segunda-feira, 11 de julho de 2011

o duelo mais covarde do século

O Brasil não é uma potência científica, e nunca foi.  Apesar da recente e discreta melhora das condições de trabalho, do aumento do número de bolsas e as tentativas de repatriar pesquisadores que atuam fora do país e também atrair pesquisadores estrangeiros com incentivos que chegam à vultuosa soma de R$5 mil, ainda somos um país no qual uma única universidade concentra 10% dos doutores e 25% da produção científica nacional.

Essa constatação serve para dizer que Miguel Nicolelis não é produto da academia brasileira - ou melhor, é uma exceção; da mesma forma que um Gustavo Kuerten não surgiu aqui porque com tantos jovens jogando tênis seria inevitável que algum se tornasse o melhor do mundo.

Nicolelis, pra quem não conhece, é um neurocientista paulistano, formado em medicina pela USP, onde obteve também seu doutorado em fisiologia.  O que esse cara tem de diferente, é o fato de que foi considerado, pela revista Scientific American, um dos 20 cientistas mais influentes da atualidade, além de ter sido o primeiro brasileiro a ter seu estudo publicado na capa da revista Science e ser o brasileiro mais cotado para receber um prêmio nobel desde Cesar Lattes¹.

Pois bem...o Brasil não só produz pouco, como divulga pouco a ciência.  Os mais conhecidos autores de divulgação científica brasileiro nos últimos anos são o físico Marcelo Gleiser e o médico Dráuzio Varella.  Coincidentemente ambos com várias participações em programas da Globo (Fantástico) e colunistas da Folha.  Dráuzio me agrada mais: adota um estilo curto e grosso e não faz concessões à pseudo-ciência, enquanto o Gleiser parece ter tanto medo da rejeição que acaba fazendo um estilo conciliador, que às vezes, acaba por comprometer o argumento.  Não é por chatice, mas a obra moderna fundamental da divulgação científica (opinião minha, mas compartilhada por muitos entusiastas do tema), é "O mundo assombrado pelos demônios", de Carl Sagan², e explica direitinho o porque as pseudociências são tão perigosas, e mostra ainda como a ciência preenche de forma mais adequada - e bela - o papel de explicar o universo.

Com Nicolelis, parece que temos, finalmente, um divulgador científico de primeira magnitude:

1: Trata-se, inquestionavelmente, de um grande cientista.

2: É um visionário.  à exemplo de Sagan, Nicolelis vê na ciência, uma arma poderosa de transformação social.  Ano passado lançou o Manifesto da Ciência Tropical : um novo paradigma para o uso democrático da ciência como agente efetivo de transformação social e econômica no Brasil - vale muito a pena ler.

3: Não faz concessões aos bobocas das pseudociências - mas sem perder a ternura: trata-se de um sujeito extremamente simpático e gentil.  Uma das frases preferidas dele nesse sentido é a seguinte: "Se a palavra 'milagre' não tivesse sido adotada por outro ramo de negócio, deveria ser alocada na neurociência, porque fazemos umas coisinhas melhores"

Bem, mês passado foi lançado "Muito além do nosso eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas - e como ela pode mudar nossas vidas".  Nesse livro, o cientista fala do novo paradigma da neurociência - pelo qual é o principal responsável.  Lembram dos esquemas que mostravam um cérebro setorizado?  Em tal lugar fica o centro da fala, ali os sentimentos, aqui as memórias, acolá a língua pátria...pois é, aparentemente tudo isso é bobagem.  Eu desconfiava de uma coisa que vejo há muito tempo: os cursos "desenhando com o lado esquerdo do cérebro" - o Gabriel certamente conhece bem essa história.  Esse paradigma é conhecido, na neurociência como "localizacionista".

Nicolelis é um "distribucionista": demonstrou que o cérebro não é setorizado.  As memórias ou qualquer comportamento não se alocam numa parte específica do cérebro, mas em todo o órgão, e são resultado de uma interação entre "populações de neurônios".  Nesse ponto a gente costuma lembrar daquelas imagens com partes diferentes do cérebro acendendo e apagando em resposta a determinados estímulos.  Ocorre que essas imagens detectam a atividade máxima dos neurônios, e os neurônios não precisam "falar tão alto" para serem ouvidos no processo maior.  Os processos neuronais ocorrem em infinitos circuitos paralelos, e um conjunto de neurônios falando baixinho influenciam, de forma determinante, para o resultado dos processos neurais.  Enfim, ainda estou lendo o livro - acreditem, o tema é interessantíssimo e a abordagem do Nicolelis é fantástica, leiam.  Voltarei a escrever quando terminar a leitura.

O importante é o seguinte: esses estudos resultaram em aplicações que permitem que o cérebro "se liberte" do corpo.  Esses princípios possibilitaram a uma macaca controlar um braço mecânico para apanhar comida e levar à boca apenas com o pensamento, e que uma outra macaca na Carolina do Norte fizesse com que um robô andasse no Japão.  Teve ainda um bônus, só porque o cara é muito foda: acidentalmente Nicolelis acabou descobrindo uma terapia de eletroestimulação para o mal de Parkinson.

Com essas descobertas, Nicolelis pretende desenvolver próteses mecânicas controladas pela mente, como braços, pernas e até exoesqueletos para tetraplégicos.  Num futuro mais remoto, acredita que essa tecnologia poderá possibilitar que nossos cérebros comandem avatares e se conectem à internet, ou como ele chama essa nova rede, a "brainet".

Tudo isso pra chegar no que me motivou a escrever esse post.  Nicolelis foi convidado a participar de um debate na Flip.  Interessante, pensei.  Funcionaria assim: Nicolelis expõe mais ou menos o que está no livro, fala de seu centro de pesquisa em Natal e da escola de educação científica, e algum outro cientista ou jornalista comenta e faz perguntas, com a participação da platéia.  Mas não foi bem assim.  Resolveram chamar um intelectual para debater e questionar moralmente o trabalho.  O escolhido foi o "filósofo"³, professor de teologia e articulista da Folha, Luiz Felipe Pondé.

Não consegui assistir o debate, mas tenho encontrado fragmentos de vídeos e reportagens que mostram o seguinte: Nicolelis tinha uma expectativa muito boa.  Lá pelas tantas, estava com a voz embargada ao comentar seu sonho de fazer com que, na abertura da Copa de 2014, uma criança tetraplégica brasileira entre com a seleção, caminhe até o centro do campo e dê o pontapé inicial da Copa. O tal exoesqueleto é uma realidade muito próxima, e além de ser comandado pelo cérebro, devolve estímulos, de forma que a pessoa sente coisas com a prótese e ainda exercita os músculos.  Quem poderia ser contra tal coisa?

Pondé.


O video completo não está disponível em lugar nenhum (espero que alguém coloque, nesse caso eu atualizo aqui).  Pois bem, Pondé abriu sua fala dizendo-se muito preocupado, pois as aplicações propostas não passavam de mais um passo em direção à eugenia.  Adotou uma postura niilista, no sentido dostoievskiano mesmo (se Deus não existe, tudo é permitido).  Coloca que a ciência não dá sentido à vida, critica a "filosofia pobre" dos cientistas, etc...segundo o que li, foi prontamente rebatido.  Nessa entrevista, feita após a mesa, percebe-se a perplexidade de Nicolelis diante do que foi dito por seu "oponente" - o trecho a que me refiro começa em 2min e 15s:


Pondé enquanto colunista da Folha foi um cara que me chamou a atenção por um tempo, mas foi ficando claro que se trata de um polemista fraco.  Coincidentemente essa semana eu recebi uma edição da veja, acho que brinde da editora abril, e a entrevista das páginas amarelas é dele.  Pondé critica longamente os "jantares intelectuais", nos quais os comensais expõem seus esforços para melhorar o mundo andando de bicicleta ou reciclando o lixo - sobre o que deve-se conversar em jantares?  Fala ainda sobre a auto-santificação da esquerda (verdade) e da superioridade da filosofia cristã sobre tal posição, uma vez que os santos reconheciam que eram pecadores, enquanto esquerdistas são incapazes de admitir falhas morais em sua doutrina.

Trecho da entrevista da veja:

O senhor acredita em Deus?
Sim. Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em Deus, é porque acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por exemplo, à origem do universo. Não que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo – pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado. Lembro-me sempre de algo que o escritor Chesterton dizia: não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou em si mesmo, que é a coisa mais brega de todas. Só alguém muito alienado pode acreditar em si mesmo. Minha posição teológica não é óbvia e confunde muito as pessoas. Opero no debate público assumindo os riscos do niilismo, e sou muitas vezes acusado de niilista. Quase nunca lanço a hipótese de Deus no debate moral, filosófico ou político. Do ponto de vista político, a importância que vejo na religião é outra. Para mim, ela é uma fonte de hábitos morais, e historicamente oferece resistência à tendência do estado moderno de querer fazer a cura das almas, como se dizia na Idade Média – querer se meter na vida moral das pessoas.

Por que o senhor deixou de ser ateu?
Comecei a achar o ateísmo aborrecido, do ponto de vista filosófico. A hipótese do Deus bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e um drama moral muito maiores do que o átomo, me atraiu. Sou basicamente pessimista, cético, descrente, quase na fronteira da melancolia. Mas tenho sorte sem merecê-la. Percebo uma certa beleza, uma certa misericórdia no mundo, que não consigo deduzir a partir dos seres humanos, tampouco de mim mesmo. Tenho a clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na tradição teológica.

Essa entrevista é absurda em tantos níveis, que eu não posso deixar de comentar algumas coisas:

1: O cara é um filósofo que "foi ateu por muito tempo", mas deixou de sê-lo porque acha o ateísmo "aborrecido do ponto de vista filosófico".  Eu não sou filósofo, mas "aborrecimento" não parece ser um argumento válido para definir uma posição a respeito do tema.  Mas Pondé parece precisar da fantasia e achar ciência uma coisa chata.  Só posso deduzir duas coisas disso: Pondé não entende muito de ciência e nunca foi um ateu fundamentado.  Declarar-se ex-ateu para um filósofo é um tiroteio no pé.

2: Pondé considera a religião como a nossa fonte de hábitos morais.  O Dawkins cuida bem dessa questão...parece claro que a nossa ética tem raízes iluministas, e não bíblicas - para nossa sorte.

3: Deus é a hipótese mais elegante para explicar a origem do universo?  Onde está a riqueza filosófica nisso?  O que há de elegância num estalar de dedos ou no trabalho de sete dias descrito no gênesis?  Elegante é a física, a evolução, o cosmos.

4: Acreditar na história, na ciência ou em si mesmo é bobagem?  Pondé é contra a realidade.

É incrível que um cara desses seja levado tão a sério.  Aliás, é frequentemente convidado para debater toda sorte de coisa na Globonews e tem uma coluna semanal na Folha.  Mais incrível ainda que esse tenha sido o intelectual selecionado para debater com Nicolelis, sem dúvida uma mente brilhante.  Eu estudei em colégio católico e não consigo imaginar nenhum dos irmãos maristas falando tanta bobagem em nome da teologia.  Achar que reabilitar um tetraplégico é um projeto de eugenia é foda.

Me parece que o Brasil, além de divulgação científica, carece também de polemistas de qualidade...na linha sucessória do Manhattan Connection, que sempre conta com um polemista no time, tivemos Paulo Francis, Arnaldo Jabor e Diogo Mainardi.  Agora, o rei disso no Brasil, a nossa jóia da coroa é, certamente, Olavo de Carvalho.  Em comum, o fato de que todos esses tem um claro viés de direita, ou pelo menos anti-esquerda.

Já a Inglaterra, por outro lado, alem de produzir cientistas relevantes em bom número, produz ainda bons divulgadores científicos, humoristas e polemistas.  Um exemplo de polemista de altíssimo nível é o jornalista e professor de literatura Christopher Hitchens.  Em comum com os brasileiros citados, o fato de que é anti-esquerda.  É ex-marxista e apoiou Bush nas políticas intervencionistas americanas, embora tenha apoiado Obama contra McCain.

Um exemplo do Hitchens em ação:


Bill Maher é um comediante americano, um dos queridinhos da esquerda americana desinformada e péssimo representante dos ateus americanos "wannabe".  É dele o filme religulous...bobinho pra cacete.  Hitchens acusa, nesse vídeo, que Maher já havia feito umas 5 piadas sobre o QI de Bush, e que aquele era o tipo de piada da qual as pessoas burras agora dão risada, aquelas pessoas que vaiam na platéia porque se sentem mais espertas que o presidente...o olhar de Maher é impagável - foi abandonado por um de seus heróis.

Agora, Hitchens, ao contrário dos companheiros brasileiros, é tido como um dos mais respeitados intelectuais britânicos, justamente porque faz o que faz pela razão, não por necessidade orgânica de chamar a atenção e aparecer.

Uma polêmica levantada por Hitchens, muito bem fundamentada está no livro "The missionary position: mother Teresa in theory and practice".  Aqui Hitchens coloca em xeque a bondade da freira.  Fez uma extensa pesquisa e demonstra que a maior parte do dinheiro arrecadado para ajudar os pobres da Índia (muitas vezes arrecadado com ditadores de países miséráveis, como Jean-Claude Duvalier), foi aplicado na construção de conventos e não nos poucos muquifos que ela chamava de hospitais.

Esses fatos são tidos hoje como inquestionáveis, exceto, é claro, para a igreja católica.  Agora, imaginem que o cara é tão respeitado, que foi ele o convidado pelo Vaticano a advogar contra Madre Teresa em seu processo de beatificação.  Enfim, o cara joga em outro nível.

Voltando ao começo do post, deixo aqui o vídeo do Nicolelis no Roda Viva, onde ele explica o projeto de Natal e pincela aquilo que viria a se transformar no tal Manifesto do qual falei lá em cima.


Enfim, acho que esse é um caso em que vale a torcida pelo Nobel desse cara.  O Brasil precisa de uma celebridade desse calibre na ciência, acho que faria muito bem ao país.




1) César Lattes não ganhou o Nobel de física de 1950 por um erro (ou não).  Ele liderou a equipe que descobriu o "méson pi", e por algum motivo estranho, quem foi laureado foi o americano que redigiu o estudo - assinado por Lattes.  Segundo consta na Wikipedia, "No museu de Niels Bohr, em Copenhague, Dinamarca, há uma carta em que está escrito o seguinte: 'Por que César Lattes não ganhou o Prêmio Nobel - abrir 50 anos depois da minha morte'. Como Bohr morreu em 1962, somente em 2012 saberemos a resposta do enigma."

2) A grande obra de Sagan, na verdade é "Cosmos".  Mas "O mundo assombrado pelos demônios" me parece mais relevante do ponto de vista filosófico.

3) O que precisa fazer pra ser filósofo?  Basta o diploma?

4) Nicolelis é palmeirense fanático, a ponto de ter proferido seu seminário na academia sueca (como indicado ao prêmio Nobel), vestindo a camisa do Palmeiras, com patrocinadores e tudo, só porque o dia em questão era a "onda verde", um dia em que os palmeirenses saem de casa vestindo as cores do clube.

5) Desse post acho que ainda vale escrever algo específico sobre Hitchens,  além de um outro sobre o livro do Nicolelis.  Veremos.