciada e previsível.

Talvez não tenha sido falta de aviso; o poder público brasileiro tem o costume renitente de ignorar solenemente o conhecimento acumulado de décadas sobre as cidades por parte de geógrafos, arquitetos e planejadores; grande parte dos defeitos terríveis das aplicações do programa "Minha casa, minha vida" (os quais, acreditem, ainda virão a explodir em nossas caras) vêm dos grandes descasos e ignorâncias administrativas em nível federal, estadual e -- principal e dolorosamente -- municipal.
São Luís não é nenhum caso isolado; mas é um dos mais gritantes e agressivos.

Acho que, à moda dos estrangeiros, talvez os arquitetos nacionais devam investir cada vez mais em publicizar mais idéias e propostas nos meios de comunicação; mostrar que há alternativas e idéias ocorrendo, tentar provocar debate público. É uma luta desesperada, mas tendo a achar que vale a pena -- nem que seja para construir a relevância pública da própria disciplina da arquitetura e urbanismo.

domingo, 25 de maio de 2014

Comentários

Anotações de momento inspiradas pela atitude aparentemente contraditória dos jornais a respeito da Copa -- primeiro querendo martelar o governo federal, agora tentando "salvar" a copa da indignação desproporcional com os gastos com estádios e etc.

1.
Lembro que, quando li 1984 aos 18 anos, uma das coisas que mais me impressionaram foi o conceito de "duplipensar". Mas não pelo vislumbre da vida de uma sociedade totalitária fictícia, mas sim por notar o quanto o conceito se aplicava perfeitamente à relação que a população dos países democráticos "espetaculares" tem com as mídias.  (desenvolvi mais esse assunto neste post anterior)
Não é necessária a imposição autoritária de um estado para que grande parte das pessoas simplesmente ignorem o visível non-sequitur dos pronunciamentos públicos (sejam os dos políticos ou os das manchetes de jornal e dos colunistas); basta que as coisas estejam em evidência na imprensa e elas "viram verdade" -- graças à simples ausência de disposição de grande parte das pessoas em acompanhar criticamente o que ocorre. "Sentir-se informado" -- e mesmo sentir-se "justamente indignado" é mais prazeiroso do que estar e admitir-se estar com dúvidas.

Hoje penso que é para isso que muita gente compra jornal: em alguns assuntos específicos e mais práticos quer-se dados confiáveis; mas, na imensa maioria dos outros, quer-se simplesmente a SENSAÇÃO de estar informado. E lembrando de Bourdieu, deve levar em conta que essa sensação também é acompanhada de outra refrescante sensação: a de superioridade perante os outros "alienados" ou a "massa ignara" em geral -- especialmente no Brasil, onde para muitos basta ler jornal ou assinar a Veja para que se sinta acima do "populacho analfabeto".

Para pensar o duplipensar de hoje, Orwell precisa ser atualizado com um pouco de Debord: a ordem do mundo do espetáculo é a de que "o que aparece é bom". Se transferirmos para o jornalismo, poder-se-ia dizer: "o que aparece é verdadeiro".

2.
O domínio dessa ordem, contudo, cria seu próprio complemento paranóico do mundo de hoje, as teorias conspiratórias. Cuja forma de funcionamento é mais ou menos esta: "a informação que me distinguir da massa de 'desconhecedores alienados' deve ser verdadeira". E aí também tem-se a terra de ninguém de critérios flutuantes, obscuros, emocionais ou mesmo supersticiosos para se aceitar dados como verdadeiros ou não. Nesse nicho, locupletam-se todos comentaristas picaretas que escrevem coisas feitas sob medida para os ávidos por distinção, por se sentirem portadores de informação privilegiada com a qual podem (ou, ao menos, tem a sensação de poder) esfregar sua "superioridade" intelctomoral na cara de outros.
O problema é que, para chocar e se distinguir, certas criaturas nefastas apelam mesmo a sandices absurdas (estilo "a teoria da gravidade era parte de um plano de Newton para espalhar o ateísmo e a burrice sobre o mundo") e a um rol interminável de falácias lógicas para racionalizá-las.

3.
É bem claro que pensamento crítico não é arsenal de fábrica do ser humano; saindo da esfera da necessidade prática imediata, o ser humano sempre tenderá a preferir o conforto, mesmo que auto-enganoso. Nesse ponto, contudo, que muita gente não entende -- e aí Orwell e o "dia do ódio" de 1984 é genial -- é o quanto o ódio é confortável, o quanto ter alguém para culpar e contra quem se indignar é sempre muito mais sedutor, familiar e confortável do que realmente se esforçar entender o que se passa.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Eros em Thanatos


H. R. Giger foi-se para fora do campo de nossa biologia.

 Biologia com a qual ele sempre se fascinou e a qual potencializou e distorceu em suas próprias  ficções pictóricas, as quais poluíram e avivaram as imaginações de muitos (eu incluso).








Em tributo à admiração que tive durante muitos anos, fica aqui a homenagem ao ilustrador pioneiro de perversões biomecânicas; criador de alienígenas cuja força estava menos na estranheza em relação a nós do que do que em inquietantes semelhanças; e, acima de tudo, pintor de vidas-em-morte e mortes-em-vida, da decomposição e dor erotizada. Eros e Thanatos em total promiscuidade, como lápides, estátuas tumulares e cadáveres que, de repente vivas, se reúnem não para comer miolos, mas para fazer sexo em paisagens de cidades e circuitos vivomortos.

Segue fora da carne e do tempo, sendo, ainda, puro tempo e carne.