sábado, 15 de dezembro de 2012

Dia do arquiteto: a "evidência Niemeyer"

(Aconteceu há alguns meses; mas, por ocasião da recente morte de Oscar Niemeyer e de nosso novo "dia do arquiteto", acho que vale a pena relembrar...)

Numa  discussão coletiva sobre Evolução x "Intelligent Design" no meu facebook (totalmente involuntária de minha parte, ressalto), tive que presenciar um arquiteto (defensor do I.D.) dizer a outro a seguinte frase:
"Um arquiteto ateu é sempre um constrangimento extra: se não consegue ler o melhor Projeto de todos, estampado não apenas até onde o olho alcança, mas sendo o próprio olho uma parte integrante dele, como ele pode querer projetar algo que preste?"
Achei interessante destacar tal frase porque nela se vê uma amostra perfeita de como funciona a retórica mistificadora de certos polemistas que têm abundado cada vez mais na imprensa e, especialmente, na internet.Trata-se de uma frase de efeito bem colocada, que irrita e ofende seu interlocutor indiretamente (ou seja, sem xingá-lo de incompetente  de forma literal), e que é aparentemente coerente e lógica... Mas que não resiste ao mais reles exame empírico de evidências.

A "evidência Niemeyer" sendo, é claro, a primeira que vem à mente.




É sempre chata a onda acrítica de canonização de alguém já absurda e excessivamente consagrado em vida. Mas ainda que haja exagero, ninguém se torna um baluarte sem algum mérito pessoal e histórico acumulado...
Oscar Niemeyer fez muitas obras bem questionáveis, especialmente no fim da vida; mas produziu obras boas, e algumas cuja excelência beira a unanimidade. Não era, enfim, alguém "incapaz" de projetar "algo que prestasse" -- embora um ateu publicamente declarado há décadas.

O mais importante, porém, é isto: se fosse "incapaz" de fazer um bom projeto, certamente não o seria por desacreditar da idéia de uma persona divina. Afinal, os que vêem uma intenção análoga à humana nos movimentos no universo não têm o monopólio da contemplação de sua beleza e complexidade; e, se pensam -- ou dizem -- que têm, é por estarem por demais enredados em seu próprio narcisismo.


Preparem-se!


A maior parte do tempo dos internautas é gasta com poucas coisas: redes sociais, webchat/videoconferências, vídeos, compras online e notícias.  Essas atividades são dominadas por quatro grandes empresas: Facebook, Google/Youtube, Microsoft/Skype e Apple.  E toda pesquisa passa por portais de busca, onde a Google reina só e são feitas a partir de sistemas que podem ser “fixos”, como PCs e laptops e “móveis” (smartphones e tablets) – aí entram, novamente, Microsoft, Google e Apple.

Não adianta mais ter muito cuidado: cada vez que navegamos ou fazemos compras online, empresas como Facebook, Apple e Google estão de olho, coletando dados e analisando nossos gostos e preferências.

Já faz algum tempo que eu me impressiono com a quantidade de produtos que me são oferecidos nessas propagandas que de fato podem me interessar.  A maioria deles, claro, são coisas semelhantes à outras que comprei online: roupas, livros, itens de cozinha, etc.  Esses produtos ficam pipocando nos cantinhos de vários sites que visito, esperando um momento de fraqueza e impulso consumista e, às vezes, aparecem com descontos imperdíveis.

Penso que não tardará muito até que a Google saiba mais sobre os nossos gostos do que nós mesmos.  É possível que, através de algoritmos, descubram relações entre características das coisas que nós compramos nas quais jamais iríamos pensar...por exemplo: Fulano, quando entra online para pesquisar roupas, dá mais atenção (ainda que não compre, necessariamente) a produtos com um certo padrão de cores – gosta de camisetas de cores sóbrias, porém, olha mais para camisetas dessas cores quando o modelo usa uma bermuda de cores mais vivas.  Talvez Fulano nem goste tanto de bermudas de cores vivas, mas por algum motivo, essa característica faz com que ele, inconscientemente, se interesse mais pela camiseta.

É só um exemplo, mas é nesse sentido que caminham as pesquisas sobre o gosto dos consumidores.  Google, Apple e Facebook, coletam uma quantidade absurda de informação sobre cada um de nós; as duas primeiras muito mais, creio, já que estão presentes em praticamente todos os smartphones e tablets do mundo – e ainda temos a Microsoft tá tentando entrar nesse jogo.

Imaginei, outro dia, a seguinte situação: Fulano acorda e tem um entregador da Google Delivery na sua porta, com um pacote.  Você não se lembra de ter comprado nada, e pergunta pro entregador se não há algum engano.

- Engano nenhum, senhor. Esse pacote é seu. Você não comprou, mas sabemos que você o quer.

- Como assim?  Eu não comprei nada, não quero.  Pode ir embora.

- Não quer receber?  Mas já está pago...ou melhor debitaremos hoje o valor no seu cartão de crédito Visa, aquele platinum com vencimento no dia 13.

- Isso é um absurdo!  Um abuso, invasão de privacidade e um crime!  Retire-se com essa merda de pacote, vou contatar as autoridades.

- Senhor, mas é aquela panela francesa que você queria, de ferro fundido esmaltado, a de trinta centímetros.  O produto entrou numa promoção, veio com 35% de desconto e hoje é dia 7, que é o seu dia de fazer compras online.  O senhor costuma comprar no dia 7, já que recebe, provavelmente, no dia 5.  Estamos apenas economizando o seu tempo, já que se encomendasse hoje, levaria mais 3 dias para receber.

- 30%?  Hum... (o sujeito olha pra cima, pensa) – não importa!  Ainda assim é um abuso, um acinte!  Vá logo com esse pacote.

- Tudo bem, senhor.  Ninguém está te obrigando a nada.  Cancelarei agora o débito no seu cartão, tenha um bom dia!

- Ótimo.

O entregador começa a sair, o Fulano fica olhando pra baixo, ainda um pouco indignado, mas certo de que está perdendo uma grande oportunidade.  O entregador já está a uns dez metros quando ouve:

- Qual é a cor?

- Deixa eu ver na nota...laranja senhor.

- Traz logo essa merda aqui!

- Tenha um boa dia, senhor!  E ó: daqui a pouco vai passar “Philadelphia”...o senhor não viu ainda, né?

- Olha só!  Que canal?

- HBO.


Fulano sobe o elevador indignado, desempacotando sua panela nova.  Resolve que vai mesmo assistir o filme, resolve fazer uma pipoca,  Mas não sem antes dar um pulo no facebook.


quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Em Estado Laico, não.


O preâmbulo da nossa Constituição Federal diz o seguinte:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

A mesma carta diz, um pouco adiante, o seguinte:



Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.


Acabo de ter acesso a uma reportagem que relata a retirada compulsória de um cidadão do plenário da Câmara de Vereadores do município de Piracicaba – SP, motivada por sua recusa a se levantar para a leitura de um trecho da Bíblia (para ler a reportagem, clique aqui).


Juro que o fato não me surpreendeu, embora eu sempre fique com raiva dessas coisas.  Vivemos em um Estado laico, mas no qual o laicismo, talvez pra combinar com uma porção de outras coisas, é capenga.

O texto constitucional é relativamente simples, até muito simples se comparado ao inútil e ornamental juridiquês, ao qual tantos brasileiros tiveram acesso durante o pré-julgamento do mensalão.  Neste ponto, releiam o que diz o Artigo 19 e seus incisos.  Ok?  Vamos lá: alguém mais ficou com a impressão de que a declaração de laicismo não é tão clara assim?  Que perto da declaração do preâmbulo, que deixa tão claro que os parlamentares constituintes promulgaram a CF “sob a proteção de Deus”, o disposto é meio nebuloso?  Penso que a declaração podia ser muito mais clara.  A redação do inciso I poderia ser lida da seguinte forma:

“União, Estados, Distrito Federal e Municípios não podem:
- fundar igrejas e cultos;
- ajudar, de qualquer forma, as igrejas e cultos existentes;
- atrapalhar o funcionamento destas igrejas e cultos;
- manter relações de dependência ou aliança com as tais igrejas e cultos EXCETO QUANDO HÁ INTERESSE PÚBLICO.

Creio não ter feito qualquer malabarismo desonesto com as palavras aqui.

A Liberdade de culto já está garantida no Art. 5º, VI, VII e VIII.  O art. 19, citado em vários lugares da internet como o cantinho da CF que defende o laicismo estatal me parece muito mais assegurar que o Estado não vai inteferir nos assuntos das igrejas do que garantir a isenção do Estado.  E deixa ainda uma brecha (grande) para que o Estado se alie às igrejas e cultos, desde que haja “colaboração de interesse público”.  O que isso quer dizer?  Quem determina o que é de interesse público?  Não sei.

De qualquer forma, o texto é assim provavelmente por conta da covardia dos deputados constituintes, àquela época praticamente todos católicos e com muito medo de comprar briga com a igreja.  O fato é que todos entendemos que o Brasil é um Estado laico.   Este princípio tem uma série de implicações, mas que dizer, fundamentalmente que, enquanto Estado, e por força de Lei, somos adeptos do secularismo.

Por conta desse pequeno detalhe, não deveriam ser permitidas as seguintes coisas:

- Crucifixos (ou qualquer outro símbolo religioso) em fóruns, tribunais, repartições públicas;
    Até no STF tem...e não é só uma cruz vazia, tem um Jesuizinho pendurado lá...

- A inscrição “Deus seja louvado” nas cédulas de Real;
- Ensino religioso confessional nas escolas públicas - pessoalmente sou contra qualquer forma de ensino religioso nas escolas públicas, penso que história das religiões é o único tema relevante e que este pode ser trabalhado dentro da disciplina de História;
- Orações e leituras de textos religiosos antes, durante ou depois de solenidades públicas, aulas em instituições de ensino públicas (lembram desse caso?);
- Exceções especiais para faltar dias de trabalho, provas ou atividades profissionais/estudantis por conta de crença pessoal – acho que a liberdade de crença não se sobrepõe às regras impostas à toda coletividade.  Não é o Estado laico que deve se adaptar às exigências especiais de cada crença existente no país.  Não pode trabalhar nas manhãs de terça?  Não se candidate a um emprego público.

O Estado laico não pode fazer apologia à qualquer crença ou mesmo ao ateísmo, porém, o ateísmo é a única postura possível e compatível com uma democracia.  O Estado deve se comportar como se não existisse nenhum Deus, como se nenhuma crença fosse melhor que a outra.

Voltando ao ocorrido em Piracicaba: a violência da postura do presidente da Câmara e mais, a justificativa do diretor jurídico são atitudes absurdas.   Tratam-se de reações preconceituosas relativamente comuns no cotidiano (infelizmente), porém inaceitáveis no contexto da vida pública em um Estado laico.

É sobre esse tipo de coisa que Daniel Dennett fala quando diz não ser possível o diálogo com as religiões (instituições, não pessoas).  O simples ato de permanecer em silêncio ou sentado, indicando que o sujeito não compartilha da crença dominante na Câmara Municipal foi visto como ato ofensivo pelo presidente da casa.

Dennett conta que quando estava escrevendo seu livro "Quebrando o Encanto", submeteu os manuscritos para diversas pessoas e pediu a elas que apontassem qualquer coisa que pudesse soar minimamente ofensiva, na tentativa de compor uma obra de filosofia o mais livre possível de ruídos que pudessem interferir na leitura fria dos argumentos.  Pra quem leu "Deus, um delírio", o livro de Dennett é realmente de morno pra frio, e olha que o Dawkins nesse livro faz um esforço genuíno para tentar convencer as pessoas a pelo menos refletir profundamente sobre o ateísmo.  Enfim, apesar do esforço Dennett não atingiu seu objetivo: pouco tempo após a publicação do livro, passou a receber um grande volume de correspondência ofensiva.

Pra quem é muito religioso, a simples declaração alheia de discordância é ofensiva, e eu entendo o porquê.  Digamos que alguém te conte que acredita em um deus muito peculiar: trata-se de um grande periquito roxo, chamado Amijubi(*), que é responsável por todos os fenômenos do universo e que de vez em quando te ajuda, desde que você faça orações regulares todas as terças, pela manhã, enquanto faz uma dança na qual bate os braços e faz gestos que lembram uma galinha ciscando o solo.

Trata-se de uma ideia bastante extravagante, que você provavelmente refutará sem pensar muito.  Dizer para a pessoa que compartilha dessa crença que você não acredita pode ser entendido por ela como uma ação potencialmente ofensiva, porque se você resolver explicar as razões pelas quais não comprou a história do grande Amijubi (provavelmente porque a história toda é meio boba), fatalmente estará deixando implícito que acha a tal crença um tanto ridícula e, possivelmente que os crentes do Periquito Roxo talvez não batam muito bem da cabeça.  É bom lembrar nesse ponto que a existência dessa entidade é possível, no sentido de que não pode ser desprovada.

Em uma avaliação honesta, é muito provável que qualquer crente encare as crenças alternativas da mesma forma que encaramos o grande Periquito Roxo.  A ideia de que milhões de seguidores do hinduísmo veneram a imagem de uma divindade-elefante (Ganesh) provavelmente é engraçada ou ridícula para a maioria dos católicos...mas 900 milhões de pessoas discordam e levam o deus-elefante muito a sério.

Acreditem: é só por uma questão de imersão cultural que cristãos não acham exótica a crença em um deus tripartite que era muito severo, que vê sua criação fugir de seu controle, apesar de ser onisciente, onividente e onipotente e que depois resolve mandar o próprio filho (que é Ele mesmo) para morrer pelos pecados dos homens e que ama a todos – mas te manda prum lugar horrível por toda a eternidade caso você não aceite o sacrifício do filho Dele (de novo, Ele próprio) como sua salvação e devote sua vida à sua adoração e louvor...e nem vou mencionar o Espiritismo.

Enfim...eu entendo que o senhor presidente da Câmara dos Vereadores de Piracicaba se sinta ofendido pela simples presença de alguém que não compartilha de sua fé e se recusa a prestar reverência a uma ideia que talvez julgue ser ridícula – ainda que de forma educada.  Mas como aponta Dennett, não existe forma educada de dizer pra alguém que pensamos que sua crença não tem fundamento, que se trata de uma ilusão.  A ira desse senhor, em sua intimidade, é justificável...já a materialização dessa raiva em forma de atitude obtusa, preconceituosa e violenta é que não se justifica de jeito nenhum.  Em Estado laico, não.




 (*) estou apostando que este será um dos nomes derrotados na escolha do nome do mascote da Copa – mas me pareceu um bom nome para deus esdrúxulo genérico.

sábado, 27 de outubro de 2012

Revista Piauí e quadrinhos (carta)


Quem lê a revista Piauí sabe que quadrinhos têm presença frequente na revista. Após uma sucessão de pequenas decepções com essa presença, vi que queria dizer algo à revista; assim, após anos de assinatura, mandei minha primeira carta. Segue:



Prezados realizadores da Piauí,


Até onde sei, Piauí é praticamente a única revista jornalística de peso no Brasil a dedicar um espaço tão significativo à ilustração e histórias em quadrinhos. Mais que pelos bons cartuns, charges e tiras que aparecem aqui e ali, sempre quis parabenizar vocês por dedicarem ocasionalmente algumas de suas amplas folhas a histórias de página inteira ou bem mais longas (parabéns!). Como os quadrinhos ainda são uma mídia relativamente marginalizada ou vista com condescendência, sempre considero oportuna sua presença num espaço de reconhecida qualidade.

Contudo (e aqui vem a crítica), é desanimador quando esse espaço esporádico dado a histórias maiores é ocupado por material aquém do nível geral da revista. Isso, ao meu ver, costuma ocorrer em boa parte por certa insistência nos mesmos nomes. Por exemplo, não foi à toa que tantos leitores queixaram-se do veterano Gotlib: seus poucos bons momentos não justificavam sua antiga frequência na revista (que, graças, deu uma trégua). Da mesma maneira, a relevância histórica e os momentos interessantes do casal Crumb não justificam a publicação de qualquer coisa feita por eles: até com "astros" precisa-se ser seletivo, e parte do material veiculado aqui tem sido repetitivo e dispensável (passei do puro divertimento para o enfado). As histórias longas de Caco Galhardo, por sua vez, têm se tornado sucessivamente mais pretensiosas, desinteressantes e mal-desenhadas (passei de admiração inicial à pura indignação). Por favor, não pensem que peço algum "banimento" do artista; apenas aconselho que se apresente aqui material mais decente, do qual temos evidência de que ele é capaz.

Porque me queixo disso, afinal? Afora sempre interessar ver a revista ser a melhor possível, eu lhes escrevo porque há um enorme número de autores com obras inteligentes e relevantes, no Brasil e mundo afora,  que poderiam estar no lugar de certas aparições repetidas que, grosso modo, tornam-se cada vez mais desinteressantes. Não quero ser injusto: nomes "novos" aparecem por aqui volta e meia, e isso é ótimo. Mas além de tomar o espaço potencial desses "novos", a veiculação de material repetitivo e menos qualificado de "consagrados" presta um desserviço à mídia dos quadrinhos em geral -- que, infelizmente, ainda convive com a imagem de primo pobre, caipira, anão, corcunda e retardado das artes, para citar Art Spiegelman (cujas participações na Piauí, diga-se de passagem, têm sido impecáveis). Bem sei que nem os melhores acertam sempre, e que a crítica que apresento aqui é, inevitavelmente, um juízo subjetivo. Mas penso que muitos leitores da revista concordariam que o louvável espaço ocasional dado aos quadrinhos na Piauí tem um grande potencial que poderia ser mais frequentemente alcançado com uma seleção ainda mais ampla na autoria e mais criteriosa na qualidade.

No mais, permanecem meus parabéns, e que boas histórias em quadrinhos continuem a ocupando essas páginas enormes.


Gabriel Girnos
Rio de Janeiro


...

Sei que soa antipático tentar dizer a uma revista o que ela deveria ou não publicar, mas confio que às vezes uma opinião manifesta pode ajudar -- ainda mas se for consoante com a opinião oculta de muitos (o que, obviamente, não tenho como saber!).

Agora é esperar pra ver se eles vão 1) publicar o texto na seção de cartas da revista impressa, 2) publicar na íntegra ou editar muito e 3) tirar sarro da carta, como é de costume...

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

carta de Miruna Genoino em defesa do pai



A coragem é o que dá sentido à liberdade
Com essa frase, meu pai, José Genoino Neto, cearense, brasileiro, casado, pai de três filhos, avô de dois netos, explicou-me como estava se sentindo em relação à condenação que hoje, dia 9 de outubro, foi confirmada.
Uma frase saída do livro que está lendo atualmente e que me levou por um caminho enorme de recordações e de perguntas que realmente não têm resposta.
Lembro-me que quando comecei a ser consciente daquilo que meus pais tinham feito e especialmente sofrido, ao enfrentar a ditadura militar, vinha-me uma pergunta à minha mente: será que se eu vivesse algo assim teria essa mesma coragem de colocar a luta política acima do conforto e do bem estar individual? Teria coragem de enfrentar dor e injustiça em nome da democracia?
Eu não tenho essa resposta, mas relembrar essas perguntas me fez pensar em muitas outras que talvez, em meio a toda essa balbúrdia, merecem ser consideradas...
Você seria perseverante o suficiente para andar todos os dias 14 km pelo sertão do Ceará para poder frequentar uma escola? Teria a coragem suficiente de escrever aos seus pais uma carta de despedida e partir para a selva amazônica buscando construir uma forma de resistência a um regime militar? Conseguiria aguentar torturas frequentes e constantes, como pau de arara, queimaduras, choques e afogamentos sem perder a cabeça e partir para a delação? Encontraria forças para presenciar sua futura companheira de vida e de amor ser torturada na sua frente? E seria perseverante o suficiente ao esperar 5 anos dentro de uma prisão até que o regime político de seu país lhe desse a liberdade?
E sigo...
Você seria corajoso o suficiente para enfrentar eleições nacionais sem nenhuma condição financeira? E não se envergonharia de sacrificar as escassas economias familiares para poder adquirir um terno e assim ser possível exercer seu mandato de deputado federal? E teria coragem de ao longo de 20 anos na câmara dos deputados defender os homossexuais, o aborto e os menos favorecidos? E quando todos estivessem desejando estar ao seu lado, e sua posição fosse de destaque, teria a decência e a honra de nunca aceitar nada que não fosse o respeito e o diálogo aberto?
Meu pai teve coragem de fazer tudo isso e muito mais. São mais de 40 anos dedicados à luta política. Nunca, jamais para benefício pessoal. Hoje e sempre, empenhado em defender aquilo que acredita e que eu ouvi de sua boca pela primeira vez aos 8 anos de idade quando reclamava de sua ausência: a única coisa que quero, Mimi, é melhorar a vida das pessoas...
Este seu desejo, que tanto me fez e me faz sentir um enorme orgulho de ser filha de quem sou, não foi o suficiente para que meu pai pudesse ter sua trajetória defendida. Não foi o suficiente para que ganhasse o respeito dos meios de comunicação de nosso Brasil, meios esses que deveriam ser olhados através de outras tantas perguntas...
Você teria coragem de assumir como profissão a manipulação de informações e a especulação? Se sentiria feliz, praticamente em êxtase, em poder noticiar a tragédia de um político honrado? Acharia uma excelente ideia congregar 200 pessoas na porta de uma casa familiar em nome de causar um pânico na televisão? Teria coragem de mandar um fotógrafo às portas de um hospital no dia de um político realizar um procedimento cardíaco? Dedicaria suas energias a colocar-se em dia de eleição a falar, com a boca colada na orelha de uma pessoa, sobre o medo a uma prisão que essa mesma pessoa já vivenciou nos piores anos do Brasil?
Pois os meios de comunicação desse nosso país sim tiveram coragem de fazer isso tudo e muito mais.
Hoje, nesse dia tão triste, pode parecer que ganharam, que seus objetivos foram alcançados. Mas ao
encontrar-me com meu pai e sua disposição para lutar e se defender, vejo que apenas deram forças para que esse genuíno homem possa continuar sua história de garra, HONESTIDADE e defesa daquilo que sempre acreditou.
Nossa família entra agora em um período de incertezas. Não sabemos o que virá e para que seja possível aguentar o que vem pela frente pedimos encarecidamente o seu apoio. Seja divulgando esse e/ou outros textos que existem em apoio ao meu pai, seja ajudando no cuidado a duas crianças de 4 e 5 anos que idolatram o avô e que talvez tenham que ficar sem sua presença, seja simplesmente mandando uma palavra de carinho. Nesse momento qualquer atitude, qualquer pequeno gesto nos ajuda, nos fortalece e nos alimenta para ajudar meu pai.
Ele lutará até o fim pela defesa de sua inocência. Não ficará de braços cruzados aceitando aquilo que a mídia e alguns setores da política brasileira querem que todos acreditem e, marca de sua trajetória, está muito bem e muito firme neste propósito, o de defesa de sua INOCÊNCIA e de sua HONESTIDADE. Vocês que aqui nos leem sabem de nossa vida, de nossos princípios e de nossos valores. E sabem que, agora, em um dos momentos mais difíceis de nossa vida, reconhecemos aqui humildemente a ajuda que precisamos de todos, para que possamos seguir em frente.
Com toda minha gratidão, amor e carinho,
Miruna Genoino
09.10.2012

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

nada mudou

Uma rápida análise dos resultados do primeiro turno das eleições municipais:


Me parece que se a exposição do mensalão na mídia teve algum impacto negativo, só foi o suficiente para manter a atual situação nas cidades - ou seja: não fosse o mensalão, talvez não existisse mais oposição no Brasil.  Fiz uma brincadeira com planilhas aqui e percebi quase nenhuma alteração no quadro de 4 anos atrás.

Do chamado "G85", que é o grupo de cidades com mais de 200 mil eleitores e capitais, tivemos 36 cidades com eleições definidas no 1º turno.  Dessas, a distribuição entre os partidos é a seguinte:

PT: 9
PSDB: 6
PSB: 5
PMDB: 4
PDT: 3
DEM: 3
PP: 2
PCdoB: 1
PR: 1
PSD: 1
PTN: 1

Teremos 2º turno em 49 cidades.  Dessas, o número de candidatos por partido que passaram para o segundo turno na primeira posição:

PT: 9
PSDB: 8
PMDB: 7
PDT: 4
PCdoB: 3
PP: 3
PPS: 3
PSB: 3
PSD: 3
DEM: 2
PSC: 1
PSOL: 1
PTC: 1
PV: 1

E dos que passaram na segunda posição:

PT: 12
PSDB: 9
PMDB: 8
PDT: 4
PSB: 3
PR: 3
PTB: 2
PCdoB: 1
PP: 1
PRB: 1
PRTB: 1
PSOL: 1
PV: 1

Nas eleições de 2008, os partidos elegeram o seguinte número de prefeitos nessas cidades:

PT: 20
PMDB: 18
PSDB: 13
PDT: 7
PSB: 5
DEM: 5
PP: 5
PTB: 3
PR: 3
PCdoB: 2

- o PT, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 18 prefeituras (2 a menos), apenas 1 capital definida (Goiânia);

- o PMDB, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 15 prefeituras (3 a menos), 2 capitais definidas (Rio de Janeiro e Porto Velho);

- o PSDB, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 14 prefeituras (1 a mais), e por enquanto fez apenas 1 capital (Maceió);

- o PDT, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 8 prefeituras (1 a mais), e por enquanto fez apenas 1 capital (Porto Alegre).

- o PSB, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 6 prefeituras (1 a mais), e por enquanto fez 2 capitais (Belo Horizonte e Recife);

- o DEM, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 5 prefeituras (mesmo número), 1 capital definida (Aracaju);

- o PP, se eleger todos os candidatos em 1º lugar fica com 5 prefeituras (mesmo número), e não venceu nenhuma capital.

Ou seja, ficou tudo muito parecido.  Lula não é um ex-Midas (ou um Midas).  Pode-se avaliar que ele tenha errado a mão em Recife, mas certamente levou Haddad para o segundo turno aqui e o Pelegrino em Salvador.

O PT entra em 3 disputas de segundo turno em capitais com vantagem: Rio Branco, Fortaleza e João Pessoa; e em outras 3 capitais em desvantagem: Salvador, Cuiabá e São Paulo.  Dessas, acredito que haverá participação intensa de Lula em Fortaleza, João Pessoa, Salvador e São Paulo.  Dilma deverá entrar em todas essas, talvez não em Fortaleza, por conta da disputa entre partidos da base - embora uma "traição" do PSB seja uma questão de tempo.

No outro polo, o PSDB entra em 3 disputas na frente: São Paulo, Teresina e Manaus (estou especialmente interessado na derrota de Arthur Virgílio); e em outras 4 em segundo lugar: Belém, Rio Branco, João Pessoa e São Luis.  No caso tucano, não há padrinhos importados que possam fazer tanta diferença - com exceção, talvez, de Aécio Neves - as campanhas provavelmente serão mais locais.

O PMDB disputa duas capitais: Campo Grande e Florianópolis, e entre em ambas as disputas com candidatos que passaram na segunda colocação; já no caso do DEM (PFL), a única capital em disputa é Salvador.  ACM Neto passou em primeiro, mas eu aposto contra.

Em São Paulo a vitória do PT parece possível, dada a imensa rejeição do sujo Zé Serra e do perfil do eleitorado de Russomanno (21,6% dos votos) e do provável apoio de Chalita (13,6% dos votos) - além da popularidade de Lula na periferia e de Dilma com a classe média.  A mesma lógica parece se aplicar ao caso de Salvador: ACM Neto tem muita rejeição e passou o primeiro turno com uma vantagem de apenas 5 mil votos - não parece ser o suficiente para segurar o resultado após a entrada pesada da dupla Lula/Dilma.

Concluindo: se o PT perder São Paulo, sai das eleições exatamente do tamanho que entrou; caso vença São Paulo, certamente poderá ser declarado o grande vitorioso das eleições...com julgamento do mensalão e tudo.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Voltando ao assunto

STF debate se há racismo em livro de Monteiro Lobato usado em escolas

Eu já havia tocado no ponto antes aqui e sugerido a leitura deste texto aqui ..Mas já que esse papo ainda corre e um monte de gente fica gritando "censura, censura" por aí, retomo*.

Nessa polêmica toda dos "conteúdos racistas" presente em livros do Sítio do Pica-Pau Amarelo, alguns fatos têm que ser estabelecidos sobre Monteiro Lobato: ele É um ícone cultural; ele É um escritor importante da literatura infantil brasileira; ele É (era) racista; e -- o que menos se discute -- ele É uma "Trademark" do mercado editorial e de entretenimento (Global) brasileiro.
Eu mesmo li vários de seus livros, e gostava, e percebia, mesmo com 11 anos, que tinha um monte de opiniões bem "das antiga" lá, bem como umas "farpas" claramente racistas.

Mas vamos lá: na boa, até agora não vi ninguém falando de "censurar" os livros -- qualquer criança que quiser lê-los pode ir a uma biblioteca e pegá-lo. Posso estar desinformado, mas o que vi foi gente defendendo que certos livros de Lobato não façam mais parte dos livros adotados para leitura escolar.
A questão é que, se um livro for adotado por uma escola, significa que, numa determinada classe, as crianças podem ter que ser "obrigadas" a lê-lo (ou seja, vai valer nota, etc.). Se levarmos isso em conta, ocorre uma inversão: "luta" das ONGS em questão não é pela proibição de "Caçadas de Pedrinho", mas para que os alunos não tenham que ser OBRIGADOS a lê-lo. Tem uma enorme diferença aqui, que algumas pessoas convenientemente preferem não ver.

Porque isso é um problema? Convenhamos que é complicado você obrigar uma criança (que hoje já lê tão pouco) a ler justamente um livro com insultos e elementos racistas como o são alguns do Sítio do Pica-pau amarelo... especialmente se a criança em questão for NEGRA. É interessante: ainda não vi alguém, entre os que acham toda essa história "absurda", levantar esse prospecto -- da ofensa que uma criança negra possa sentir ao ler algum trecho, digamos, da boneca Emilia comparando Tia Anastácia a uma "macaca preta".

Minha impressão é que o tamanho do bafafá encima do caso se deve:
1. aos autoproclamados Paladinos  da Liberdade de Expressão aproveitando  oportunidade fácil para um palanque;
2. aos Paladinos do Patrimonialismo Cultural Brasileiro, sempre interditando que se critique figuras canonizadas e;
3. Pela moral conservadora geral de gente "mezzo" informada e incapaz de aceitar que coisas que lhe são familiares e tidas como "inofensivas" possam, sim, ter falhas morais mais nocivas do que se imaginava
4. Ao fato de, no fim, esse processo correr o risco de "difamar" uma das mais lucrativas franquias Globais de entretenimento infantil do Brasil.

Mas talvez eu mesmo esteja mal-informado, e esteja em curso um processo franco de demonização e censura do M. Lobato... Mas bem: quando alguém quiser queimar ou realmente proibir que crianças leiam seus livros, me avisem que vou lá na rua protestar.





* este post é uma versão de um outro feito no facebook no mesmo dia.

domingo, 1 de julho de 2012

Sobre a melancolia de Lars

SPOILERS!!...


Ano passado vi Melancolia, e adorei.
Difícil mesmo chamar de "sutil" e "delicado" um filme:
A) do Lars Von Trier;
B) em que o planeta Terra é destruído e todo mundo morre.


Mas é o que achei: delicado. E, a níver de Trier, otimista até. Não causa aquela indignação profunda de "Dogville", "Manderlay", "Dançando no escuro", nem o completo desconforto de "Os idiotas". Eu considerava Trier um sádico inteligente, mas depois desse filme passei a achar que ele verdadeiramente sensível.

Não vou fazer um resumo organizado do filme -- assista, se quiser saber os tintins da história -- mas apontar algumas coisas que me chamaram atenção, especialmente no quesito escala.




Antes de ver o filme, eu tinha lido uma sinopse que dizia que um outro planeta batia na terra e pau: todo mundo morria. Eu fui ao cinema com expectativa de ver um planetóide ou algo assim batendo na terra.
Aí, logo no comecinho, veio o detalhe que me impressionou: não é que algo simplesmente bate na Terra, a Terra é ENGOLIDA por um mundo imensamente maior que ela -- planeta que, por acaso, chama-se "Melancholia"...

Por estranho que pareça, pra mim isso fez muita diferença. Por causa desse detalhe foi que interpretei o filme como uma obra sobre a depressão -- ou melhor ainda, sobre a natureza universal da tristeza -- da parte de um autor que reconhecidamente sofre desse mal (Lars Von Trier). "Depressão" justamente fez mais sentido pra mim dessa maneira: não como algo que vem e "bate", mas como algo que "engole" tudo, toda a pessoa, tudo que ela conhece; o mundo torna-se inteiro envolvido por esse fundamental vazio.

O filme é dividido em duas metades e centrado em duas irmãs, as duas bem problemáticas à sua própria maneira. A primeira metade do filme mostra Justine, a irmã depressiva, imersa no mundo "normal" de Claire, a irmã obsessiva: cambaleante, oprimida, incapaz e, pior ainda, sem que ninguém consiga nem ao mesmo atingir ou compreender o que diabos a aflige. Sua incapacidade de ficar feliz em seu próprio casamento -- no momento em que todos se esforçaram para que fosse feliz e, portanto, exigiam que ela o fosse --é quase condenada como uma falha moral. Como se ela não se esforçasse o suficiente para ser normal, para ser feliz -- como se afundasse em autopiedade.
No fim dessa parte, Melancolia (o planeta) torna-se visível a olho nu no céu.

A segunda metade do filme, Melancolia se aproxima da Terra e confirma-se, enfim, que com ela colidirá. Não por acaso, o que se  mostra é Claire, a irmã "normal" sendo lentamente imersa no mundo da irmã depressiva. Imersa simbolica e literalmente, já que a "Melancolia" está vindo pra engolir o mundo inteiro. E aí mostra-se sua total inadequação à nova situação, seu desespero e a artificialidade de seu apego a uma "normalidade" (p.ex: querer morrer tomando vinho ao ar livre, num clima bucólico). Sua incapacidade, enfim -- mais evidenciada diante da serenidade de Justine -- de encarar o vazio fundamental inerente a uma existência sob o signo da morte. Já Justine não se choca, não se desespera, porque ela já vive nesse mundo.

Entendam, Trier poderia ter apenas retratado um meteoro gigante, um pedregulho qualquer que batesse na gente e crau! nóis já era. O fim do mundo já estaria colocado. Mas ele criou um planeta -- algo da mesma categoria da Terra, e belo e reluzente e complexo e muito maior que o nosso planeta (nós é que estamos mais pra "meteoro"?). Tal atenção estética não visa só retratar uma tragédia, mas construir uma alegoria: o vazio da existência está lá; ele nos antecede, e é maior do que nós, e não é por que finjamos que não existe que ele não está lá.

Pessoas mais "positivas" podem achar que é um exagero de autopiedade de um diretor depressivo (à semelhança da reação das pessoas à tristeza de Justine); but he's got a point, na minha opinião. Usando a velha metáfora do copo pela metade, pode-se dizer que a moral dominante de nossa sociedade atual é a de dizer que "um copo pela metade pode ser visto como meio cheio e meio vazio, dependendo de como se queira ver". Ou seja, você escolhe como ver. Pra quem vê as coisas desse jeito, Trier pareceria estar escolhendo ver o copo como meio vazio-- seria um pessimista. Mas o que ele afirma na minha opinião é um tanto mais inquietante: um copo "meio cheio" está sempre "meio vazio", é um copo meio vazio. O vazio está lá. Há as pessoas que vivem quase exclusivamente nele, é certo; mas não as menospreze, porque o vazio é real. Está lá.

Pulando direto pro fim, dá pra dizer que Melancolia é um filme com "final feliz": há uma pequenina redenção, e é da fantasia de uma criança -- ou melhor, a necessidade do adulto de proteger e confortar uma criança -- que vem uma mínima e precária redenção possível.

Em um certo aspecto, esse final soa quase uma alegoria religiosa. É também disso que, até certo ponto, toda religião trata: uma ficção reconciliadora para se articular a insignificância humana diante do universo, diante do vazio da existência regida pela morte. O interessante aqui é notar que, justamente naquela frágil "fantasia" -- na "cabana mágica" que menino, mãe e tia fazem -- eles de certo modo estão protegidos. Não da morte, não do fim, mas do desespero.

 

Eu disse final feliz? É, soa exagero; mas não dá pra falar de um final exatamente triste, ou trágico; é um final... melancólico.



Epílogo: ao ver o filme, fiquei achando que o amor adulto-criança seria algo sagrado para Lars von Trier, algo que, em sua sanha destruidora, ele mantesse intacto; assim parecera em "Dançando no Escuro" e "Dogville"... Mas aí assisti "O Anticristo" (que ele fez exatamente antes de Melancolia) e vi que não; NADA é "sagrado" para von Trier.

Mas ao que parece ele acredita na existência de amor, pelo menos; ainda que destinado à tragédia, ele existe. E, diante do fim do mundo, talvez já fosse todo otimismo necessário.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Troque seu cachorro por uma criança pobre - e não se esqueça dos golfinhos!


É impressão minha ou a fome na África virou tema fora de moda?

Quanto maior a abrangência das redes sociais, maior é a fidelidade com a qual elas retratam as sociedades - ou pelo menos mostram com mais eficácia aquilo que as pessoas querem mostrar, o que já diz muita coisa.

Todos os dias encontramos no facebook mensagens religiosas, ateias¹, ecológicas, gente divulgando todo tipo de porcaria, incluindo um monte de porcarias legais...e às vezes tem coisa boa mesmo, geralmente vindas das mesmas pessoas.  Vejam, o nosso facebook não representa a "média da sociedade", mas como as pessoas próximas a nós se comportam no mundo digital.  O meu grupo de amigos publica coisas diferentes do seu grupo de amigos, e isso faz do facebook da cada indivíduo um conjunto único de informações.

Essa percepção é interessante, e por vezes eu me assusto com a frequência com que certas coisas aparecem na minha página inicial.  Uma delas é a quantidade de gente que divulga/publica/compartilha coisas relacionadas à proteção dos animais - e em contraste, a quase ausência de gente postando coisas que dizem respeito com o bem estar da humanidade.  Dia desses descobri que o boom de postagens de protetores de animais não é exclusividade do meu facebook.  Eu imaginava que talvez fosse, porque conheço muita gente envolvida diretamente em organizações de proteção aos animais; gente o suficiente para gerar uma distorção na minha página.  Acabei lembrando daquela música do Eduardo Dusek, o "rock da cachorra":


Troque seu cachorro por uma criança pobre
Sem parente, sem carinho, sem rango, sem cobre
Deixe na história de sua vida uma notícia nobre

Troque seu cachorro por uma criança pobre

Tem muita gente por aí que está querendo levar uma vida de cão
Eu conheço um garotinho que queria ter nascido pastor-alemão
Esse é o rock de despedida pra minha cachorrinha chamada "sua-mãe"

Seja mais humano, seja menos canino
Dê guarida pro cachorro, mas também dê pro menino
Senão um dia desse você vai amanhecer latindo

Não quero ser mal compreendido, simpatizo muito com a causa da adoção de bichos abandonados, da guarda responsável, da luta contra atos cruéis, etc.  Não simpatizo com a superioridade moral vegana, com o fim da experimentação científica em animais ou com o fim da caça às baleias².

 Agora, acho curioso que tanta gente esteja tão preocupada com os bichinhos e tão pouca gente esteja preocupada com assuntos relevantes para a espécie humana.  Quantas publicações vocês têm visto sobre a seca no nordeste ou as chuvas na Amazônia?  E já que quando se trata da proteção aos animais tem tantas postagens genéricas - além, claro, das postagens específicas, aquelas do tipo "Totó precisa de sua ajuda hoje" - cadê as pessoas repercutindo a fome na África, pra ficar só no exemplo mais gritante e geral dos problemas com Direitos Humanos?

Agora, claro que a comoção com as tragédias humanas tem muito a ver com a importância que a imprensa dá a casos específicos...as enchentes e deslizamentos de terra em Santa Catarina (2008) foram particularmente bem divulgadas.  As enchentes nordestinas de 2009 geraram menos comoção, menos mobilização, não teve o Guga ou um monte de artistas globais nordestinos pedindo doações.

Já os casos de cachorrinhos torturados têm gerado um fuzuê gigante na mídia e na internet.  É claro que é horrível, que as pessoas que fazem isso são horríveis (ou problemáticas), mas coisas assim acontecem todos os dias, como acontecem todos os dias casos como o dos Nardoni - lembram?  Bem, a TV divulgou a história do cachorrinho torturado, daquele outro enterrado vivo, de um que foi arrastado por um carro...essas coisas já aconteciam antes, mas agora resolveram, sei lá porque, mostrar.  pode ser fase, como eu espero que seja a enxurrada de filmes espíritas bancados pela Globo.

Claro que não me queixo da defesa de nenhuma das duas coisas (bichos e gente).  Me importo com ambos e não milito ativamente por nenhuma das causas.  Acho legítimo - e inteligente - o uso da internet para a divulgação de qualquer coisa, mas acho a distorção interessante.  Não porque seja inesperada, afinal, as pessoas nunca deram muita bola pros Direitos Humanos mesmo; mas porque não se dava tanta bola pro direito dos animais.  Parece que a proteção dos direitos dos animais seja a bola da vez entre as coisas que as pessoas gostam de divulgar, ou talvez seja mesmo o surgimento de um novo tempo, em que homens e bichos caminharão nesse mundão de patas dadas...

Resumindo: acho a causa justa, acho justo o uso da internet para divulgar a causa e acho coerente que pessoas queiram lutar pelos animais.  Porque raios, então, estou escrevendo isso?  Porque ultimamente tenho visto muita afetação.

Quem ler os comentários que seguem a maioria das postagens relacionadas ao tema, vai encontrar uma assembleia maluca de posições muito esquisitas, inclusive de gente que encara a coisa como uma guerra entre humanos e outros animais - e torce pelos bichos.  Gente que acha que só os seus cachorros as entendem de verdade, gente que acha que os bichos são melhores porque não são cruéis...por mais que poucas coisas sejam tão cruéis quanto a natureza, argumentam que só o homem mata por crueldade, sem motivo algum.  Essa ideia além de falsa, é boba.  A "sacanagem" é efeito colateral da inteligência humana - ainda que os cucos sejam uns FDP´s, não?  Justificável ou não, a maioria dos assassinatos acontecem por algum motivo, normalmente a obtenção de alguma vantagem: dinheiro, poder, eliminação de rival, punição, obtenção de status, reação a uma briga, etc...e tem ainda os distúrbios mentais, tampouco exclusivos dos homens.

Só pra ilustrar, peguei a postagem mais recente na minha página...é essa aqui.  Foi compartilhada por uma amiga minha, mas originalmente publicada na página "Prefiro bicho que gente".  Eu não podia ter tido mais sorte nesse exemplo...hehehe!  Nos comentários aparecem os veganos, os super-protetores e uma galera pagando pau.

Até entendo que algumas pessoas gostem mais de bichos que de gente...tem muita gente chata e ruim por aí.  Mas tem muita gente legal também, e pra ver isso basta perceber que quase todo mundo (até gente de quem a gente não gosta) tem amigos e gosta de outras pessoas.

É normal que pessoas gostem muito de certas coisas...um astrônomo que goste tanto de passar seu tempo no telescópio que prefira, de verdade, passar tempo lá do que tendo contatos sociais.  Ou um cinéfilo que prefira ver filmes a viver sua própria história (oh, profundo!).  Mas não é esse o caso: essas pessoas gostam mais de bichos porque acham que os bichos são melhor gente...

Se todas as pessoas que você conhece valem menos a pena que os animais, talvez o problema não seja as outras pessoas.  Pessoalmente, não troco as minhas amizades humanas por cachorro nenhum - e eu adoro os meus cães - conversas com seres capazes de me entender são normalmente mais ricas, por mais que poucas coisas sejam tão gostosas quanto o afeto incondicional de um cachorro.  Ah, o amor do cão!








1) Acabo de perceber que ateia não tem mais acento...que coisa! 
2) Calma, é mentira.  Deixem as baleias em paz, japoneses malditos³!
3) Calma, eu sou nipo-descendente, estou autorizado a fazer a piada.


P.S.  Me ocorreu agora uma discussão que tive com alguém a respeito da caça às baleias (ou foi um filme que vi?  Eram baleias mesmo ou eram golfinhos?).  Os japoneses tem dificuldade em entender porque as pessoas se importam tanto com golfinhos e baleias.  Pra eles, uma baleia é "só mais um peixe".  É compreensível num país em que comer esses bichos é uma tradição milenar.  Matar uma vaca é tão cruel quanto, mas apenas uma minoria entre os neoprotetores se importam com isso.  Não parece ser relacionado com o risco de extinção - os pirarucus não parecem gozar do mesmo carisma e prestígio.  Tenho a impressão de que mesmo que baleias fossem muito abundantes, a matança delas continuaria incomodando muita gente.  A mim incomoda, provavelmente por razões culturais.

Wilbor se Revolta continua tendo o selo de Blog Amigo dos Golfinhos, assumindo todas as condições que este selo implica.


1. Este blog não prejudica, de maneira nenhuma os golfinhos, esses magníficos peixes alados.
2. Este blog não utiliza redes para pesca de atum.*
3. Os criadores desse blog não possuem roupas, ou acessórios pessoais feitos de partes de golfinhos.
4. Os criadores desse blog não tomam chá de genitálias de golfinhos para melhorar seu desempenho sexual - muito embora os benefícios trazidos chá de genitália dessas criaturas mágicas e boazinhas estejam relatados nos mais diversos estudos científicos.**
5. Sopa de golfinho tem um gosto horrível. Bem, é o que dizem.

*Não, nós não pescamos atum. Nem nas férias. Não, aqueles bichos que o Gabriel pesca são peixes-bois.
**Segundo a medicina chinesa. Já viu algum chinês equivocado? E chinês brocha, já viu? E golfinho brocha???


sábado, 31 de março de 2012

"Pano rápido"

Não é mentira: literalmente há anos tenho imagens de Millôr Fernandes que separei porque queria postar aqui no blog. Fruto de um livro dele que encontrei num sebo, e que me deixou maravilhado: eu já conhecia sua absurda sagacidade na escrita, mas percebi que não tinha real noção da sua genialidade gráfica. Comprei o livro (embora fosse caro, principalmente levando-se em conta que estava meio detonado!!). Depois fotografei algumas imagens dele para eventualmente colocar aqui.
A ocasião não aparecia, ao contrário das ocupações do trabalho e do estudo; fui esquecendo das imagens lá quietinhas, e acabei não o fazendo nenhum post delas.

Este é um dos piores motivos para postá-las, ainda que melhor do que nenhum: Millôr morreu. E o mundo -- e, mais especificamente, o Brasil -- ficou menos inteligente com isso.




Lá pelo fim da adolescência, eu pensei numa frase,que me fazia lembrar do estilão do Millôr: "Deus é grande, mas não é dois". Como quase tudo o que pensamos de bom, alguém já tinha dito isso antes -- no caso, o Lourenço Mutarelli, ainda que com uma entonação completamente distinta e mais melancólica -- mas ainda hoje eu rio quando penso que "em terra de olho, quem tem cego, errei."


Ficaram mais pobres o jornalismo, o humor gráfico, a ilustração, o teatro, as traduções e a intelectualidade livre em geral; o que disseram sobre o Chico Anísio vale aqui, ainda que com entonação distinta: morreram Millôr Fernandes.



segunda-feira, 12 de março de 2012

A Magia da Realidade - em português

Bom, eu já escrevi sobre este livro aqui no blog nesse post, mas acho que vale avisar que a versão brasileira acaba de ser lançada.  A tradução do título ficou bastante próxima do que eu havia previsto:

"A Magia da Realidade - como sabemos o que é verdade"

A capa é diferente da versão britânica e estranhamente diferente também da versão americana, que foi a que eu comprei por engano:

Versão brasileira 



Versão americana


 Versão britânica


Detalhe do livro


Sinceramente, não entendo o motivo dessas alterações, já que nessa obra, o Dave McKean pode ser praticamente considerado co-autor, uma vez que o que ele fez foi muito mais que simples ilustração.  Na minha opinião, a capa britânica é mais bonita.  Em relação à capa norte-americana, a imagem está inexplicavelmente espelhada e reduzida, o subtítulo vem em cima (??) com uma fonte sem graça e os nomes de Dawkins e McKean tem menor destaque...enfim, vai entender.

Bom, tá dado o recado.  Vale a pena pra quem tem criança, vale a pena pra quem não tem.

domingo, 4 de março de 2012

Humor é... (1)

Um dos conceitos mais importantes do chamado neodarwinismo ortodoxo,  é a caracterização da Evolução como uma luta pela sobrevivência, porém, não uma batalha travada pelos indivíduos, mas por seus genes.  Um tatu-bola nada mais é que uma máquina extremamente complexa que tem, por objetivo final, a manutenção  e reprodução de um gene específico, ou de um conjunto deles.  Quando um tatu-bola se reproduz, gera uma prole que carrega exatamente 50% de seu DNA.  Como um tatu-bola macho qualquer compartilha quase todo o seu DNA com uma tatu-bola fêmea, o tatuzinho-bola compartilhará com o pai praticamente 100% de seu código genético.  Trata-se de um processo de transmissão de genes muito eficiente.

Seguindo essa linha de pensamento, chega-se à conclusão óbvia de que nós, humanos, também somos veículos de transmissão de genes.  Por acaso, veículos bastante espertos.  Certamente mais espertos que tatus-bola.  Foram genes que construíram uma carapaça e deram aos tatus-bola a capacidade de se enrolar para se proteger de predadores.  Esses genes permaneceram no DNA dos tatus porque os indivíduos que não tinham esses genes tinham suas vísceras facilmente mastigadas por carnívoros, e animais que têm suas vísceras mastigadas por carnívoros tem mais dificuldade em se reproduzir.  Dessa forma, um ancestral qualquer do tatu que tivesse um pedacinho pequeno de carapaça já teria alguma vantagem em relação ao seu irmão que não tivesse.  O cérebro humano é também uma criação dos genes, possivelmente, a criação mais complexa e extraordinária desse grupo de moléculas.  O cérebro humano se desenvolveu porque ser um pouco mais inteligente que o macaco vizinho provou ser uma grande vantagem evolutiva.  Como está claro que a inteligência humana é uma manifestação do cérebro, pode-se afirmar que a inteligência é um atributo fenotípico, e deve ter evoluído junto com os cérebros.

Discutir o que é inteligência é uma coisa muito distante do meu campo específico de conhecimento, mas vamos ficar com as duas primeiras definições do Aurélio e com a Wikipedia:

inteligência

[Do lat. intelligentia.]
Substantivo feminino.

1.Faculdade de aprender, apreender ou compreender; percepção, apreensão, intelecto, intelectualidade.
2.Qualidade ou capacidade de compreender e adaptar-se facilmente; capacidade, penetração, agudeza, perspicácia.

Inteligência pode ser definida como a capacidade mental de raciocinar, planejar, resolver problemas, abstrair ideias, compreender ideias e linguagens e aprender.

Por mais que ainda existam pessoas que não reconheçam qualquer inteligência nos "animais irracionais", a inteligência humana teve que evoluir a partir de uma inteligência menor, e essa, de uma inteligência ainda menor, até o ponto em que teremos uma inteligência muito primitiva evoluindo a partir de alguma outra coisa que não era inteligente.  A primeira inteligência provavelmente foi, como todo o resto, um golpe de sorte: uma mutação que levou a uma vantagem evolutiva.

Não é difícil reconhecer alguma inteligência em animais.  Quem teve cães, gatos e outros bichos sabe que há cães mais e menos espertos.  Todos sabemos que cães são muito mais espertos que galinhas... Já as galinhas são mesmo animais muito estúpidos: eu pretendia continuar o raciocínio afirmando que galinhas são muito mais espertas que as minhocas que devoram, mas tenho minhas dúvidas.  Há quem diga que tudo que um cão faz, faz por "instinto" - normalmente gente que acha que a inteligência vem da alma e que alma é atributo exclusivo dos humanos normalmente têm dificuldades em reconhecer inteligência em animais, ainda que achem que seus bebês estejam se comportando como verdadeiros acadêmicos ao encaixar um cubo em um orifício quadrado, coisa que chimpanzés fazem com facilidade.

Bom, essa longa introdução serve somente para estabelecer que a inteligência é um fenômeno produzido pelos cérebros; existe porque genes capazes de gerar cérebros eficazes em  produzir mais inteligência foram recompensados com a sobrevivência.

Muitas das condições que levaram à evolução do cérebro humano não existem mais - o cara que não sacou que podia jogar sua lança na fera que vinha correndo, urrando e babando em sua direção não sobreviveu - mas o cérebro é um órgão altamente sofisticado e adaptável, e logo pôs-se a produzir outros fenômenos interessantes, sendo um deles o humor.

Humor é uma coisa muito difícil de definir.  Recorrendo novamente ao Aurélio:

humor

(ô) [Do lat. humor, oris.]
Substantivo masculino.

6.Capacidade de perceber, apreciar ou expressar o que é cômico ou divertido.

A Wikipedia deixa clara a dificuldade da definição do termo; em algum ponto, citando São Tomás de Aquino, o artigo diz que o humor pode ser visto como algo fundamental à existência humana.  Pode ser, pode ser...aparentemente rir faz bem, libera endorfinas e várias substâncias ligadas ao prazer.  Parece ser também um momento de alívio mental, e esse lado é explorado em um ótimo texto do Hélio Schwartsman, de 2001 (segundo texto nessa página).  Citando Arthur Koestler diz que o humor ocorre quando percebemos o choque entre dois contextos ou códigos de regras diferentes, coerentes, porém excludentes entre si:

Ou seja: quando observamos uma ação qualquer em curso (ou um raciocínio qualquer), temos uma certa expectativa de resolução; quando acontece alguma coisa e  o resultado não é aquele que esperaríamos, mas o resultado de uma outra ação qualquer, inesperada, nós nos surpreendemos.  Quando há alguma tensão ou expectativa sobre o que deveria acontecer, a  resolução de uma piada é um momento de alívio de tensão.  A gente ri de nervoso.

Schwartsman segue lembrando que nós rimos de coisas diferentes em idades diferentes: bebês e crianças riem de caretas, pré-adolescentes gostam de piadas escatológicas e adolescentes gostam de piadas sexuais.  A estrutura é sempre a mesma: algo inesperado acontece e leva ao resultado riso.  O comercial "itaú sem papel" é um bom exemplo:


O bebê rola de rir quando o pai rasga um papel na sua frente.  O que será que se passa na cabeça da criança?  "esse negócio é grande, quando meu pai mexe nele, ele se movimenta". De repente, o pai rasga um pedaço - movimentos devem gerar movimentos, não transformar um objeto grande em algo menos, fazendo um barulho estranho.  É uma relação não-óbvia.

Enfim, conforme envelhecemos, vamos percebendo relações não óbvias no plano abstrato.  Algumas pessoa são melhores que outras nisso.  A formação cultural tem algum peso na capacidade humorística das pessoas, mas não é determinante.  Claro que além de fornecer um certo vocabulário e repertório, a imersão cultural é intelectualizante.  Piadas só funcionam se as pessoas compartilham dos elementos necessários para a compreensão.  Ainda assim, há pessoas que são boas em perceber o humor, outras que além de perceber, se divertem produzindo humor.  Essas duas habilidades aparentemente estão relacionadas a algum tipo de inteligência.

Um indivíduo faz uma piada porque:

1. Percebeu uma situação que julgou engraçada e teve vontade de compartilhar.
É o humor situacional: um comentário no metrô, chamar a atenção de alguém com o olhar para uma situação qualquer, lembrar de uma história ou piada que tenha a ver com um determinado contexto;

2. Demonstração de habilidade intelectual.
Já li por aí que a produção humorística é uma característica mais comum em homens que em mulheres.  Embora a capacidade de entender piadas seja igual entre os dois sexos, contar piadas seria uma forma dos homens demonstrarem às mulheres a sua inteligência e habilidades sociais.  A enorme superioridade numérica dos homens entre os humoristas parece indicar que essa é uma hipótese razoável.

Um indivíduo não acha graça em uma piada porque:

1. Não foi capaz de abstrair os elementos que geram a situação contraditória.  Schwartsman traz dois bons exemplos:

"O masoquista é a pessoa que gosta de um banho frio pelas manhãs e, por isso, toma uma ducha quente". 

"O sádico é a pessoa que é gentil com o masoquista"

A compreensão do humor nessas frases requer um pensamento relativamente complexo, que vai além da simples compreensão do que é ser masoquista ou sádico:

- o masoquista é alguém que sente prazer no sofrimento;
- o masoquista da piada sente prazer em tomar banhos frios pela manhã;
- o masoquista toma um banho quente para  não ter o prazer do banho frio, sofre, e assim ter prazer.

No final fica assim: o masoquista gosta de não fazer aquilo que gosta de fazer.  A segunda frase segue uma lógica semelhante.

2. Não entendeu porque não partilha de um certo contexto.
Situação de piadas que só podem ser compreendidas por pessoas que tenham um conhecimento prévio qualquer: o apelido de alguém, gírias ou termos restritos a determinados grupos, idioma ou cultura de locais diferentes (Family Guy é um bom exemplo de humor muito autorreferente à cultura televisiva norte-americana).

3. Entendeu, mas não vê graça porque a piada é óbvia demais.
Conforme as pessoas vão envelhecendo, ganhando cultura e convivendo com humor, certas coisas deixam de ter graça porque a contradição envolvida já foi vista muitas vezes.  Acontece, por exemplo, quando ouvimos anedotas infantis (do tipo "a piada do pintinho caipira é 'pir'").  É um caso de diferença de elaboração intelectual.

4. Entendeu, mas não acha graça porque considera a piada "imoral".
Caso de quem, por motivos culturais (postura conservadora), fica chocado com o simples exercício hipotético de situações ofensivas.  É também o caso dos neuróticos do politicamente correto: não pode piada com nada, só de pintinho caipira mesmo.

O humor não lida, necessariamente, com preconceitos, ainda que utilize muito o preconceito como arma.  Talvez isso ocorra porque quando se faz uma piada, pressupõe-se uma certa "imunidade diplomática": percebe-se uma situação que só seria engraçada caso preconceito "x" seja invocado.  O humor do tipo "piadas de salão", dessas que comediantes como Ary Toledo costumam contar, são baseadas, quase que exclusivamente em preconceitos: português, puta, preto, japonês, brasileiro (safado ou esperto), nordestino, padre, freira, judeu, muçulmano, turco, médico, enfermeira, advogado, corintiano.  Outras figuras comuns são o papagaio, que às vezes entra como esperto, às vezes aparece como sidekick de algum espertalhão; o "Joãozinho", garoto travesso.

"O Manoel, viajando pelo Brasil, vê um papagaio falando, fica impressionado com o bicho e resolve comprar um.  O vendedor, um brasileiro meio safado, resolve tirar proveito do gajo e o vende uma coruja, dizendo ser um papagaio.  O Manoel não nota a diferença e leva a ave para Portugal.  Anos depois, volta ao Brasil e o vendedor pergunta: - e aí Manoel, o louro já aprendeu a falar?  E o portuga tasca: - aprender, não aprendeu...mas presta uma atenção!"

Em recente entrevista ao Roda Viva, Angeli perguntou ao Laerte se seria possível fazer humor com gay sem ser preconceituoso.  A pergunta e a resposta estão nos 3 primeiros minutos deste vídeo:


Concordo com o Laerte.  Quando se faz humor com gays (ou qualquer outro grupo), lida-se com o preconceito, porém, há uma tolerância.  Um reflexo disso é a chatice do humor televisivo brasileiro, extremamente limitado pelo que se pode ou não dizer.  Nesse sentido, o humor americano se beneficia do fato de que o país leva muito a sério as tais da Democracia e da Liberdade de Expressão, ainda que o país não se importe muito com democracia em outros países.  No Brasil não há nada na televisão tão ácido e engraçado como Family Guy - aliás, o Laerte citou, em texto recente no seu blog que mesmo a tradução do título do desenho e do tema de abertura foram "babaquizados" para o mercado brasileiro.  Nos EUA pode-se dizer tudo.

Seguindo com a idéia, preconceito é uma estratégia muito utilizada, porém, não a única.  É possível fazer piada sem apelar para preconceitos e, no Brasil, o Laerte é mestre nisso.


Vejam, a graça dessa tirinha vem do desfecho inesperado, completamente independente da sequência dos dois primeiros quadrinhos.  É o non-sense.

Esse é mais elaborado que o humor anedótico, porque requer que o receptor detecte uma mensagem sutil de um contexto no qual a punchline é non-sequitur.  O humor televisivo inglês (e derivados) se apoiou largamente nessa possibilidade humorística, e o fazem muito bem há muito tempo.  Não sei se Monty Python inaugurou o estilo na TV, com o Flying Circus, mas certamente o grupo fez escola.  Pra quem não conhece, aqui vai um quadro clássico da trupe britânica:


Na mesma linha temos "Big Train" e "That Mitchell and Webb look", ambos ingleses, e o canadense "The kids in the Hall", produzido por Lorne Michaels, do Saturday Night Live.

Mas nem por isso o humor inglês abdicou do preconceito como arma humorística.  Recentemente o Gabriel me indicou um seriado inglês, chamado "Life´s too short".  A tradução literal seria "A vida é muito curta", sendo que o short em inglês pode se referir tanto a curto quanto a baixo em estatura.  O programa é dirigido por Ricky Gervais, o criador e diretor do "The Office".  Gervais é brilhante, e se consagrou, sobretudo, por um tipo de humor awckward, ou seja, constrangedor.

O programa é estrelado por um anão relativamente famoso, Warwick Davis, que participou de vários filmes (Harry Potter, StarWars - neste último, como ewok). No programa, feito em formato documentário-falso, ele interpreta a si próprio, e tem uma agência que aluga anões para participações em filmes, TV e eventos de toda sorte, a "dwarves for rental".

As coisas que acontecem com ele são as mais chocantes possíveis, uma vez que o cara tem um ego gigante.  Gervais explora desde humilhações a quedas - e Warwick cai muitas vezes.  Uma cena do terceiro episódio se desenrola da seguinte forma:

Warwick inaugura seu website, que é um fracasso de acessos.  Lá pelas tantas, ele começa a receber mensagens humilhantes.  Descobre que se trata de um estudante de uma escola próxima e vai lá tirar satisfação.  Entra na sala e começa a ler, para a sala de aula e o professor, uma mensagem que recebeu:

"Seu trolzinho feioso, eu quero te amarrar e te espancar."
a turma ri, o professor pede silêncio e ele começa a comentar:
"agora, não entendo o porque de tanta fascinação comigo...claramente deve ter um fetiche por anões.
a turma volta a rir, ele gosta de estar sendo divertido e continua:
"quer me amarrar, não?  Me parece meio gay..."
(risadas)
"talvez esteja apaixonado por mim...um fetiche gay por anões.  Seu nome é Justin Palmer."
a turma silencia, claramente constrangida.  O professor chama o tal Justin Palmer.  Nesse momento, escuta-se um barulho de motor, a câmera foca o rosto do anão, que fica consternado.  O garoto indo em direção a ele é um tetraplégico.  O professor interroga o menino:
Justin, isso é verdade?  Você escreveu isso?  Você fez cyber-bullying com este homem?
Sim.
Nesse ponto, o professor obriga o menino a se desculpar.  O anão diz que não é necessário, mas o professor prossegue, o menino se desculpa e começa a voltar pro seu lugar.  Quando está no meio do caminho, alguém joga um papel nele e grita "gay".  A turma ri.  A câmera filma o anão várias vezes, que ocasionalmente olha para a lente, o que transporta o espectador para o constrangimento da cena.  Depois, a câmera filma rapidamente o menino tetraplégico, que tem uma lágrima escorrendo.

É o tipo de coisa que normalmente revolta as pessoas, especialmente quando se transcreve a situação, como fiz aqui.  Cenas como essa despertam o moralismo em muitas pessoas, antes de qualquer possibilidade de compreensão humorística.  Mas quem já viu "The office" sabe como Gervais trabalha, e há uma graça nisso.  O humor nessa cena consiste em alívio...é engraçado porque é muito errado.  E sabemos que é uma encenação, que isso não poderia acontecer.

Infelizmente não achei nenhum vídeo com legenda dessa série, mas deixo aqui uma cena em que Liam Neeson conversa com Gervais a respeito de fazer algum trabalho humorístico.  É o tipo de coisa que jamais poderia ser feito por aqui (e tem muita gente pensando "ainda bem, não queremos essa droga").


No making of, os atores que participam da série falam sobre o programa.  O depoimento mais interessante é o de uma anã, que explica que sim, estão mexendo com preconceitos...mas para atingir uma idéia de humor muito mais profunda do que se imagina numa olhada rápida.

Enquanto isso, no Brasil estamos processando comediantes por conta de piadas.  O post abaixo, do Gabriel, traz bons exemplos de como bobagens foram transformadas em celeumas nacionais.  Além das confusões do Gentili, teve o processo do rafa Bastos.

O humor deve ser entendido como arte.  Um cara como david Letterman, capaz de fazer piadas  todos os dias, um Gervais, capaz de nos fazer rir das situações mais fdps, entre outros, são artistas geniais.  Da mesma forma que não se cogitou censurar os quadros de assassinatos de Lula, FHC e outros na última Bienal, que não se cogita proibir estátuas nuas, fotografias da desgraça humana ou comprometedoras, deve-se respeitar a liberdade humorística - aliás, a liberdade de expressão de forma geral.