sexta-feira, 5 de outubro de 2018

A Guerra dos Mundos: imprensa, petismo e antipetismo


Há 80 anos atrás, mais precisamente na noite de 30 de outubro de 1938, a população norte-americana se viu sentiu ameaçada como nunca antes. Os Estados Unidos estavam sob o ataque de um inimigo poderoso, contra o qual seu exército, suas armas mais poderosas se mostravam praticamente inúteis. Os acontecimentos eram narrados ao vivo, pela rádio CBS. Boletins de notícia informavam que um estranho cilindro metálico havia caído em uma fazenda em Nova Jersey. De repente, o país se via sob ataque por numerosos inimigos.

Esse evento jamais ocorreu. Tratava-se da encenação, via rádio, do romance de H. G. Wells, "A Guerra dos Mundos". A emissora norte-americana transmitiu os eventos narrados no livro como se fossem fatos reais, numa brincadeira de véspera de Halloween. O pânico, apesar de aparentemente não ter atingido a escala nacional que se alega, foi muito real. Do cilindro metálico saíram marcianos que atacaram o repórter com um "raio de calor". A programação da rádio voltava ao normal e era interrompida, de tempos em tempos, com a notícia de que milhares de máquinas marcianas invadiam o mundo todo.

Com esse episódio a CBS ganhou notoriedade e marcou a história do rádio, às custas do pânico de milhões de pessoas em várias cidades americanas.

Anos atrás John Stewart, um dos maiores expoentes da sátira jornalística americana, fez uma interessante ponderação a respeito do noticiário televisivo dos dias de hoje. Para Stewart, os canais jornalísticos foram criados para cobrir eventos "tipo 11 de setembro": eventos que requerem cobertura intensa, nos quais informações novas surgem a cada instante, cujo entendimento requer a opinião de especialistas de diversas áreas. Passo a me referir a esses fenômenos como "eventos de alta densidade jornalística". Como há poucos eventos assim, esses canais operam, quase que o tempo todo, abaixo de sua capacidade total e com baixa audiência.

Empresas de jornalismo são empresas como qualquer outra. À primeira vista, o "produto à venda" é a informação. Em tempos de eventos de alta densidade jornalística, o interesse do público é maior; a multiplicidade de fatos e sua complexidade geram uma curiosidade que é suprida por essas empresas. Talvez seja possível medir a densidade jornalística de um evento pelo tempo de participação de especialistas em relação ao tempo de participação dos personagens da própria rede, não sei.

Os eventos de alta densidade jornalística aumentam a audiência dos veículos de notícias. Ocorre que as empresas que produzem conteúdo jornalístico não vivem exatamente da venda do conteúdo em si, mas da venda da visibilidade dos espaços publicitários. Jânio de Freitas, em entrevista para o excelente documentário "O mercado de notícias" explica:

"O jornalista costuma pensar que o jornal é editado pra fazer jornalismo. Não é, não. É editado pra publicar publicidade, que é o que dá dinheiro. O jornalismo recheia o entorno dos anúncios.

(...)

Os jornalistas não se dão conta de que eles são subalternos nas empresas de imprensa. A função fundamental deles é proporcionar à publicação a tiragem que justifique a venda mais fácil e o melhor preço do espaço publicitário no jornal."

A entrevista completa do Jânio, pode ser vista aqui (o trecho destacado está a partir de 49'15"):



O documentário (o primeiro ato), que inclui apenas parte da entrevista, mas também trechos de vários outros jornalistas brasileiros, aqui.

Voltando ao raciocínio de Stewart: como o produto central das empresas de mídia são o público e não a informação, as estratégias comerciais são centradas em produzir os maiores públicos possíveis. Uma vez que a ficção é mais interessante que a realidade, o resultado disso é a dramatização da realidade, a novelização da política. Daí os exageros, as alegorias e, principalmente, a substituição do jornalismo pelo colunismo. Porque opinião também vende mais que o fato.

Noam Chomsky e Edward Herman escrevem um livro, em 2002 intitulado "Manufacturing consent: the political economy of the mass media", infelizmente não disponível em português. Nessa obra, são apresentados os mecanismos através dos quais a imprensa manipula o p´publico através de um mecanismo político e econômico irresistível. Em linha com o que descreveu o Jânio de Freitas: o jornalismo custa muito mais do que os consumidores podem pagar. Essa diferença de preço é coberta pelos anunciantes, que compram, das empresas de mídia, público para os anúncios de seus produtos. Não se pode esperar que a imprensa corporativa, que obtém o seu lucro desses empresários, joguem de verdade contra os interesses desse pessoal. No Brasil (mas não apenas no Brasil), os donos da mídia são também os donos do poder político institucional.

Aqui você encontra uma animação, da Al Jazeera, que sumariza os principais pontos da obra de Chomsky e Herman:



O Brasil não tem economizado em pauta jornalística que justifiquem as mega-estruturas dessas empresas, pelo contrário: nos últimos 5 anos tivemos os protestos de junho de 2013, copa do mundo, eleições 2014, julgamento do mensalão, início do processo de impeachment, olimpíadas, impeachment, eleições de 2016 e lava-jato. Chegamos ao terceiro ciclo eleitoral desde que começou a bagunça toda.

A coisa toda é dramatizada e amplificada pelos canais de notícias. Todos os dias, podemos encontrar os Mervais interpretando a realidade. Julgamentos do STF ganham cobertura ao vivo, com direito a comentaristas jurídicos ao melhor estilo dos comentaristas de futebol. A sequência dos fatos das eleições ganham ares de novela. É a nossa Guerra dos Mundos.

Nunca houve um ciclo eleitoral no qual houvesse tanta divulgação de pesquisas. Datafolha e Ibope liberam novos conjuntos de dados a cada dois, três dias - fora os institutos menores. Um dos maiores fantasmas deste ciclo eleitoral é o temor de que, uma vez eleito, Haddad passaria a enfrentar uma situação política caótica, com a contestação dos resultados das urnas por parte de Bolsonaro e um antipetismo nunca dantes visto. A imagem do PT desgastada pelas várias ondas negativas estaria irremediavelmente desgastada. A subida de Haddad nas pesquisas se deu por transferência de votos de lula, sua estagnação, por transferência da rejeição...as outras teses justificam o aumento repentino na rejeição de Haddad por reação aos movimentos das mulheres, o #EleNão, ou pela divulgação massiva de fake news cuidadosamente elaboradas e direcionadas para públicos específicos, como o eleitorado evangélico. A conferir.

O fato é que, aparentemente, ocorreu uma antecipação da rejeição esperada para o segundo turno, já no primeiro. Até o início da semana, a rejeição de Haddad estava absolutamente compatível com os níveis das candidaturas vitoriosas do PT. A imprensa, porém,. já dava enorme destaque para a rejeição de 32% de Haddad, discurso que também foi estimulado pelo utilitarismo eleitoral de Cirpo Gomes e Geraldo Alckmin. A interpretação ganhava ares de drama na Globonews: jamais o antipetismo esteve tão forte. Vejamos os níveis de rejeição nas últimas quatro campanhas, todas com vitória do PT:

02/10/2002: rejeição de Dilma - 29%

22/09/2006: rejeição de Dilma - 30%

30/09/2010: rejeição de Lula - 27%

03/10/2014: rejeição de Lula - 32%


Convém lembrar que em todas essas eleições, com exceção de 2010, quando Lula tinha 84% de aporvação, havia razões importantes para sustentar o mesmo discurso de que o forte antipetismo impediria a eleição do candidato: em 2002 havia o "risco-Lula", o dólar havia disparado; em 2006 havia o mensalão, e, 2014 o rescaldo dos protestos de 2013, copa e julgamento do mensalão - o PT já era criminalizado.

O curioso é que o temor de derrota provocado pela alta rejeição de Haddad, agora nos 40%, não se reflete nas análises a respeito do risco de derrota de Bolsonaro, que ostenta 45% de rejeição. Para oferecer uma base de comparação: nas eleições de 2014, Dilma passou, ao segundo turno, com 29% de rejeição. O trabalho de campanha do PSDB, a campanha de segundo turno, que é comparativa, elevou esses índices para 38%. Aécio chegou ao segundo turno com 21% de rejeição, terminou com com 41%.


Concluindo: a interpretação da mídia em relação às últimas pesquisas, como já escrevi, levou o campo da esquerda a um sentimento derrotista. Isso foi ampliado porque a subida da rejeição foi rápida, mas já se estabilizou e havia uma sensação, até então, de que talvez a vitória viesse com certa facilidade. Isso eu descarto. Eu continuo sustentando que o que se observa é meramente uma antecipação do segundo turno. Não estou prevendo vitória fácil, mas analisando os dados com um pouco mais de frieza e sabendo que a novelização e dramatização dos fatos é intrínseco à dinâmica da imprensa, a rejeição de 40% de Haddad não me impressiona mais que os 45% de Bolsonaro, até então poupado de ataques mais fortes pela campanha petista e ainda virgem de confrontos diretos. Repito o que disse há três dias: o resultado será apertado, é possível que o Bolsonaro obtenha uma votação maior do que preveem as últimas pesquisas, em função do "shame voting". Mas notem que ele não amplia, de forma significativa, a votação de segundo turno. Até agora ele apenas se aproxima do seu teto teórico.

Vai ser apertado. Vai ser brigado. Não tem nada perdido e, acreditem,, ainda está melhor pro nosso lado. Preparem-se para, possivelmente, uma votação do Bolsonaro maior do que o previsto no primeiro turno. Mas lembrem-se de que tem campanha.

Boa sorte pra nós todos!

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Anagramas

Eu gosto da ideia de usar anagramas do Solnorabo pra me referir ao candidato...primeiro, porque como já foi dito por aí, o Bozo, embaixador mundial da boa vontade, não merece a comparação. Segundo, porque "Sol no rabo" parece nome indígena pra descrever alguém que, quando criança, adorava ficar de bundinha de fora, tomando sol. Bronzeado completo. Resolvi pensar em algumas outras possibilidades:

O primeiro é óbvio, simplesmente a inversão do Solnorabo: Rabonosol, que soa também como nome de remédio. "Toma um Rabonosol que a democracia passa".

Outro que eu gostei foi Bolorasno (bolor asno): uma mancha escura e estúpida que corta o barato de comer um pão. Me imagino explicando pro meu filho pequeno e inexistente que ele não pode comer o pãozinho porque tá com bolor.

"Bolor feio! Bolor chato! Bolor asno!" - porque eu imagino o meu filho fictício com um vocabulário rico.

Saiu um de matriz afro-paulistana Obanosrolo (Obá nos rolo). O "r" deve ser lido como no italiano. Um pai de santo da Mooca:

"Põe Obá nos rolo aí procê vê se ela não volta, mano!"

Aí saíram outros menos interessantes:

Ar no bolso/Rã no bolso: descreve a penúria do povo no eventual governo. "Dá pra viajar não... Tô cheio de ar no bolso".

Ornalobos (Orna lobos): outro nome indígena. Dado ao cabeleireiro da tribo, indivíduo do terceiro sexo, que gostava de ornar os guerreiros e seus cavalos antes da batalha (mais ou menos como um certo candidato doura a pílula pra um certo general, apelidado, jocosamente por um outro candidato de "jumento de carga").

E em inglês só pensei em um: "Bro Saloon": um bar temático faroeste gay, onde só entra cara enrustido, vestido de cowboy, balançando uma pistolinha. Meio como os cowboys do Steinberg.

No Bro Saloon o capitão do mato indígena Ornalobos, de bundinha arrebitada conversa com Solnorabo (de bundinha arrebitada E bronzeada) e o mal-humorado Bolorasno. Planejam tomar um rabonosol e sair bradando as suas pistolinhas e calças de couro de franjinha pra matar uns gays por aí. Pra mostrar quem é macho mesmo.

Na saída do bar, encontram um serviço inusitado, oferecido num quadro negro: "Rolo nabos". Parece uma boa proposta. Por que não?


quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Valsa paulistana (e o Brasil na roda)

Sempre que era questionado sobre o conservadorismo paulistano, Fernando Haddad respondia, com precisão, que São Paulo é muito grande. Convive, simultaneamente, com um lado conservador que é numeroso, mas não necessariamente  radicalmente conservador, e um lado liberal, cosmopolita, que é o que há de mais avançado na sociedade brasileira. E arrematava: "São Paulo é como uma valsa: dois pra direita, um pra esquerda", em alusão ao fato de que nas duas últimas décadas, alternamos uma gestão progressista a cada duas conservadoras: Erundina, Maluf/Pitta, Marta, Serra/Kassab, Haddad, Doria/?.

O estado de São Paulo, por outro lado, talvez seja o mais resistente bunker conservador do país, característica que data do Império, a partir do domínio das oligarquias cafeeiras. Não é justo acusar o PSDB de ser historicamente responsável pelo conservadorismo paulista, até porque a guinada conservadora do partido só ocorre a partir de 2010, quando José Serra, ao perseguir o voto evangélico, introduz a questão do aborto como tema central daquela campanha. Até então, nenhuma eleição presidencial do último período democrático havia dividido a população em polos tão claramente vinculados aos seus posicionamentos socioculturais. A incisão que dividia esses grupos só se alargou desde então.

São Paulo é, em muitos aspectos, a capital nacional de fato: a sede de fato do poder político e econômico brasileiro na nova república. A cidade, claro, exerce uma força gravitacional considerável em função dos tamanhos de sua população e economia. A polarização entre PSDB e PT, porém, arrastou para a cidade o núcleo do poder. A constatação é fácil: observem, no dia-a-dia dos candidatos, onde eles estão. Todos os dias, pelo um dos maiores está em São Paulo. Neste ponto, uma rápida digressão: eu sei que Lula é pernambucano. Mas foi um retirante. É, como milhões de outros paulistanos (ou metropaulistanos), parte dessa gente que construiu a cidade e é, até hoje, desrespeitada pelos barões do café.

Se alguém em 2014 soubesse que a armação política que começou a ser desenhada, no dia seguinte ao segundo turno daquela eleição, culminaria na derrubada da Dilma e na prisão do Lula, poderia imaginar que 2018 seria o ano da primavera tucana. Não está sendo.

É justo que se argumente que o "nós contra eles" tenha agravado a divisão entre esquerda e direita a partir da conscientização de que, há sim, classes sociais neste país - só enfatizo o óbvio porque conheço gente que "não acredita nesse negócio de classe social". Porém, aquela cisão social explorada pelo Serra em 2010 provocou uma divisão muito mais profunda e que me parece incurável: a polarização entre liberais e conservadores (no âmbito dos costumes).

"Incurável" parece um termo drástico e definitivo, mas estou considerando um ciclo histórico. A "minha sociedade", no seu tempo histórico, morrerá COM ISSO (não necessariamente DISSO). Com a captura do eleitorado evangélico pela direita fisiológica,  a bancada conservadora ganhou espaço na oposição liderada pelo PSDB: boi, bala e bíblia (BBB). Essa bancada é, fundamentalmente, o tal centrão, embora não somente. Participou de parte do governo do PT por conveniência mútua, mas migrou assim que percebeu que BBB + PSDB + PMDB teriam a maioria para o golpe parlamentar e ofereciam mais espaço. Considerando a crise da igreja católica com a consequente expansão dos evangélicos e sua bancada, mais uma porção de militares que engrossarão a bancada da bala, é plausível que tenhamos, se não a expansão da bancada BBB, ao menos a expansão do binômio bala e bíblia.

O PSDB NÃO É um partido tosco. Não de origem. A legenda conta, ainda hoje, com um número de intelectuais bastante interessantes. Nunca teve, porém, apelo popular. Mesmo no auge de sua popularidade, FHC jamais se relacionou, de fato, com o povo brasileiro. Lula e o PT, ao contrário: o partido é ímpar no sistema político brasileiro porque surge de um processo político que reúne movimentos sociais com base popular REAL: sindicatos, setores progressistas da igreja católica e academia (professores, movimento estudantil e funcionários). Lula, por sua vez não tem dificuldade alguma para se relacionar com a população porque É do povo. E só não reconhece isso quem não convive com o povo brasileiro senão através relações servis.

A comunicação do tucanato com o povo se dá de outra forma: através da mídia. De cima pra baixo. Isso tem, também, abrangência significativa. Só que, essa mensagem política tem alcance raso. Não se aprofunda porque não faz parte da vida das pessoas. O Jornal Nacional pode até pautar a discussão na sociedade, mas o conteúdo, a compreensão, a interpretação se processam na vida social. Quando a GloboNews "aprofunda", já está falando para outro recorte social.

Tasso Jereissati confessou, recentemente, uma série de erros graves cometidos pelo partido - na minha opinião, um tiro no peito de Alckmin, crime doloso. O primeiro, questionar o resultado das urnas (a legitimidade da eleição de Dilma). O segundo, a sabotagem do governo (pautas-bombas). O terceiro, a participação no governo Temer. O quarto, a complacência com Aécio Neves. Todos esses, atentados à democracia. Quero ir mais longe. Em 2005 o PSDB patrocinou a eleição de um Zé Ninguém para a presidência da Câmara dos Deputados, rompendo um tratado não escrito de que o partido com a maior bancada elege o presidente. Isso garantia condição de governabilidade porque, mesmo com minoria (em números absolutos), o governo que elegesse, simultaneamente, o presidente da república e a maior representação parlamentar podia pautar o congresso. Não haveria possibilidade de pauta-bomba com essa salvaguarda. Eu dizia, à época, que aquela atitude era um escárnio à nação. O PSDB não tinha qualquer interesse em Severino Cavalcanti, um corrupto do baixo clero, senão o de introduzir um problema à governabilidade do país. Exatamente como o questionamento da eleição de Dilma, classificada por Aécio, ao telefone, como "só pra encher o saco deles".

De volta ao presente. Alckmin jamais foi o político inteligente e racional que alguns imaginam. Era apenas um cara dos baixos poleiros do tucanato, alçado ao topo pela morte de Mário Covas. Entendam: nenhum político com ambições reais se candidata a vice de nada, exceto, em alguns casos, à vice-presidência da república. Pensem na estatura política de um Márcio França hoje? Do Kassab vice do Serra? Ocorre que, pela desproporção de sua força, São Paulo agrega poder aos seus governadores e prefeitos. Alckmin fez uma campanha medíocre à presidência em 2006. Conseguiu terminar o segundo turno com menos votos do que obteve no primeiro. Isso contando com o mensalão em 2005. A sua bala de prata, coitado, era o "Aerolula". Alckmin é uma ilusão de ótica. Parece grande por ter governado São Paulo por quatro vezes, feito muito mais obtido pela rejeição histórica ao PT no estado que por mérito de gestão. Em 2016 patrocinou um atentado ao partido: rifou um tucano histórico para apadrinhar João Doria, que ganhou a prefeitura praticamente concorrendo só. Depois disso, tudo se passou ontem (mas as pessoas esquecem rápido): Doria abandona a prefeitura para concorrer ao governo de SP, mas não sem antes passar um ano viajando pelo país para tentar roubar a candidatura à presidência de seu próprio padrinho político.

O resultado de tudo isso pode ser uma mudança séria no equilíbrio das forças políticas nacionais. O PSDB corre grande risco de perder o estado de São Paulo pela primeira vez desde a eleição de Covas e, ao mesmo tempo, ter votação de nanico no pleito nacional.

Mais da metade do eleitorado do PSDB nas últimas eleições presidenciais estão no colo de um deputado menor, ignorante e burro, homofóbico, racista, sexista e antidemocrático, armado até os dentes de uma sanha populista de direita que, lembremos, foi atiçada por Serra em 2010. Aquele alcance popular, o diálogo com as pessoas que o PSDB nunca teve? Ele tem. E os assuntos comuns entre ele e a população são os piores possíveis. Ele reforça, no tiozão machista, a ideia de que seu comportamento, porque "normal", é razoável. No racista, o sentimento de que tudo é troça. Na sociedade, a noção de que todas as suas vítimas, na verdade, se vitimizam. É tudo mimimi.

Lembram da valsa paulistana do Haddad? Talvez ela se encurte. Doria provavelmente perderá os dois turnos na cidade. Espero que perca o estado, apesar do Skaf. Em 2022 teremos mais Alckmin, porque o estado não aprende. Mas a cidade? Haddad está, surpreendentemente, empatado em primeiro lugar. Nas projeções de segundo turno, vence o milico na cidade.

São Paulo é mesmo muito grande.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

De repente, mijão



Agorinha mesmo eu tava lendo esse artigo da piauí: De repente, Bolsonaro, que trata de páginas do facebook que mudam de nome e levam consigo, para uma causa qualquer, todas os fãs da causa anterior.

Com melhor da minha fé na humanidade, comecei a imaginar que talvez alguns dos meus amigos que curtem páginas absurdas o fazem por acidente: tenho dois amigos que curtem a página "orgulho de ser hetero". Investigando as informações da página percebi que houve sim uima mudança de nome: até junho de 2015 chamava-se "Orgulho de ser macho". Era meio grosseiro e idiota, então trocaram.

De repente me ocorreu: e eu?

Entrei no meu próprio perfil e me pus a pesquisar todas as curtidas, desde os primórdios da rede - e olha que eu sou early adopter...todo mundo acha que tá no face há muito tempo...eu tô há mais tempo. Quando cheguei, eram só mato e estrangeiros.

Explorar as curtidas antigas é um processo arqueológico: eu sou a única pessoa da minha rede que curte a página "Unofficial: Nigel Mansell" - sempre achei mais legal que o Senna; também cruzei com preciosidades como "Raptor Jesus!" - última publicação em 2012; e o "Club de Fans de Cecilia : La restauradora del Cristo de Borja".

Não achei nenhuma página que eu tenha curtido que tenha virado "reaças unidos" ou "Bolsonaro meu macho"...ufa!

Só encontrei uma página estranha, "Xixi na cama tem solução". Mesmo processo: fui em "Informações e anúncios > Informações da página e... voilà!!! houve sim uma mudança de nome.

A página se chamava, originalmente, "Clínica psicológica".

Descurti. Eu não sou seguro a ponto de permitir que as pessoas pensem que eu sou seguro a ponto de curtir uma página confessando micção noturna em público, ora porra!

Minutos depois, olhando pro site, eu descobri que se trata da página de uma conhecida minha, que se formou em psicologia e, provavelmente, se especializou nisso. Eu curti a página dela pra dar aquele apoio inicial.

Fiquei com vontade de curtir de novo: "Que reação boba, Marcelo. Quem vai achar que você faz xixi na cama?" e confessar nas redes sociais?

Daí achei que se eu escrevesse um textão bem humorado - ei-lo - eu estaria autorizado a fazê-lo...pra continuar dando aquela força. O problema é que agora aparecerá como curtida recente. Meio como se agora, beirando os 40 anos, eu tivesse ligado o foda-se, decidido que eu posso passar a andar vestido de veludo (referência pra poucos) e assumir que eu tenho um problema, que não teria porque esconder do mundo que de vez em quando eu acordo molhado.

Entre o sentimentalismo bobo e o meu orgulho próprio (não confundir com orgulho de ser macho, não sinto nenhum), fiquei com o segundo.

Eu não faço xixi na cama! Não mais.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Boleia Brasilis



Como o cartunista Ricardo Coimbra bem falou, a já histórica greve dos caminhoneiros mostrou que o TIOZÃO DO WHATSAPP é, no momento, a mais poderosa força popular no Brasil.
A intenção do cartunista de ironizar a auto-importância da juventude intelectualizada, contudo, também faz eco da percepção limitada que "nós", "classe média ilustrada", temos a respeito dos caminhoneiros, tendendo inconscientemente a enquadrá-los -- seja em viés até positivo ou em viés negativo -- a partir da imagem de broncos e pouco instruídos.  Mas há muito mais a se considerar a respeito da classe caminhoneira. Como um amigo comentou, ao passarmos lentamente pelo comboio paralisado na rodovia Dutra e presenciarmos a variada amostra humana: "essa é a cara do povo brasileiro". O atual tumulto, em compensação, serve para que saibamos mais a respeito: nunca tinha lido tanto sobre a logística do transporte rodoviário, o cotidiano dos motoristas e os perigos e amores da profissão.

Pois bem: nesta manhã tive uma aula informal sobre caminhoneiros brasileiros com o dono da banca da minha esquina. O jornaleiro (que parece ter mais ou menos a minha idade, uns trinta e tantos) trabalhou durante dois anos no CEASA, e até hoje tem contato com alguns caminhoneiros, incluindo grupo de Whatsapp, e parecia preocupado em desfazer os possíveis preconceitos que a cobertura da grande imprensa poderia estar incutindo em mim. Quero compartilhar alguns dados interessantes que ouvi.

Primeiro, o jornaleiro dividiu os caminhoneiros em três grupos geográficos básicos. Os caminhoneiros cariocas, segundo ele, seriam na média (sempre há exceções) um grupo mais desorganizado e mais "malandro", mas sobretudo mais bairrista, que conheceria relativamente pouco o Brasil (penso que ele destacou os cariocas por estamos eu e ele no Rio de Janeiro).  Os caminhoneiros de São Paulo e Minas Gerais, por sua vez, seriam os mais "cosmopolitas" (eu é que estou usando a palavra), ou seja, os que mais conhecem o Brasil a fundo e mais têm contatos país afora com outros caminhoneiros -- e, por isso mesmo, os que teriam sido mais centrais em puxar a greve. Os caminhoneiros da Região Sul, por sua vez, seriam os mais marcadamente de extrema-direita -- nas palavras dele, os que querem "a cabeça do Lula numa estaca". Todos estes grandes grupos, e mais todos os heterogêneos e múltiplos agrupamentos de caminhoneiros Brasil afora teriam, contudo, uma coisa em comum: querem que os sindicatos se fodam.

Mas para mim o dado mais interessante da conversa, que eu não havia visto ninguém trazer à tona até então, foi este: uma enorme porcentagem dos caminhoneiros brasileiros, especialmente os do interior, fez serviço militar. E fez serviço militar justamente para trabalhar depois como caminhoneiro -- pois eles podem sair do serviço já com o treinamento para isso, enquanto tirar a permissão profissional como civil é muito mais caro e burocrático. Isso, aliás, é muito comum em várias outras profissões no interiorzão brasileiro, onde o serviço militar é a principal chance de ensino profissionalizante. Atenção: não podemos nunca esquecer que o exército ainda é a grande escola técnica brasileira, bem como o grande exemplo popular de instituição que "funciona" minimamente bem.
Esse dado me parece crucial para se entender a enorme popularidade da idéia de "intervenção militar" entre os caminhoneiros -- assim como a perene boa imagem das forças armadas entre o povo dos grotões brasileiros.

Por outro lado, essa relação com o serviço militar também explicaria minha percepção de que os militares provavelmente não têm vontade alguma de agir contra a greve e os bloqueios. Faz sentido: para além de afinidades quaisquer no campo das idéias, ao enfrentar os grevistas os militares estariam entrando em conflito com uma razoável percentagem de:

  • a) ex-companheiros de corporação -- com os quais têm termos, códigos e experiências em comum;
  • b) pessoas com um senso compartilhado de união e soliedariedade (que já é gerada pelas muitas agruras comuns à profissão de caminhoneiro, mas que não seria exagero pensar que é intensificada quando há também uma base de formação militar entre estes);
  • c) gente armada, treinada para uso de arma de fogo e raçuda pra caramba ("nós" da classe-média-urbana-universitária-e-conectada-de-facebok fizemos algumas piadas e memes com o Brasil transformado em cenário de Mad Max pela falta de gasolina; mas esquecemos que boa parte dos caminhoneiros tem experiências diretas com cenários de terra-de-ninguém que efetivamente lembram Mad Max...)


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Dito isso, gostaria de comentar algo a respeito do que tenho visto em minha "bolha", formada em grande parte por acadêmicos (professores e alunos) de esquerda. Vi repetidas reações um tanto ressentidas tanto ao sucesso da greve dos caminhoneiros quanto ao apoio assustadoramente disseminado deles à ideia de "intervenção militar" (seja lá o que isso fosse para cada um deles), e quero comentá-las.

No primeiro caso, vi repetir-se a fala "sabe por que apoiaram essa e não a dos professores? Porque valorizam mais do carro (preço da gasolina) do que da educação!!". OH, que surpresa! então as pessoas valorizam mais questões financeiras e patrimoniais palpáveis a curto prazo do que questões mais abstratas e categoriais de longo prazo?
Claro, gente: no Brasil e na humanidade afora.
Meu caros amigos e conhecidos, professores e alunos de esquerda. Se é pelo lado da comparação que queremos proceder (que é uma direção muito válida), têm certeza que querem adotar esse tom em particular? Pois se querem, tenham consciência de que nós acabamos de ter nossa irrelevância política esfregada dolorosamente em nossa cara. Aceitemos a derrota e aprendamos com ela. Até porque, o que é mais escandaloso?  O fato do povo não valorizar e saber pouco da importância da universidade, ou o fato e nós, universitários (ditos instruídos) não valorizarmos e sabermos tão pouco sobre a realidade de categorias tão básicas quanto caminhoneiros e militares?

Sobre o apoio à "intervenção militar", tenho visto posts e tweets repetindo a cantilena de "mais educação", "mais aulas de história", "você não sabe como o governo militar foi corrupto??", "mostre isso (vídeo-relato de tortura ou video do Leandro Karnal) para quem falar que defende intervenção militar". Tudo isso (ou quase tudo) é verdadadeiro e relevante; mas todos os exemplos que vi, infelizmente, têm em comum o fato de chamarem o interlocutor de ignorante (quando não de idiota ou safado mesmo).
Se tais posts forem desabafos circulando internamente à bolha universitária, tais frases. memes e links são apenas consolos narcísicos de nós para nós mesmos -- o que já me pareceria um pouco ruim, pois creio que precisamos fazer as pazes com nossa relativa impotência profissional, sob a pena de nos tornarmos ressentidos e amargos. Mas se forem frases de debate destinadas a oponentes, o quadro é pior: são comentários "lacradores" destinados à irrelevância política, pois ninguém jamais foi convencido por ser chamado de ignorante ou burro. Não basta condenarmos o apoio popular aos militares sem sequer tentar compreender sua origem e meandros, colocando-o meramente na conta do espectro vago do "conservadorismo" e do "proto-fascismo" (que são coisas a serem temidas, obviamente, mas não são matrizes explicativas muito eficientes).
Depois de considerar o escrito por Rodrigo Nunes neste post, se eu fosse arriscar algo, diria isto: na hora de criticar ou desmontar a idéia de intervenção militar, posto que estamos lidando com uma categoria básica para a nação e imensamente popular, creio que cabe recuar um pouco nosso atávico tom de nariz torcido para com os militares e adiar momentaneamente nosso automático saque da carta histórica da ditadura; e então, tentando entender o que "intervenção militar" representa para o interlocutor, tentar explicar dentro do próprio sistema intelectual dele o porquê disso não funcionar, o porquê de não ser uma panacéia. Não vai ser nada fácil, mas será necessário.

Eu estou tão perdido nesse momento histórico quanto qualquer um, mas tenho uma convicção: ficar exibindo superioridade moral e intelectual para nós mesmos e para os outros é a última coisa que precisamos fazer, e a última coisa que vai nos ajudar.

Bom, o debate continua. Mais links que vi sobre esse assunto:
Relato de Larissa Jacheta Riberti
Relato de Rosana Machado
Reportagem da Piauí sobre a descentralização do movimento
Alguns Vídeos assistidos pelos caminhoneiros

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Bandeiras, política e futebol

"As pessoas têm que entender que a farda deles [PM] é sagrada, é a extensão da bandeira do Estado de São Paulo. Se você ofender a farda, ofender a integralidade do policial, você está correndo risco de vida. É assim que tem que ser".

Assim falou o Márcio França, mais um político da longa lista daqueles que foram lançados na vida pública brasileira por ter ocupado a cadeira de vice-governador ou vice-prefeito do governo ou prefeitura de São Paulo (rol que inclui Kassab, Bruno Covas e o próprio Alckmin).

O meu próprio "bandeirismo" passou há muito tempo. Sempre desconfiei da afirmação de que "O hino brasileiro foi 'eleito' um dos mais belos do mundo". A bandeira do Brasil eu acho bonita, mas ao longo dos anos desenvolvi um certo gosto por provocar o nervo nacionalista dos conterrâneos com algumas provocações: "digam o que quiserem sobre o lábaro estrelado, mas a mim parece o resultado de uma baita trombada entre um papagaio de massinha de modelar e uma parede branca (inclui as estrelinhas da dor de cabeça do  melhor estilo de desenho animado)". Acho educativo.

O brasileiro, diga-se de passagem, nunca foi maluco por ostentação de bandeira. Quem já saiu do país sabe disso. Quando fui morar nos EUA pela primeira vez, aos 16 anos, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a quantidade de casas que tinham a bandeira americana tremulando num mastro, bem na frente do jardim. Tudo parecia oficial. Ter bandeira na frente de casa é um indicativo claro de que, naquele espaço, a utilização da liberdade de expressão para ofender a estética da bandeira não é bem-vinda.

Todas as manhãs, na escola, os alunos são convidados a se levantar e recitar o juramento de lealdade à bandeira. Eu levantava junto, mas não dizia as palavras, claro. O professor da primeira aula chegou a me perguntar a razão pela qual eu não me juntava ao coro e não fez muito esforço para entender a simples resposta: "não sou deste país". "Mas deveria ser grato", respondeu.

No Brasil, bandeira era objeto de torcida, a gente só se ufanava em época de copa, exceção feita aos gaúchos com seus adesivos de bandeira (do estado) nos parachoques dos automóveis.

De 2013 pra cá, as coisas por mudaram. Por estar presente naquela que foi a maior manifestação daquele ano, presenciei, em tempo real, o momento no qual a semente do nacionalismo exacerbado brotou: uns 500 depois que viramos na 9 de julho, saindo da Rebouças. Ali, várias pessoas, nas suas sacadas, saudavam à multidão com bandeiras verde-amarelas. A retribuição foi quase automática: toma hino nacional (errado, claro) de volta. Dois dias depois, na Paulista, bandeiras de partidos e movimentos sociais eram arrancadas das mãos dos manifestantes e incendiadas - "jamais será vermelha".

Porrada por conta de bandeira, cor de camisa e hino, aliás, eram coisas que se restringiam aos estádios de futebol. Talvez ter trazido o clima de Fla-Flu para a política (aliás, a TV Folha tem um programa de debate com este nome) tenha despertado no povo a reação que nos é familiar no universo das torcidas organizadas, o caminho da violência. As piadas, os memes que vemos sobre o "grupo rival" lembram muito os que se veem entre torcidas depois de uma goleada. As acusações de "juiz ladrão", a depender dos resultados são outra lembrança, além dos programas de mesa-redonda, no caso da política, a diversidade de opiniões na mídia é bem menor.

Saindo da digressão futebolística, eu não gosto de generalizar fascismo, mas a sacralização dos símbolos nacionais e sua utilização como elemento identificador daqueles que fazem a "defesa da pátria" é um sintoma meio sério. Primeiro, porque automaticamente coloca toda a oposição desbandeirada o selo de "traidores da nação". Segundo, porque deposita sobre a bandeira o peso de uma porção de causas parciais. É a volta do "Brasil: ame-o ou deixe-o". Aqui uma rápida digressão: não consigo mais lembrar dessa frase sem citar o Leminski - "ameixas, ame-as ou deixe-as".

Ao colocar o culto à pátria acima do direito à livre expressão, na prática eleva-se o nacionalismo a um patamar superior ao da democracia. Ameaçar quem ofende à PM ou à bandeira com a morte, como fez o governador, leva a questão ao extremo. É a solução dos opacos, porque mais simples. Democracia é um negócio bagunçado, cheio de nuances, opiniões divergentes, um sistema no qual nem sempre a nossa vontade individual prevalece.

Fora isso, daqui a pouco tem copa, eu quero torcer pelo Brasil, com direito à pipoca, bandeira e camisa. Fico com a gélida sensação de que essas coisas - com exceção da primeira - foram tomadas de mim.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

Morte e vida Severina

O motivo deste texto é recomendar a leitura de "Morte e vida Severina" e relatar a minha emoção em ver a versão animada, linkada adiante, mas no fundo é pura digressão.

Li a obra prima de João Cabral de Melo Neto na escola, por vontade própria - ou, como tudo, um pouco provocada. Salvo engano foi em 1992, oitava série. A minha turma foi a penúltima a ter aulas de "Organização Social e Política do Brasil" (OSPB). Pra quem nunca ouviu falar nisso, OSPB era uma disciplina que reunia conteúdos de Ciências Sociais e explicava o funcionamento do sistema político, administração pública, um tiquinho de Direito Constitucional.  Mesmo manco, o conteúdo me interessava muito, até porque eu não tinha noção nenhuma do que me faltava de fato, os conteúdos de Filosofia e Sociologia, amputados pelos governos militares.

Eu estudei numa escola particular católica da primeira série ao terceiro colegial, o Colégio Marista de Maringá. Era considerada uma ótima escola, na qual a elite maringaense educava os seus filhos. A maioria dos alunos era composta por filhos de políticos, empresários, grandes fazendeiros e profissionais liberais bem sucedidos. Tinha garoto do primeiro colegial que andava de moto, crianças cujos pais eram donos de aviões teco-teco e um bom número de alunos que praticavam hipismo...só pra ilustrar os "problemas de gente rica" que faziam parte do cotidiano do Marista, teve uma menina que ficou famosa por ter tido o nariz arrancado por uma mordida de cavalo. Eu era um dos poucos filhos de professores. Junto com os filhos de bancários e funcionários públicos, fazia parte de uma  pequena "segunda classe" na escola. Lembro de um negro nos meus 11 anos naquele colégio. 

Naquele tempo não me parecia que os pais do Marista se incomodassem com "doutrinação comunista". Meus professores de história, geografia e OSPB eram, provavelmente, pessoas de esquerda. Lembro de professores que promoveram debates em sala de aula sobre as eleições de 1989  (5a. série). Lembro de uma aluna criticando o comunismo, num desses debates, com um argumento infalível: "então o Roberto Freire devia dar metade das suas coisas pra uma família pobre". O Roberto Freire era o candidato pelo PCB, as pessoas achavam que ele era comunista - era o candidato do então reitor da Universidade Estadual de Maringá, então meu vizinho, que o trouxe pra falar num evento de colação de grau no ginásio esportivo da cidade.

Tive, portanto, algumas dessas professoras de história que praticavam a "doutrinação marxista" através do péssimo hábito de evidenciar as coisas feias do país tropical e explorar as suas raízes. Preciso dizer que essas professoras foi mal sucedidas, em grande parte: até onde tenho notícias, nenhum dos meus colegas se tornou um comunista. É possível e provável que hoje alguns deles pensem o contrário, que "O Marcelo virou comunista, um a mais do que o limite do aceitável".

Voltando ao motivo do texto, eu já entendia, em abstrato, o que significava a seca no Nordeste.  Primeiro porque o semiárido nordestino, a seca, a fome, faziam parte da paisagem cultural brasileira. As gretas de contração (procurem e aprendam), o gado magro ou morto, os retirantes, as crianças magras ocupavam, com uma  triste frequência, parte importante dos noticiários na TV - sinto informar, mas quem nasceu para a política no período pós-Bolsa-família não tem noção da gravidade do problema.

Lembro-me de uma série de livros adotados na disciplina de OSPB chamada "Viagem pela Geografia". Os livros dessa série eram parcerias entre um autor ficcionista e um professor universitário do ramo. Eram pequenos romances que buscavam ilustrar aspectos relevantes do conteúdo didático. Lemos dois desses: "Cuba em perspectiva", de Fernando Portela (jornalista) e José Herculano da Silva e "A seca no Nordeste", parceria de Fernando Portela com o geógrafo Joaquim Correia de Andrade. Imaginem quais seriam as reações dessa elite emebêelizada dos dias de hoje? Enfim, o livro sobre a seca explicava conceitos que eu não conhecia, foi a primeira vez que tive contato com o conceito de "indústria da seca". Certamente uma das primeiras vezes em que eu entendi o funcionamento grosseiro da política como instrumento de perversão. A ideia de que as secas no nordeste eram exploradas por coronéis e políticos para a manutenção de seus "currais eleitorais" me fez compreender, pela primeira vez, que certos políticos preferiam e agiam ativamente para não educar o povo. Preferiam manter a população na ignorância impedindo-a de enxergar suas reais motivações ou não investir em saúde, fazendo do tratamento das enfermidades uma graça concedida  através da devoção às suas figuras, concretizada eleitoralmente.

Em algum momento nessa discussão, não sei se no livro ou no debate de sala de aula, foi citado o poema de João Cabral de Melo Neto. O poema "Morte e vida Severina" foi, para mim, ao mesmo tempo um choque de realidade e abstração. A compreensão do tema me deu uma sede de desvendar as sutilezas da escrita do autor que, no fundo, é direto pacas. Foi capaz de colocar imagens na minha cabeça que me fizeram chorar. Foi arte que transformou, para mim, o flagelo da seca em realidade concreta.

Meu segundo contato com a obra foi também na escola. Novamente numa aula de história, novamente com uma fracassada doutrinadora do comunismo. O filme "Morte e vida Severina", de 1981, apresenta a versão musicada de Chico Buarque, só porque na vida da gente tem desses momentos em que a genialidade pura se manifesta e, se tem algo de que este país não padece, é da falta das artes.


O trecho mais conhecido do poema, talvez por conta da versão do Chico, é quando Severino "Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério":



Esta cova em que estás, com palmos medida
É a conta menor que tiraste em vida


É de bom tamanho, nem largo, nem fundo
É a parte que te cabe deste latifúndio



Não é cova grande, é cova medida
É a terra que querias ver dividida



É uma cova grande pra teu pouco defunto
Mas estarás mais ancho que estavas no mundo



É uma cova grande pra teu defunto parco
Porém mais que no mundo, te sentirás largo



É uma cova grande pra tua carne pouca
Mas a terra dada não se abre a boca



É a conta menor que tiraste em vida


É a parte que te cabe deste latifúndio
(É a terra que querias ver dividida)



Estarás mais ancho que estavas no mundo
Mas a terra dada não se abre a boca



Descobri agora uma animação do poema, já não tão recente, que merece muito ser vista. É bonita em todos os sentidos: fora a poesia, o desenho é lindo, apresenta uma estética de quadrinhos e uma sensibilidade para retratar a crueza da realidade de "Morte e Vida" que me pôs a escrever.


Morte e Vida Severina é uma obra que deveria fazer parte do repertório de todo brasileiro. Rever esse poema me faz pensar no quão artificial e cruel é a manutenção da pobreza das populações mais frágeis do país. Ou em como um partido como o PMDB - agora sem "pê" - serve não apenas aos interesses do mercado mas, como um partido que funciona como uma confederação de coronéis e caciques regionais, lhe interessa, sistemicamente, o retorno dessa condição que parecia superada: a exploração da fome como instrumento de domínio e controle social.

Aziz Ab´Saber escreveu, em 1999, um texto chamado "Sertões e sertanejos: uma geografia humana sofrida", que considero um dos textos mais geográficos, de fato, já produzidos no Brasil. Pra quem se interessar, o link está aqui. Eu recomendo a leitura integral, mas como sei que a primeira parte do texto, que trata da geografia física requer uma certa familiaridade com o jargão da Geomorfologia, sugiro que comecem a leitura pela segunda parte do texto "A última grande seca do século".

Há seis anos, o Nordeste encara mais uma grande seca. Dessa vez, não vimos as imagens das ondas de retirantes chegando aos grandes centros urbanos, do gado morrendo, do drama da fome. Isso se deve, incontestavelmente, aos programas de segurança alimentar, em especial, ao Bolsa-família. Os retrocessos promovidos por Michel Temer e seu governo, em nome da entidade "O Mercado", representado no Planalto pelo PSDB, e dos interesses dos caciques regionais de seu partido, o PMDB, de latifundiários, senhores de engenho do século XXI.

Enfim, a produção artística de um país é certamente um instrumento civilizatório. Artistas são especialistas em ilustrar, comunicando-se com as nossas sensibilidades, a condição humana. Morte e Vida Severina é uma dessas obras que, em minha experiência pessoal, serviu como gatilho para conectar um conhecimento formal, que já existia em mim, com a importância de tê-lo e, mais importante, de sensibilizar-me para com a realidade descrita.


"a realidade é tão violenta
que ao tentar apreendê-la
toda imagem rebenta."

"Uma faca só lâmina", João Cabral de Melo Neto

domingo, 8 de abril de 2018

Mascuplicando o mansplaining

Um dos conceitos mais interessantes que surgiram na última década, do ponto de vista de artilharia retórica, é o de "mansplaining". É um produto do feminismo moderno importantíssimo, porque extrapola as fronteiras do sexismo clássico (opressão homem sobre mulher), informando a qualquer ser humano a sensação de estar oprimindo ou a de ser oprimido, no plano retórico.

Mansplaining é uma definição recente para um problema antigo, e eu sinto que deveria ser mais difundido por estas bandas, ou pela adoção do termo original, ou através da criação de um neologismo similar. Sugiro "mascuplicação" - se não for acatado, dou de presente pra medicina - talvez sirva pra descrever um procedimento cirúrgico muito específico para homens que ninguém sabe direito o que é:

- Amanhã serei submetido a uma mascuplicação...
- Pra quê?
- Não é da sua conta.

Também serviriam "homexplicação" ou, se quisermos o estrangeirismo, "mansplicação".

Como eu sei que a maioria dos brasileiros ainda (isso vai pegar) não sabe o que mansplaining significa, vou mascuplicar aqui (vamos fazer pegar!). Mansplaining consiste em explicar alguma coisa pra alguém assumindo, num tom condescendente, que o interlocutor sabe muito menos que você sem que existam motivos para tanto. Normalmente ocorre no sentido homens ➨ mulheres, embora possa ocorrer entre mulheres, de mulheres para homens ou entre homens - eu tenho várias histórias de gente mascuplicando coisas pra mim (uuuhh....).

Acusar alguém de mansplaining geralmente é um golpe forte de retórica: expõe a postura arrogante do mascuplicador, a obviedade do objeto, e a ignorância daquele em não percebê-la - trata-se, portanto, de uma arma muito útil no arsenal retórico. Agora: como dizia o poeta, "com grande poder vem uma grande responsabilidade" (Parker, Ben - 2002). É muito fácil acusar alguém falsamente de mascuplicação.

Neste artigo recente a jornalista Giuliana Vallone (secretária-assistente de redação do jornal) explica bem o conceito de mansplaining, e logo depois ilustra-o incorretamente com a sessão do STF que negou o Habeas Corpus pleiteado pela defesa de Lula. A autora acusa os ministros Marco Aurélio Mello e Ricardo Lewandowski de mascuplicar para a ministra os efeitos da decisão dela.

Eu assisti a sessão inteira. Confesso que nos exemplos citados, eu não vi a condescendência que a jornalista da Folha enxergou. Para a autora, depois de diversos exemplos claros de mansplaining, o pior momento foi a acusação de Marco Aurélio de que o voto de Rosa Weber não estava claro. Reproduzo aqui o trecho destacado na reportagem:



“Rosa, Vossa Excelência me permite um aparte?”, disse Marco Aurélio. “Pois não, ministro Marco Aurélio, com muito gosto”, respondeu Rosa, com expressão de quem já sabe o que vem pela frente.

“Se a apreciação dos pedidos formulados nas [ações] declaratórias de constitucionalidade fosse hoje, haveria maioria para deferir a liminar, ante a evolução do ministro Gilmar Mendes”, afirmou ele.

Antes de conseguir respondê-lo adequadamente, a ministra também precisou se explicar a Lewandowski, que irritado, defendeu que considerando a posição de Rosa, “a corte não pode evoluir jamais”.

Cármen Lúcia, presidente do STF, saiu em defesa da colega. “Ministro, a ministra Rosa Weber justificou muito bem, exatamente dentro da opinião dela, então acho que há de se respeitar.” Foi, entretanto, também interrompida por Lewandowski, que argumentou que, no colegiado do Supremo, a troca de ideias é cabível.

“Com muito prazer. Mas tem um detalhe: eu estabeleci premissas teóricas”, disse Rosa, antes de ser interrompida novamente (a essa altura, pela terceira vez).

E então, veio a cereja do bolo. “No início, eu confesso que não sabia a natureza de seu voto. E eu tenho alguma experiência no colegiado”, afirmou Marco Aurélio.

“Quem me acompanha nesses 42 anos de magistratura não poderia ter a menor dúvida com relação ao meu voto, porque eu tenho critérios e procuro manter a coerência das minhas decisões”, respondeu a ministra, que, ao retomar seu voto, já nem conseguia mais lembrar onde havia parado.



A afirmação final de Marco Aurélio "E eu tenho alguma experiência no colegiado" é de fato arrogante. Mas o resto da discussão me parece estar dentro dos parâmetros normais. Como eu tenho alguma experiência em assistir esses caras em sessões desde muito antes de virar modinha (problema meu), a coisa toda me parece natural para a escrota vaidade do Marco Aurélio, descrita em detalhes nesses dois artigos da piauí parte 1 e parte 2 (recomendo).

De resto, a ministra se saiu muito bem. Há inúmeros relatos na mídia de pessoas que não conseguiam adivinhar em que direção o voto de Rosa Weber caminhava, mas esse é um outro problema: os ministros são prolixos, vaidosos e GOSTAM de tirar os coelhos de suas cartolas no finalzinho, postura besta, do ponto de vista da objetividade. Já o debate duro, a crítica irritada e pesada do Lewandowski, tudo isso é perfeitamente normal na dinâmica do STF.

O que nos faz pensar, todavia, é a segunda parte da matéria, que também transcrevo aqui:




"Mas Cármen e Rosa, duas das únicas três mulheres a ocuparem uma cadeira no Supremo em toda a história da corte (Ellen Gracie, aposentada em 2011, foi ministra por 11 anos) já são pós-graduadas em 'mansplaining'.



No ano passado, a presidente do STF interrompeu uma sessão para falar sobre o desequilíbrio nas relações de gênero no tribunal. Ela citou estudo feito por Tonja Jacobi e Dylan Scheweers, dois pesquisadores da Escola de Direito da Northwestern University, nos EUA. 


Eles analisaram transcrições de sustentações orais na Suprema Corte americana ao longo de anos e concluíram que integrantes do sexo masculino interrompem mulheres três vezes mais do que homens. 

O levantamento mostra que, apesar de as ministras falarem menos e usarem menos palavras do que os ministros, são interrompidas durante a fase de sustentação oral de forma significativamente maior. 

Em 2015, quando havia três mulheres entre os magistrados da corte suprema dos EUA, 65% das interrupções foram dirigidas a elas. 

Diante dos dados, Cármen concluiu: 'E a ministra Sotomayor [da Suprema Corte americana] me perguntou: como é lá [no Brasil]? Lá, em geral, eu e a ministra Rosa, não nos deixam falar, então nós não somos interrompidas'."



Tá aqui o vídeo:



Perfeito o pito público da Carmen Lúcia, especialmente porque essas coisas são gravadas e ficam para a posteridade. Todavia, o que resta demonstrado tanto na análise da jornalista quanto no exemplo da sessão de ontem, não é o conceito de mansplaining, mas uma outra modalidade de machismo parecida, que também afirma superioridade intelectual através do exercício constante de interrupções no sentido homens ➨ mulheres, o que sugere, no mínimo, falta de respeito. Isso também tem nome moderno específico: "manterrupting" (man + interrupting), termo muito menos utilizado. O que me deixa com uma pulga atrás da orelha é a possibilidade de que  a acusação de mansplaining neste caso sirva para angariar as simpatias dos movimentos identitários no sentido de uma defesa do voto de Rosa Weber. Não sei se a autora forçou a barra porque queria apresentar o conceito, se é erro mesmo, ou se há um objetivo oculto no artigo.

Enfim, de qualquer forma queria aproveitar a oportunidade de promover o conceito de mansplaining. e introduzir, no vocabulário nacional, um termo pra chamar de nosso.

Mascuplicação!



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quarta-feira, 14 de março de 2018

Uma breve história no tempo

Primeiro foi o Carlos Heitor Cony, agora o Stephen Hawking...parece que este é o ano de perder os autores que inauguraram em mim o gosto por estilos específicos - talvez o Manuel Bandeira morra de novo em 2018.

"Uma breve história do tempo" foi o primeiro de muitos livros de divulgação científica que li, aos doze ou treze, por influência do Mario, que o leu aos onze ou doze. O exemplar original, eu jamais devolvi, de forma que esse também foi o primeiro livro que "roubei"*. Sem sombra de dúvida, foi o livro que me despertou o interesse no gênero; quem me conhece sabe o quão importante esse tipo literário é para mim.

A morte do Hawking tem um quê de agridoce: por mais triste que seja perder uma mente tão privilegiada, não consigo deixar de ficar um pouco feliz pelo fato de que ele, na condição de "condenado à morte" há tanto tempo, possa ter me acompanhado por tantos anos. O físico se transformou num ícone da cultura popular. Dono de um belíssimo senso de humor, gostava de mostrar esse lado nas entrevistas (vejam o vídeo abaixo). Também era afeito a dar pitaco nos grandes temas da humanidade e de nos fornecer declarações que podiam, automaticamente, serem utilizadas como argumento de autoridade - eu nunca deixei de refletir sobre elas, a mais recente, o medo que tenho das consequências do desenvolvimento da inteligência artificial.

Tem uma coisa linda sobre o Hawking: o exemplo definitivo de que o cérebro é aquilo que somos e o corpo, algo que temos.


https://youtu.be/OPV3D7f3bHY


* eu simplesmente assumi que havia devolvido o livro, até encontrá-lo, muitos anos depois, no fundo de uma estante. Nessa altura o Mario já havia comprado outro exemplar e deixou que eu ficasse com o original.

sábado, 6 de janeiro de 2018

Valeu, Carlos Heitor Cony! (ou "o jornal e eu")


Brasil, Mundo, Economia, Cotidiano, Esportes, Ilustrada, o suplemento semanal do dia e crônicas. Essa é a ordem na qual eu leio, desde criança, a Folha de São Paulo. Não era por mero acaso, óbvio. Os cadernos da Folha eram identificados por letras: Brasil (ou Poder)/Mundo = A, Economia (ou Dinheiro) = B e assim por diante. O lazer ficava pro final; minha única grande alteração em relação ao que a Folha planejava para mim era a inversão eventual entre esportes, ilustrada ou o suplemento semanal (folhateen, equilíbrio, turismo, informática): o que me atraísse mais no dia ficava pro final. A "microalteração" era a seguinte: eu sempre deixo UMA crônica pro final.


Sendo filho de professores universitários, eu tive a sorte de crescer numa casa em que se lia e havia livros disponíveis o tempo todo. O que pouca gente sabe é que a minha transição para "leitor adulto" ocorreu mais através do jornal do que dos livros. A Folha, periódico com o qual eu hoje mantenho uma relação de amor e ódio, foi o veículo responsável por me conduzir neste processo. A minha leitura de livros também se tornou mais madura, óbvio, mas pensando em retrospectiva, eu estou certo de que foi o jornal puxou o bonde.
Lembro exatamente de como e quando isso ocorreu: foi a partir da segunda metade do governo Sarney. Eu sempre gostei de conversar com adultos. Os almoços do departamento de geografia da UEM, onde os meus pais trabalhavam, eram um ambiente no qual a conversa gravitava muito em torno de política. Eu queria entender a razão pela qual aquele monte de "professores de gente grande" detestavam o presidente bigodudo.




A Folhinha, aos sábados, já fazia parte dos meus hábitos de leitura (aliás, nunca deixei de ler, enquanto tive o jornal impresso). Dali pra começar a dar uma espiada no resto do jornal foi um pulo. Eu, que já acompanhava, de alguma forma, a discussão política e gostava especialmente de quando o humor se referia à ela (cabaré do Barata, por exemplo), li toda a cobertura das eleições de 1989. Foi por ali que surgiu um gosto por pesquisas eleitorais: eu gostava de construir meus próprios gráficos, fazer projeções, etc. Se eu soubesse, àquela época, que um dia haveria algo como o Excel, certamente teria sido uma criança mais ansiosa. Só como ilustração, estão guardados, até hoje, todos os cadernos especiais da Guerra do Golfo e folhas de caderno nas quais eu contabilizava os arsenais dos EUA e Iraque em número de homens, armamentos e mísseis Patriot, Tomahawk e Scud.



***

Hoje eu acordei com a notícia amarga do falecimento de um dos meus cronistas favoritos. Carlos Heitor Cony foi um dos colunistas que marcou a minha adolescência, como leitor. Toda vez que pego um exemplar impresso da Folha e abro na página A2, onde ficam os editoriais, meus olhos vão, automaticamente, pra parte de baixo das colunas centrais, onde eu costumava encontrar as suas crônicas. Foi naquele espaço que foi construída boa parte da minha noção cultural do Rio de Janeiro.

O Cony talvez tenha sido o primeiro nome que eu aprendi a reconhecer no jornal. Os dias de crônica dele eram melhores que os outros - os textos "conyferos" ficavam guardados pro final - o que significava que, apesar de ser posicionado pela Folha lá no comecinho (posição honrosa dentro do jornal), eu o deixava pro final (posição honrosa pela lógica da caixa de bombons - o melhor por último. Em tempos mais recentes, a posição de último bombom foi assumida pelo Antonio Prata - o Cony, que já experimentou amargores brasileiros demais, vinha ficando triste e amargo. Os dois publicavam no domingo, o Prata no topo da contracapa de Cotidiano, de forma que o transporte para o final era menor.

O escritor carioca, como todo bom cronista, de vez em quando fazia referência ao fato de que era um cronista e de que aquilo era uma crônica, de forma que eu entendi cedo o que era uma crônica e sabia que gostava de ler o gênero. A partir do Cony que fui descobrindo outros favoritos mais antigos: Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Fernando Sabino - todos esses só li postumamente. Também na Folha conheci o Moacyr Scliar - de quem ainda sinto falta.


***


Eu estudei num colégio católico e cresci num bairro com grande concentração de professores universitários. No Colégio Marista pouquíssimos dos meus colegas de classe liam jornais (ou qualquer outra coisa que não os livros obrigatórios). Os pais de alguns assinavam "O Diário do Norte do Paraná", de forma que vez ou outra alguém comentava uma charge do Lukas, o cartunista local mais ou menos. A qualidade da redação sugere que ao menos duas meninas da minha turma eram leitoras mais assíduas de alguma coisa, mas não tenho certeza. Já no bairro em que eu cresci, a situação era outra: o Jardim Canadá era habitado por uma variedade de professores, a maioria da universidade. A minha casa era a última de uma rua sem saída, e os vizinhos da esquerda, em ordem, eram os seguintes: um casal de professores (sociologia e educação) com um casal de filhos da minha idade, um casal que na época não tinha filhos (Enfermagem e Zootecnia), outro casal com um filho um tanto mais novo (matemática e estatística). Esparsos pelo bairro de nove quarteirões tinha gente da agronomia, psicologia, direito, educação física, história e mais um número de professores do primeiro e segundo graus. Dessa forma, não demorou muito até que eu conhecesse mais gente que gostava de ler, inclusive mais gente que lia jornal.

Dos meus amigos que liam jornal, haviam os que liam a Folha (eu e o Gustavo) e os que liam Estadão (João Paulo e Livia). Eu era o mais velho desse grupo. O Estadão era um jornal estranho pra mim: os cadernos tinham outros nomes, a diagramação era diferente, além de ser um jornal normalmente mais gordo que a Folha. Eu achava um jornal maior e pior, discordava do grosso das opiniões, achava a seção de quadrinhos pobre: a Folha tinha Laerte (Piratas do Tietê) , Angeli (Chiclete com Banana), Fernando Gonsales (Níquel Náusea), Garfield, Dilbert, Hagar (e a porra do Glauco). Mas tinha uma coisa no Estadão que que invejava: eles tinham o Veríssimo.

Como o Veríssimo não escrevia no jornal certo (o que eu lia), eu só fui conhecer através de um livro, já mais velho. "Comédias da vida privada" foi o primeiro livro que comprei em livraria de aeroporto, numa ida à Fortaleza. O livro foi devorado na viagem e eu acabei lendo muitos outros do autor. Até hoje acho "errado" a Folha jamais ter contratado o gaúcho, mas enfim...tínhamos o Scliar.

Eu deixei de assinar a Folha em 2014, por ocasião da demissão do Xico Sá. Continuo lendo online porque o meu pai não deixou de assinar e é difícil vencer um hábito tão antigo e com tanto valor pessoal. Ainda considero um jornal menos escroto que Estadão e O Globo, mas não tenho ácido gástrico suficiente pra engolir, digerir e assinar eu mesmo. O jornal contratou o Kim Kataguiri (KK)quando interessava, depois demitiu quando a coisa arrefeceu (kkkkk!!!). O cara agora ganha dinheiro vendendo um livro chamado "Quem é esse moleque pra estar na Folha". Eu gostaria que o jornal respondesse a pergunta, com sinceridade. Eu tenho uma teoria...por outro lado, a Folha tem o melhor cronista da geração atual, o Antonio Prata. O cara tem a minha idade, tenho a impressão de que caminha pra se tornar o maior dos cronistas brasileiros.

Enfim, a morte do Cony me fez sentir falta, novamente, do jornal de papel. Ler o jornal (e não notícia a notícia na tela do celular) é um ritual diferente. As coisas têm os seus lugares, como o cantinho do Cony, o topo da contracapa da ilustrada do Zé Simão. Segurar o jornal completamente aberto uma habilidade adquirida. Eu olho com algum desdém pra gente que não sabe segurar jornal ou que precisa dobrá-lo para ler - coisa que os bons leitores só fazem acima de uma certa velocidade de vento, quando é permitido ler com uma página inteira na vertical - uma página dobrada só com furacão. É engraçado conciliar isso com a minha adoração pelo conforto do kindle, especialmente quando comparado a livros muito grossos.

Os grandes escritores têm a habilidade de, através da linguagem escrita, conduzir o leitor através de uma certa forma de enxergar as coisas que é peculiar, interessante, pitoresca. Cronistas são os caras que fazem isso com os mais cotidianos dos assuntos, a conta gotas, em geral com uma dose de humor. Há quem considere a crônica como uma forma menor da arte literária, eu não. Mal passaram as minhas saudades do Scliar e vai-se o Cony. Veríssimo, eu preciso de pelo menos mais dez anos teus, cara...o mundo anda muito triste, como as última crônicas do teu finado colega.



Uma carta e o Natal (31/12/2017)

Este será o primeiro Natal que enfrentaremos, pródigos e lúcidos. Até o ano passado conseguimos manter o mistério —e eu amava o brilho de teus olhos quando, manhã ainda, vinhas cambaleando de sono em busca da árvore que durante a noite brotara embrulhos e coisas. Havia um rito complicado e que começava na véspera, quando eu te mostrava a estrela onde Papai Noel viria, com seu trenó e suas renas, abarrotado de brinquedos e presentes.

Tu ias dormir e eu velava para que dormisses bem e profundamente. Tua irmã, embora menor, creio que ela me embromava: na realidade, ela já devia pressentir que Papai Noel era um mito que nós fazíamos força para manter em nós mesmos. Ela não fazia força para isso, e desde que a árvore amanhecesse florida de pacotes e coisas, tudo dava na mesma. Contigo era diferente. Tu realmente acreditavas em mim e em Papai Noel.

Na escola te corromperam. Disseram que Papai Noel era eu —e eu nem posso repelir a infâmia e o falso testemunho. De qualquer forma, pediste um acordeão e uma caneta— e fomos juntos, de mãos dadas, escolher o acordeão.
O acordeão veio logo, e hoje, quando o encontrar na árvore, já vai saber o preço, o prazo de garantia, o fabricante. Não será o mágico brinquedo de outros Natais.

Quanto à caneta, também a compramos juntos. Escolheste a cor e o modelo, e abasteceste de tinta, para "já estar pronta" no dia de Natal. Sim, a caneta estava pronta. Arrumamos juntos os presentes em volta da árvore. Foste dormir, eu quedei sozinho e desesperado.

E apanhei a caneta. Escrevi isto. Não sei, ainda, se deixarei esta carta junto com os demais brinquedos. Porque nisso tudo o mais roubado fui eu. Meu Natal acabou e é triste a gente não poder mais dar água a um velhinho cansado das chaminés e tetos do mundo.




Se eu morrer amanhã (05/03/2017)

Se eu morrer amanhã, não levarei saudade de Donald Trump. Também não levarei saudade da operação Lava Jato nem do mensalão. Não levarei saudade dos programas do Ratinho, do Chaves, do Big Brother em geral. Não levarei nenhuma saudade do governador Pezão e do porteiro do meu prédio.


Se eu morresse amanhã, não levaria saudade do rock, dos sambas-enredo do Carnaval, daquela águia da Portela nem dos discursos do Senado e da Câmara, incluindo principalmente as assembleias estaduais e a Câmara dos Vereadores.
Se eu morrer amanhã, não levarei saudades dos buracos da rua Voluntários da Pátria, das enchentes do Catumbi, dos técnicos do Fluminense, dos juízes de futebol, da Xuxa e das piadas póstumas do Chico Anysio. Não levarei saudade do Imposto de Renda e demais impostos, e muito menos levarei saudade das multas do Detran.

Não levarei saudade da vizinha que canta durante o dia uma ária de Puccini ("oh mio bambino caro") que ela ouviu num filme do Woody Allen. Aliás, também não levarei saudade do rapaz que mora ao meu lado e está aprendendo a tocar bateria.
Não levarei saudade das cotações da Bolsa, das taxas de inflação e das dívidas externas do Brasil. Não levarei saudade dos pasteis das feiras livres nem das próprias feiras livres, também não levarei saudade dos blocos de índio que geralmente fedem mais do que os verdadeiros índios.

Não levarei saudade dos lugares em que não posso fumar, das lanchas de Paquetá e dos remédios feitos com óleo de fígado de bacalhau. Não terei saudades das mulheres que usam silicone e blusas compradas no Saara.
Enfim, não levarei saudade de mim mesmo, dos meus fracassos e dívidas. Finalmente, não terei saudades dos milagres dos pastores evangélicos nem de um mundo que cada vez fica mais imundo.