sábado, 6 de janeiro de 2018

Valeu, Carlos Heitor Cony! (ou "o jornal e eu")


Brasil, Mundo, Economia, Cotidiano, Esportes, Ilustrada, o suplemento semanal do dia e crônicas. Essa é a ordem na qual eu leio, desde criança, a Folha de São Paulo. Não era por mero acaso, óbvio. Os cadernos da Folha eram identificados por letras: Brasil (ou Poder)/Mundo = A, Economia (ou Dinheiro) = B e assim por diante. O lazer ficava pro final; minha única grande alteração em relação ao que a Folha planejava para mim era a inversão eventual entre esportes, ilustrada ou o suplemento semanal (folhateen, equilíbrio, turismo, informática): o que me atraísse mais no dia ficava pro final. A "microalteração" era a seguinte: eu sempre deixo UMA crônica pro final.


Sendo filho de professores universitários, eu tive a sorte de crescer numa casa em que se lia e havia livros disponíveis o tempo todo. O que pouca gente sabe é que a minha transição para "leitor adulto" ocorreu mais através do jornal do que dos livros. A Folha, periódico com o qual eu hoje mantenho uma relação de amor e ódio, foi o veículo responsável por me conduzir neste processo. A minha leitura de livros também se tornou mais madura, óbvio, mas pensando em retrospectiva, eu estou certo de que foi o jornal puxou o bonde.
Lembro exatamente de como e quando isso ocorreu: foi a partir da segunda metade do governo Sarney. Eu sempre gostei de conversar com adultos. Os almoços do departamento de geografia da UEM, onde os meus pais trabalhavam, eram um ambiente no qual a conversa gravitava muito em torno de política. Eu queria entender a razão pela qual aquele monte de "professores de gente grande" detestavam o presidente bigodudo.




A Folhinha, aos sábados, já fazia parte dos meus hábitos de leitura (aliás, nunca deixei de ler, enquanto tive o jornal impresso). Dali pra começar a dar uma espiada no resto do jornal foi um pulo. Eu, que já acompanhava, de alguma forma, a discussão política e gostava especialmente de quando o humor se referia à ela (cabaré do Barata, por exemplo), li toda a cobertura das eleições de 1989. Foi por ali que surgiu um gosto por pesquisas eleitorais: eu gostava de construir meus próprios gráficos, fazer projeções, etc. Se eu soubesse, àquela época, que um dia haveria algo como o Excel, certamente teria sido uma criança mais ansiosa. Só como ilustração, estão guardados, até hoje, todos os cadernos especiais da Guerra do Golfo e folhas de caderno nas quais eu contabilizava os arsenais dos EUA e Iraque em número de homens, armamentos e mísseis Patriot, Tomahawk e Scud.



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Hoje eu acordei com a notícia amarga do falecimento de um dos meus cronistas favoritos. Carlos Heitor Cony foi um dos colunistas que marcou a minha adolescência, como leitor. Toda vez que pego um exemplar impresso da Folha e abro na página A2, onde ficam os editoriais, meus olhos vão, automaticamente, pra parte de baixo das colunas centrais, onde eu costumava encontrar as suas crônicas. Foi naquele espaço que foi construída boa parte da minha noção cultural do Rio de Janeiro.

O Cony talvez tenha sido o primeiro nome que eu aprendi a reconhecer no jornal. Os dias de crônica dele eram melhores que os outros - os textos "conyferos" ficavam guardados pro final - o que significava que, apesar de ser posicionado pela Folha lá no comecinho (posição honrosa dentro do jornal), eu o deixava pro final (posição honrosa pela lógica da caixa de bombons - o melhor por último. Em tempos mais recentes, a posição de último bombom foi assumida pelo Antonio Prata - o Cony, que já experimentou amargores brasileiros demais, vinha ficando triste e amargo. Os dois publicavam no domingo, o Prata no topo da contracapa de Cotidiano, de forma que o transporte para o final era menor.

O escritor carioca, como todo bom cronista, de vez em quando fazia referência ao fato de que era um cronista e de que aquilo era uma crônica, de forma que eu entendi cedo o que era uma crônica e sabia que gostava de ler o gênero. A partir do Cony que fui descobrindo outros favoritos mais antigos: Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Fernando Sabino - todos esses só li postumamente. Também na Folha conheci o Moacyr Scliar - de quem ainda sinto falta.


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Eu estudei num colégio católico e cresci num bairro com grande concentração de professores universitários. No Colégio Marista pouquíssimos dos meus colegas de classe liam jornais (ou qualquer outra coisa que não os livros obrigatórios). Os pais de alguns assinavam "O Diário do Norte do Paraná", de forma que vez ou outra alguém comentava uma charge do Lukas, o cartunista local mais ou menos. A qualidade da redação sugere que ao menos duas meninas da minha turma eram leitoras mais assíduas de alguma coisa, mas não tenho certeza. Já no bairro em que eu cresci, a situação era outra: o Jardim Canadá era habitado por uma variedade de professores, a maioria da universidade. A minha casa era a última de uma rua sem saída, e os vizinhos da esquerda, em ordem, eram os seguintes: um casal de professores (sociologia e educação) com um casal de filhos da minha idade, um casal que na época não tinha filhos (Enfermagem e Zootecnia), outro casal com um filho um tanto mais novo (matemática e estatística). Esparsos pelo bairro de nove quarteirões tinha gente da agronomia, psicologia, direito, educação física, história e mais um número de professores do primeiro e segundo graus. Dessa forma, não demorou muito até que eu conhecesse mais gente que gostava de ler, inclusive mais gente que lia jornal.

Dos meus amigos que liam jornal, haviam os que liam a Folha (eu e o Gustavo) e os que liam Estadão (João Paulo e Livia). Eu era o mais velho desse grupo. O Estadão era um jornal estranho pra mim: os cadernos tinham outros nomes, a diagramação era diferente, além de ser um jornal normalmente mais gordo que a Folha. Eu achava um jornal maior e pior, discordava do grosso das opiniões, achava a seção de quadrinhos pobre: a Folha tinha Laerte (Piratas do Tietê) , Angeli (Chiclete com Banana), Fernando Gonsales (Níquel Náusea), Garfield, Dilbert, Hagar (e a porra do Glauco). Mas tinha uma coisa no Estadão que que invejava: eles tinham o Veríssimo.

Como o Veríssimo não escrevia no jornal certo (o que eu lia), eu só fui conhecer através de um livro, já mais velho. "Comédias da vida privada" foi o primeiro livro que comprei em livraria de aeroporto, numa ida à Fortaleza. O livro foi devorado na viagem e eu acabei lendo muitos outros do autor. Até hoje acho "errado" a Folha jamais ter contratado o gaúcho, mas enfim...tínhamos o Scliar.

Eu deixei de assinar a Folha em 2014, por ocasião da demissão do Xico Sá. Continuo lendo online porque o meu pai não deixou de assinar e é difícil vencer um hábito tão antigo e com tanto valor pessoal. Ainda considero um jornal menos escroto que Estadão e O Globo, mas não tenho ácido gástrico suficiente pra engolir, digerir e assinar eu mesmo. O jornal contratou o Kim Kataguiri (KK)quando interessava, depois demitiu quando a coisa arrefeceu (kkkkk!!!). O cara agora ganha dinheiro vendendo um livro chamado "Quem é esse moleque pra estar na Folha". Eu gostaria que o jornal respondesse a pergunta, com sinceridade. Eu tenho uma teoria...por outro lado, a Folha tem o melhor cronista da geração atual, o Antonio Prata. O cara tem a minha idade, tenho a impressão de que caminha pra se tornar o maior dos cronistas brasileiros.

Enfim, a morte do Cony me fez sentir falta, novamente, do jornal de papel. Ler o jornal (e não notícia a notícia na tela do celular) é um ritual diferente. As coisas têm os seus lugares, como o cantinho do Cony, o topo da contracapa da ilustrada do Zé Simão. Segurar o jornal completamente aberto uma habilidade adquirida. Eu olho com algum desdém pra gente que não sabe segurar jornal ou que precisa dobrá-lo para ler - coisa que os bons leitores só fazem acima de uma certa velocidade de vento, quando é permitido ler com uma página inteira na vertical - uma página dobrada só com furacão. É engraçado conciliar isso com a minha adoração pelo conforto do kindle, especialmente quando comparado a livros muito grossos.

Os grandes escritores têm a habilidade de, através da linguagem escrita, conduzir o leitor através de uma certa forma de enxergar as coisas que é peculiar, interessante, pitoresca. Cronistas são os caras que fazem isso com os mais cotidianos dos assuntos, a conta gotas, em geral com uma dose de humor. Há quem considere a crônica como uma forma menor da arte literária, eu não. Mal passaram as minhas saudades do Scliar e vai-se o Cony. Veríssimo, eu preciso de pelo menos mais dez anos teus, cara...o mundo anda muito triste, como as última crônicas do teu finado colega.



Uma carta e o Natal (31/12/2017)

Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o mistério —e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel viria, com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.

Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma. Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.

Na escola te corromperam. Disseram que Papai Noel era eu —e eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho. De qualquer forma, pediste um acordeão e uma caneta— e fomos juntos, de mãos dadas, escolher o acordeão.
O acordeão veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore, já vai saber o preço, o prazo de garantia, o fabricante. Não será o mágico brinquedo de outros Natais.

Quanto à caneta, também a compramos juntos. Escolheste a cor e o modelo, e abasteceste de tinta, para "já estar pronta" no dia de Natal. Sim, a caneta estava pronta. Arrumamos juntos os presentes em volta da árvore. Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.

E apanhei a caneta. Escrevi isto. Não sei, ainda, se deixarei esta carta junto com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais roubado fui eu. Meu Natal acabou e é triste a gente não poder mais dar água a um velhinho cansado das chaminés e tetos do mundo.




Se eu morrer amanhã (05/03/2017)

Se eu morrer amanhã, não levarei saudade de Donald Trump. Também não levarei saudade da operação Lava Jato nem do mensalão. Não levarei saudade dos programas do Ratinho, do Chaves, do Big Brother em geral. Não levarei nenhuma saudade do governador Pezão e do porteiro do meu prédio.


Se eu morresse amanhã, não levaria saudade do rock, dos sambas-enredo do Carnaval, daquela águia da Portela nem dos discursos do Senado e da Câmara, incluindo principalmente as assembleias estaduais e a Câmara dos Vereadores.
Se eu morrer amanhã, não levarei saudades dos buracos da rua Voluntários da Pátria, das enchentes do Catumbi, dos técnicos do Fluminense, dos juízes de futebol, da Xuxa e das piadas póstumas do Chico Anysio. Não levarei saudade do Imposto de Renda e demais impostos, e muito menos levarei saudade das multas do Detran.

Não levarei saudade da vizinha que canta durante o dia uma ária de Puccini ("oh mio bambino caro") que ela ouviu num filme do Woody Allen. Aliás, também não levarei saudade do rapaz que mora ao meu lado e está aprendendo a tocar bateria.
Não levarei saudade das cotações da Bolsa, das taxas de inflação e das dívidas externas do Brasil. Não levarei saudade dos pasteis das feiras livres nem das próprias feiras livres, também não levarei saudade dos blocos de índio que geralmente fedem mais do que os verdadeiros índios.

Não levarei saudade dos lugares em que não posso fumar, das lanchas de Paquetá e dos remédios feitos com óleo de fígado de bacalhau. Não terei saudades das mulheres que usam silicone e blusas compradas no Saara.
Enfim, não levarei saudade de mim mesmo, dos meus fracassos e dívidas. Finalmente, não terei saudades dos milagres dos pastores evangélicos nem de um mundo que cada vez fica mais imundo.