quarta-feira, 25 de abril de 2018

Morte e vida Severina

O motivo deste texto é recomendar a leitura de "Morte e vida Severina" e relatar a minha emoção em ver a versão animada, linkada adiante, mas no fundo é pura digressão.

Li a obra prima de João Cabral de Melo Neto na escola, por vontade própria - ou, como tudo, um pouco provocada. Salvo engano foi em 1992, oitava série. A minha turma foi a penúltima a ter aulas de "Organização Social e Política do Brasil" (OSPB). Pra quem nunca ouviu falar nisso, OSPB era uma disciplina que reunia conteúdos de Ciências Sociais e explicava o funcionamento do sistema político, administração pública, um tiquinho de Direito Constitucional.  Mesmo manco, o conteúdo me interessava muito, até porque eu não tinha noção nenhuma do que me faltava de fato, os conteúdos de Filosofia e Sociologia, amputados pelos governos militares.

Eu estudei numa escola particular católica da primeira série ao terceiro colegial, o Colégio Marista de Maringá. Era considerada uma ótima escola, na qual a elite maringaense educava os seus filhos. A maioria dos alunos era composta por filhos de políticos, empresários, grandes fazendeiros e profissionais liberais bem sucedidos. Tinha garoto do primeiro colegial que andava de moto, crianças cujos pais eram donos de aviões teco-teco e um bom número de alunos que praticavam hipismo...só pra ilustrar os "problemas de gente rica" que faziam parte do cotidiano do Marista, teve uma menina que ficou famosa por ter tido o nariz arrancado por uma mordida de cavalo. Eu era um dos poucos filhos de professores. Junto com os filhos de bancários e funcionários públicos, fazia parte de uma  pequena "segunda classe" na escola. Lembro de um negro nos meus 11 anos naquele colégio. 

Naquele tempo não me parecia que os pais do Marista se incomodassem com "doutrinação comunista". Meus professores de história, geografia e OSPB eram, provavelmente, pessoas de esquerda. Lembro de professores que promoveram debates em sala de aula sobre as eleições de 1989  (5a. série). Lembro de uma aluna criticando o comunismo, num desses debates, com um argumento infalível: "então o Roberto Freire devia dar metade das suas coisas pra uma família pobre". O Roberto Freire era o candidato pelo PCB, as pessoas achavam que ele era comunista - era o candidato do então reitor da Universidade Estadual de Maringá, então meu vizinho, que o trouxe pra falar num evento de colação de grau no ginásio esportivo da cidade.

Tive, portanto, algumas dessas professoras de história que praticavam a "doutrinação marxista" através do péssimo hábito de evidenciar as coisas feias do país tropical e explorar as suas raízes. Preciso dizer que essas professoras foi mal sucedidas, em grande parte: até onde tenho notícias, nenhum dos meus colegas se tornou um comunista. É possível e provável que hoje alguns deles pensem o contrário, que "O Marcelo virou comunista, um a mais do que o limite do aceitável".

Voltando ao motivo do texto, eu já entendia, em abstrato, o que significava a seca no Nordeste.  Primeiro porque o semiárido nordestino, a seca, a fome, faziam parte da paisagem cultural brasileira. As gretas de contração (procurem e aprendam), o gado magro ou morto, os retirantes, as crianças magras ocupavam, com uma  triste frequência, parte importante dos noticiários na TV - sinto informar, mas quem nasceu para a política no período pós-Bolsa-família não tem noção da gravidade do problema.

Lembro-me de uma série de livros adotados na disciplina de OSPB chamada "Viagem pela Geografia". Os livros dessa série eram parcerias entre um autor ficcionista e um professor universitário do ramo. Eram pequenos romances que buscavam ilustrar aspectos relevantes do conteúdo didático. Lemos dois desses: "Cuba em perspectiva", de Fernando Portela (jornalista) e José Herculano da Silva e "A seca no Nordeste", parceria de Fernando Portela com o geógrafo Joaquim Correia de Andrade. Imaginem quais seriam as reações dessa elite emebêelizada dos dias de hoje? Enfim, o livro sobre a seca explicava conceitos que eu não conhecia, foi a primeira vez que tive contato com o conceito de "indústria da seca". Certamente uma das primeiras vezes em que eu entendi o funcionamento grosseiro da política como instrumento de perversão. A ideia de que as secas no nordeste eram exploradas por coronéis e políticos para a manutenção de seus "currais eleitorais" me fez compreender, pela primeira vez, que certos políticos preferiam e agiam ativamente para não educar o povo. Preferiam manter a população na ignorância impedindo-a de enxergar suas reais motivações ou não investir em saúde, fazendo do tratamento das enfermidades uma graça concedida  através da devoção às suas figuras, concretizada eleitoralmente.

Em algum momento nessa discussão, não sei se no livro ou no debate de sala de aula, foi citado o poema de João Cabral de Melo Neto. O poema "Morte e vida Severina" foi, para mim, ao mesmo tempo um choque de realidade e abstração. A compreensão do tema me deu uma sede de desvendar as sutilezas da escrita do autor que, no fundo, é direto pacas. Foi capaz de colocar imagens na minha cabeça que me fizeram chorar. Foi arte que transformou, para mim, o flagelo da seca em realidade concreta.

Meu segundo contato com a obra foi também na escola. Novamente numa aula de história, novamente com uma fracassada doutrinadora do comunismo. O filme "Morte e vida Severina", de 1981, apresenta a versão musicada de Chico Buarque, só porque na vida da gente tem desses momentos em que a genialidade pura se manifesta e, se tem algo de que este país não padece, é da falta das artes.


O trecho mais conhecido do poema, talvez por conta da versão do Chico, é quando Severino "Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério":



Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida


É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio



Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida



É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo



É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo



É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada não se abre a boca



É a conta menor que tiraste em vida


É a parte que te cabe deste latifúndio
(É a terra que querias ver dividida)



Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada não se abre a boca



Descobri agora uma animação do poema, já não tão recente, que merece muito ser vista. É bonita em todos os sentidos: fora a poesia, o desenho é lindo, apresenta uma estética de quadrinhos e uma sensibilidade para retratar a crueza da realidade de "Morte e Vida" que me pôs a escrever.


Morte e Vida Severina é uma obra que deveria fazer parte do repertório de todo brasileiro. Rever esse poema me faz pensar no quão artificial e cruel é a manutenção da pobreza das populações mais frágeis do país. Ou em como um partido como o PMDB - agora sem "pê" - serve não apenas aos interesses do mercado mas, como um partido que funciona como uma confederação de coronéis e caciques regionais, lhe interessa, sistemicamente, o retorno dessa condição que parecia superada: a exploração da fome como instrumento de domínio e controle social.

Aziz Ab´Saber escreveu, em 1999, um texto chamado "Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida", que considero um dos textos mais geográficos, de fato, já produzidos no Brasil. Pra quem se interessar, o link está aqui. Eu recomendo a leitura integral, mas como sei que a primeira parte do texto, que trata da geografia física requer uma certa familiaridade com o jargão da Geomorfologia, sugiro que comecem a leitura pela segunda parte do texto "A última grande seca do século".

Há seis anos, o Nordeste encara mais uma grande seca. Dessa vez, não vimos as imagens das ondas de retirantes chegando aos grandes centros urbanos, do gado morrendo, do drama da fome. Isso se deve, incontestavelmente, aos programas de segurança alimentar, em especial, ao Bolsa-família. Os retrocessos promovidos por Michel Temer e seu governo, em nome da entidade "O Mercado", representado no Planalto pelo PSDB, e dos interesses dos caciques regionais de seu partido, o PMDB, de latifundiários, senhores de engenho do século XXI.

Enfim, a produção artística de um país é certamente um instrumento civilizatório. Artistas são especialistas em ilustrar, comunicando-se com as nossas sensibilidades, a condição humana. Morte e Vida Severina é uma dessas obras que, em minha experiência pessoal, serviu como gatilho para conectar um conhecimento formal, que já existia em mim, com a importância de tê-lo e, mais importante, de sensibilizar-me para com a realidade descrita.


"a realidade é tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta."

"Uma faca só lâmina", João Cabral de Melo Neto

domingo, 8 de abril de 2018

Mascuplicando o mansplaining

Um dos conceitos mais interessantes que surgiram na última década, do ponto de vista de artilharia retórica, é o de "mansplaining". É um produto do feminismo moderno importantíssimo, porque extrapola as fronteiras do sexismo clássico (opressão homem sobre mulher), informando a qualquer ser humano a sensação de estar oprimindo ou a de ser oprimido, no plano retórico.

Mansplaining é uma definição recente para um problema antigo, e eu sinto que deveria ser mais difundido por estas bandas, ou pela adoção do termo original, ou através da criação de um neologismo similar. Sugiro "mascuplicação" - se não for acatado, dou de presente pra medicina - talvez sirva pra descrever um procedimento cirúrgico muito específico para homens que ninguém sabe direito o que é:

- Amanhã serei submetido a uma mascuplicação...
- Pra quê?
- Não é da sua conta.

Também serviriam "homexplicação" ou, se quisermos o estrangeirismo, "mansplicação".

Como eu sei que a maioria dos brasileiros ainda (isso vai pegar) não sabe o que mansplaining significa, vou mascuplicar aqui (vamos fazer pegar!). Mansplaining consiste em explicar alguma coisa pra alguém assumindo, num tom condescendente, que o interlocutor sabe muito menos que você sem que existam motivos para tanto. Normalmente ocorre no sentido homens ➨ mulheres, embora possa ocorrer entre mulheres, de mulheres para homens ou entre homens - eu tenho várias histórias de gente mascuplicando coisas pra mim (uuuhh....).

Acusar alguém de mansplaining geralmente é um golpe forte de retórica: expõe a postura arrogante do mascuplicador, a obviedade do objeto, e a ignorância daquele em não percebê-la - trata-se, portanto, de uma arma muito útil no arsenal retórico. Agora: como dizia o poeta, "com grande poder vem uma grande responsabilidade" (Parker, Ben - 2002). É muito fácil acusar alguém falsamente de mascuplicação.

Neste artigo recente a jornalista Giuliana Vallone (secretária-assistente de redação do jornal) explica bem o conceito de mansplaining, e logo depois ilustra-o incorretamente com a sessão do STF que negou o Habeas Corpus pleiteado pela defesa de Lula. A autora acusa os ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski de mascuplicar para a ministra os efeitos da decisão dela.

Eu assisti a sessão inteira. Confesso que nos exemplos citados, eu não vi a condescendência que a jornalista da Folha enxergou. Para a autora, depois de diversos exemplos claros de mansplaining, o pior momento foi a acusação de Marco Aurélio de que o voto de Rosa Weber não estava claro. Reproduzo aqui o trecho destacado na reportagem:



“Rosa, Vossa Excelência me permite um aparte?”, disse Marco Aurélio. “Pois não, ministro Marco Aurélio, com muito gosto”, respondeu Rosa, com expressão de quem já sabe o que vem pela frente.

“Se a apreciação dos pedidos formulados nas [ações] declaratórias de constitucionalidade fosse hoje, haveria maioria para deferir a liminar, ante a evolução do ministro Gilmar Mendes”, afirmou ele.

Antes de conseguir respondê-lo adequadamente, a ministra também precisou se explicar a Lewandowski, que irritado, defendeu que considerando a posição de Rosa, “a corte não pode evoluir jamais”.

Cármen Lúcia, presidente do STF, saiu em defesa da colega. “Ministro, a ministra Rosa Weber justificou muito bem, exatamente dentro da opinião dela, então acho que há de se respeitar.” Foi, entretanto, também interrompida por Lewandowski, que argumentou que, no colegiado do Supremo, a troca de ideias é cabível.

“Com muito prazer. Mas tem um detalhe: eu estabeleci premissas teóricas”, disse Rosa, antes de ser interrompida novamente (a essa altura, pela terceira vez).

E então, veio a cereja do bolo. “No início, eu confesso que não sabia a natureza de seu voto. E eu tenho alguma experiência no colegiado”, afirmou Marco Aurélio.

“Quem me acompanha nesses 42 anos de magistratura não poderia ter a menor dúvida com relação ao meu voto, porque eu tenho critérios e procuro manter a coerência das minhas decisões”, respondeu a ministra, que, ao retomar seu voto, já nem conseguia mais lembrar onde havia parado.



A afirmação final de Marco Aurélio "E eu tenho alguma experiência no colegiado" é de fato arrogante. Mas o resto da discussão me parece estar dentro dos parâmetros normais. Como eu tenho alguma experiência em assistir esses caras em sessões desde muito antes de virar modinha (problema meu), a coisa toda me parece natural para a escrota vaidade do Marco Aurélio, descrita em detalhes nesses dois artigos da piauí parte 1 e parte 2 (recomendo).

De resto, a ministra se saiu muito bem. Há inúmeros relatos na mídia de pessoas que não conseguiam adivinhar em que direção o voto de Rosa Weber caminhava, mas esse é um outro problema: os ministros são prolixos, vaidosos e GOSTAM de tirar os coelhos de suas cartolas no finalzinho, postura besta, do ponto de vista da objetividade. Já o debate duro, a crítica irritada e pesada do Lewandowski, tudo isso é perfeitamente normal na dinâmica do STF.

O que nos faz pensar, todavia, é a segunda parte da matéria, que também transcrevo aqui:




"Mas Cármen e Rosa, duas das únicas três mulheres a ocuparem uma cadeira no Supremo em toda a história da corte (Ellen Gracie, aposentada em 2011, foi ministra por 11 anos) já são pós-graduadas em 'mansplaining'.



No ano passado, a presidente do STF interrompeu uma sessão para falar sobre o desequilíbrio nas relações de gênero no tribunal. Ela citou estudo feito por Tonja Jacobi e Dylan Scheweers, dois pesquisadores da Escola de Direito da Northwestern University, nos EUA. 


Eles analisaram transcrições de sustentações orais na Suprema Corte americana ao longo de anos e concluíram que integrantes do sexo masculino interrompem mulheres três vezes mais do que homens. 

O levantamento mostra que, apesar de as ministras falarem menos e usarem menos palavras do que os ministros, são interrompidas durante a fase de sustentação oral de forma significativamente maior. 

Em 2015, quando havia três mulheres entre os magistrados da corte suprema dos EUA, 65% das interrupções foram dirigidas a elas. 

Diante dos dados, Cármen concluiu: 'E a ministra Sotomayor [da Suprema Corte americana] me perguntou: como é lá [no Brasil]? Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas'."



Tá aqui o vídeo:



Perfeito o pito público da Carmen Lúcia, especialmente porque essas coisas são gravadas e ficam para a posteridade. Todavia, o que resta demonstrado tanto na análise da jornalista quanto no exemplo da sessão de ontem, não é o conceito de mansplaining, mas uma outra modalidade de machismo parecida, que também afirma superioridade intelectual através do exercício constante de interrupções no sentido homens ➨ mulheres, o que sugere, no mínimo, falta de respeito. Isso também tem nome moderno específico: "manterrupting" (man + interrupting), termo muito menos utilizado. O que me deixa com uma pulga atrás da orelha é a possibilidade de que  a acusação de mansplaining neste caso sirva para angariar as simpatias dos movimentos identitários no sentido de uma defesa do voto de Rosa Weber. Não sei se a autora forçou a barra porque queria apresentar o conceito, se é erro mesmo, ou se há um objetivo oculto no artigo.

Enfim, de qualquer forma queria aproveitar a oportunidade de promover o conceito de mansplaining. e introduzir, no vocabulário nacional, um termo pra chamar de nosso.

Mascuplicação!



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