quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Em Estado Laico, não.


O preâmbulo da nossa Constituição Federal diz o seguinte:

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.

A mesma carta diz, um pouco adiante, o seguinte:



Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;
III - criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si.


Acabo de ter acesso a uma reportagem que relata a retirada compulsória de um cidadão do plenário da Câmara de Vereadores do município de Piracicaba – SP, motivada por sua recusa a se levantar para a leitura de um trecho da Bíblia (para ler a reportagem, clique aqui).


Juro que o fato não me surpreendeu, embora eu sempre fique com raiva dessas coisas.  Vivemos em um Estado laico, mas no qual o laicismo, talvez pra combinar com uma porção de outras coisas, é capenga.

O texto constitucional é relativamente simples, até muito simples se comparado ao inútil e ornamental juridiquês, ao qual tantos brasileiros tiveram acesso durante o pré-julgamento do mensalão.  Neste ponto, releiam o que diz o Artigo 19 e seus incisos.  Ok?  Vamos lá: alguém mais ficou com a impressão de que a declaração de laicismo não é tão clara assim?  Que perto da declaração do preâmbulo, que deixa tão claro que os parlamentares constituintes promulgaram a CF “sob a proteção de Deus”, o disposto é meio nebuloso?  Penso que a declaração podia ser muito mais clara.  A redação do inciso I poderia ser lida da seguinte forma:

“União, Estados, Distrito Federal e Municípios não podem:
- fundar igrejas e cultos;
- ajudar, de qualquer forma, as igrejas e cultos existentes;
- atrapalhar o funcionamento destas igrejas e cultos;
- manter relações de dependência ou aliança com as tais igrejas e cultos EXCETO QUANDO HÁ INTERESSE PÚBLICO.

Creio não ter feito qualquer malabarismo desonesto com as palavras aqui.

A Liberdade de culto já está garantida no Art. 5º, VI, VII e VIII.  O art. 19, citado em vários lugares da internet como o cantinho da CF que defende o laicismo estatal me parece muito mais assegurar que o Estado não vai inteferir nos assuntos das igrejas do que garantir a isenção do Estado.  E deixa ainda uma brecha (grande) para que o Estado se alie às igrejas e cultos, desde que haja “colaboração de interesse público”.  O que isso quer dizer?  Quem determina o que é de interesse público?  Não sei.

De qualquer forma, o texto é assim provavelmente por conta da covardia dos deputados constituintes, àquela época praticamente todos católicos e com muito medo de comprar briga com a igreja.  O fato é que todos entendemos que o Brasil é um Estado laico.   Este princípio tem uma série de implicações, mas que dizer, fundamentalmente que, enquanto Estado, e por força de Lei, somos adeptos do secularismo.

Por conta desse pequeno detalhe, não deveriam ser permitidas as seguintes coisas:

- Crucifixos (ou qualquer outro símbolo religioso) em fóruns, tribunais, repartições públicas;
    Até no STF tem...e não é só uma cruz vazia, tem um Jesuizinho pendurado lá...

- A inscrição “Deus seja louvado” nas cédulas de Real;
- Ensino religioso confessional nas escolas públicas - pessoalmente sou contra qualquer forma de ensino religioso nas escolas públicas, penso que história das religiões é o único tema relevante e que este pode ser trabalhado dentro da disciplina de História;
- Orações e leituras de textos religiosos antes, durante ou depois de solenidades públicas, aulas em instituições de ensino públicas (lembram desse caso?);
- Exceções especiais para faltar dias de trabalho, provas ou atividades profissionais/estudantis por conta de crença pessoal – acho que a liberdade de crença não se sobrepõe às regras impostas à toda coletividade.  Não é o Estado laico que deve se adaptar às exigências especiais de cada crença existente no país.  Não pode trabalhar nas manhãs de terça?  Não se candidate a um emprego público.

O Estado laico não pode fazer apologia à qualquer crença ou mesmo ao ateísmo, porém, o ateísmo é a única postura possível e compatível com uma democracia.  O Estado deve se comportar como se não existisse nenhum Deus, como se nenhuma crença fosse melhor que a outra.

Voltando ao ocorrido em Piracicaba: a violência da postura do presidente da Câmara e mais, a justificativa do diretor jurídico são atitudes absurdas.   Tratam-se de reações preconceituosas relativamente comuns no cotidiano (infelizmente), porém inaceitáveis no contexto da vida pública em um Estado laico.

É sobre esse tipo de coisa que Daniel Dennett fala quando diz não ser possível o diálogo com as religiões (instituições, não pessoas).  O simples ato de permanecer em silêncio ou sentado, indicando que o sujeito não compartilha da crença dominante na Câmara Municipal foi visto como ato ofensivo pelo presidente da casa.

Dennett conta que quando estava escrevendo seu livro "Quebrando o Encanto", submeteu os manuscritos para diversas pessoas e pediu a elas que apontassem qualquer coisa que pudesse soar minimamente ofensiva, na tentativa de compor uma obra de filosofia o mais livre possível de ruídos que pudessem interferir na leitura fria dos argumentos.  Pra quem leu "Deus, um delírio", o livro de Dennett é realmente de morno pra frio, e olha que o Dawkins nesse livro faz um esforço genuíno para tentar convencer as pessoas a pelo menos refletir profundamente sobre o ateísmo.  Enfim, apesar do esforço Dennett não atingiu seu objetivo: pouco tempo após a publicação do livro, passou a receber um grande volume de correspondência ofensiva.

Pra quem é muito religioso, a simples declaração alheia de discordância é ofensiva, e eu entendo o porquê.  Digamos que alguém te conte que acredita em um deus muito peculiar: trata-se de um grande periquito roxo, chamado Amijubi(*), que é responsável por todos os fenômenos do universo e que de vez em quando te ajuda, desde que você faça orações regulares todas as terças, pela manhã, enquanto faz uma dança na qual bate os braços e faz gestos que lembram uma galinha ciscando o solo.

Trata-se de uma ideia bastante extravagante, que você provavelmente refutará sem pensar muito.  Dizer para a pessoa que compartilha dessa crença que você não acredita pode ser entendido por ela como uma ação potencialmente ofensiva, porque se você resolver explicar as razões pelas quais não comprou a história do grande Amijubi (provavelmente porque a história toda é meio boba), fatalmente estará deixando implícito que acha a tal crença um tanto ridícula e, possivelmente que os crentes do Periquito Roxo talvez não batam muito bem da cabeça.  É bom lembrar nesse ponto que a existência dessa entidade é possível, no sentido de que não pode ser desprovada.

Em uma avaliação honesta, é muito provável que qualquer crente encare as crenças alternativas da mesma forma que encaramos o grande Periquito Roxo.  A ideia de que milhões de seguidores do hinduísmo veneram a imagem de uma divindade-elefante (Ganesh) provavelmente é engraçada ou ridícula para a maioria dos católicos...mas 900 milhões de pessoas discordam e levam o deus-elefante muito a sério.

Acreditem: é só por uma questão de imersão cultural que cristãos não acham exótica a crença em um deus tripartite que era muito severo, que vê sua criação fugir de seu controle, apesar de ser onisciente, onividente e onipotente e que depois resolve mandar o próprio filho (que é Ele mesmo) para morrer pelos pecados dos homens e que ama a todos – mas te manda prum lugar horrível por toda a eternidade caso você não aceite o sacrifício do filho Dele (de novo, Ele próprio) como sua salvação e devote sua vida à sua adoração e louvor...e nem vou mencionar o Espiritismo.

Enfim...eu entendo que o senhor presidente da Câmara dos Vereadores de Piracicaba se sinta ofendido pela simples presença de alguém que não compartilha de sua fé e se recusa a prestar reverência a uma ideia que talvez julgue ser ridícula – ainda que de forma educada.  Mas como aponta Dennett, não existe forma educada de dizer pra alguém que pensamos que sua crença não tem fundamento, que se trata de uma ilusão.  A ira desse senhor, em sua intimidade, é justificável...já a materialização dessa raiva em forma de atitude obtusa, preconceituosa e violenta é que não se justifica de jeito nenhum.  Em Estado laico, não.




 (*) estou apostando que este será um dos nomes derrotados na escolha do nome do mascote da Copa – mas me pareceu um bom nome para deus esdrúxulo genérico.