sábado, 20 de fevereiro de 2016

Meu primeiro Eco

E eis que Umberto Eco foi-se do mundo.
Estou triste, pois foi um autor importante para mim. Não seria certo me dizer um fã ardoroso, e nem que sentiria falta dos livros que ele poderia vir a escrever: afinal, li muito pouco de sua obra teórica, e apenas dois de seus vários romances. Ainda assim, afirmo sem titubear que o contato precoce e comedido com a literatura do intelectual italiano -- que se iniciou em 1996, vinte anos atrás -- teve vital impacto em minha formação.

Entre aqueles humanos com quem tomei contato apenas pela leitura, Eco foi talvez o maior responsável por inocular em mim, ainda tão cedo, o pernicioso vírus do gosto pela erudição. Não exatamente o "ser" erudito, que é uma coisa para qual não basta talento ou gosto, é preciso de cultivo e disciplina dos quais não disponho; mas aquela benignamente perversa diversão intelectual que se consegue ter com idéias puras, com ficções da mente, com jogos de palavras. Aquele prazer em se adquirir, reconectar e embaralhar referências, de cultivar e ampliar seu próprio repertório de conhecimento, não apenas como quem lida com um material de grande importância -- a Verdade, o Conhecimento, o Mito, a Cultura -- mas também, e sobretudo, como uma criança que amorosamente manipula seus próprios brinquedos e histórias e personagens; coisas que outros construíram antes para ela, mas das quais ela se apropria, e torna seu, e torna sonho.

Esse foi o resultado de me empenhar tanto em ler "O Pêndulo de Foucault" tão cedo, ainda aos inocentes 16 anos (quando ainda morava em São Luís e estudava no segundo colegial).  Segundo romance de Eco (e provavelmente o mais difícil de ler, me corrija quem leu todos), esse foi um dos livros em que me descobri como um ser inapelavelmente pertencente à área "das humanidades" (se é que restava alguma dúvida àquela altura).


O livro me caiu como uma bomba nuclear de informação cultural de altíssima densidade, despertando menos compreensão -- ainda que esta também tenha-se feito -- do que fascínio. Mesmo com meu repertório limitado para tal leitura, eu percebi que acompanhava com genuíno interesse e diversão o desfile de referências científicas, místicas e filosóficas, quase sempre nas conversas chulamente informais, exacerbadamente especulativas e altamente cifradas dos personagens Belbo, Diotallevi e Casaubon.
Esse, aliás, é um ponto interessante:  praticamente todo mundo tem repertório limitado diante da amplitude insana desse livro específico, e talvez isso é que seja o atrativo em Eco: você não precisa realmente dominar tudo do que ele está falando para se entreter, e ser tocado, e pensar. O que, por outro lado, também poderia resultar num perigosíssimo convite aos cantos de sereia da picaretagem intelectual, não? Hoje, passados vinte anos e muitas milhares de páginas de leitura posterior, tenho curiosidade de saber o que acharia desse livro hoje.

De todo modo, nunca me esqueci desde então -- vinte anos! -- da piada da Universidade de Patafísica, suas disciplinas de Urbanística Cigana e Hípica Asteca e seu Departamento de Tetrapictolomia (a ciência de repartir cada cabelo em quatro). Há um ano e pouco, tornei-me pai; e, em minha paternidade, ainda pensei e penso esporadicamente no tratamento místico-amoroso que o Casaubon de Eco dava a seu próprio recém-nascido:"meu rébis".

Mas guardei particularmente comigo a ácida divisão das pessoas entre as categorias de "cretinos", "imbecis", "estúpidos" e "loucos", que Umberto Eco incluiu no primeiro e memorável diálogo entre Belbo e Casaubon.  Para quem tiver a paciência, reproduzo na íntegra, neste final de post, essa conversa que, em sua pseudo-taxonomia intelectual, é também uma aula informal de raciocínio lógico e uma interminável mas saborosa ostentação de referências eruditas.

Mas falava de meu primeiro encontro com Belbo. Conhecíamo-nos de vista, umas trocas de frases no Pílades, mas não sabia muito sobre ele, salvo que trabalhava na Garamond, e na universidade acontecia caírem-me nas mãos alguns livros dessa editora. Uma pequena editora, porém séria. O jovem que esteja terminando sua tese sente-se sempre atraído por alguém que trabalhe para uma editora cultural. 
"E o amigo o que faz?" perguntou-me uma tarde quando estávamos ambos apoiados no ângulo extremo do balcão de zinco, espremidos por um grupo enorme das grandes ocasiões. Era a época em que todos se tratavam por tu, os estudantes aos professores e os professores aos alunos. Não falemos da fauna do Pílades: "Paga um trago aí para mim", dizia o estudante de dólmã verde-oliva ao redator-chefe de um grande periódico. Parecia São Petersburgo nos tempos do jovem Sklovski. Tudo Maiakovski e nenhum Jivago. Belbo não se furtava ao tu generalizado, mas era evidente que o cominava por desprezo. Empregava o tu para mostrar que respondia à vulgaridade com a vulgaridade, mas que existia um abismo entre forçar intimidade e em ser íntimo. Vi-o empregar o tu com afeto, ou com paixão, só poucas vezes e com poucas pessoas, Diotallevi, algumas mulheres. A quem estimava, sem conhecer há muito, empregava o amigo. Assim fez comigo durante todo o tempo que trabalhamos juntos, e eu apreciei o privilégio. 
"E o amigo o que faz?" me havia perguntado, agora o sei, com simpatia. 
"Na vida ou no teatro?" disse, acenando para o palco do Pílades. 
"Na vida." 
"Estudo." 
"Frequenta a universidade ou estuda?" 
"Não lhe parecerá verdade mas as duas coisas não se contradizem. Estou terminando uma tese sobre os Templários." 
"Que coisa horrível", disse. "Isso não é coisa de doidos?" 
"Estou estudando os autênticos. Os documentos do processo. Mas que sabe sobre eles?"
"Trabalho numa editora e numa editora aparecem sábios e loucos. É função do redator reconhecem os loucos num golpe de vista. Quando alguém aparece com essa dos Templários é quase sempre um louco." 
"Não me diga. Seu nome é legião. Mas nem todos os loucos falarão dos Templários. E os outros, como é que os conhece?" 
"Tarimba. Já lhe explico, ao amigo que é jovem. A propósito, como é seu nome?" 
"Casaubon." 
"Não era um personagem da Middlemarch?" 
"Não sei. Em todo caso era também um filólogo da Renascença, se não me engano. Mas não somos parentes." 
"Fica para a próxima. O amigo toma outra? Pílades, mais duas aqui, por favor. Pois vejamos. No mundo existem os cretinos, os imbecis, os estúpidos e os loucos." 
"Sobra alguém?" 
"Sim, nós dois, por exemplo. Ou pelo menos, sem querer ofender, eu. Mas em suma, todos, a bem dizer, participam de uma destas categorias. Cada um de nós vez por outra é cretino, imbecil, estúpido ou maluco. Digamos que a pessoa normal é aquela que mistura em proporções racionais todos esses componentes, estes tipos ideais." 
"Idealtypen."
"Muito bem. Também sabe alemão?" 
"Arranho, dá para as bibliografias." 
"No meu tempo quem sabia alemão não precisava diploma. Passava a vida sabendo alemão. Creio que hoje isso acontece com o chinês". 
"Como não sei alemão bastante, me formo. Mas, voltando à sua tipologia, que é o gênio, Einstein, digamos?" 
"O gênio é aquele que faz uma componente atuar de maneira vertiginosa, alimentando-a com as outras." Bebe. Diz: "Boa noite beleza. Já tentou o suicídio?" 
"Não", responde a passante, "agora estou numa comunidade." 
"Ótimo", lhe diz Belbo. Retornando a mim: "Pode-se praticar até mesmo suicídio coletivo, não acha?" 
"Mas e os loucos?" 
"Espero que não tenha tomado a minha teoria muito ao pé da letra. Não estou pondo o universo no lugar. Estou dizendo o que é um louco para uma casa editora. A teoria é ad hoc, está bem?" 
"Está. Agora é a minha vez." 
"Concordo Pílades, por favor menos gelo. Se não entra logo no circuito. Então. O cretino não fala sequer, baba, é espástico. Atocha o sorvete na testa, por falta de coordenação. Entra na porta giratória pelo lado contrário." 
"Como consegue?" 
"Ele consegue. Por isso é cretino. Não nos interessa, a gente e reconhece de estalo, e não é do tipo que aparece na editora. Deixemo-lo à parte." 
"Pois deixemos." 
"Sem imbecil é mais complexo. É um comportamento social. O imbecil é aquele que fala sempre fora do copo." 
"Em que sentido?" 
"Assim." Ergueu o indicador, apontando-o em direção ao copo, mas veio batê-lo fora, contra o balcão. "O imbecil quer falam daquilo que está no copo, mas vai e volta, acaba falando do que está fora. Se preferir, em termos vulgares, é o mesmo que a gafe do sujeito que pergunta como está sua senhora ao indivíduo que acaba de ser abandonado pela mulher. Dei-lhe a idéia?" 
"Deu-me. Conheço muitos." 
"O imbecil é muito solicitado, em especial nos eventos mundanos. Põe todos embaraçados, mas depois oferece ocasião de comentário. Em sua forma positiva, torna-se diplomata. Faia fora do copo quando outros cometem a gafe, sabe como desviar o assunto. Mas não nos interessa, não é nada criativo, trabalha de repórter, logo não vem oferecer manuscritos às casas editoras. O imbecil não diz que o gato ladra, fala do gato quando os demais falam do cão. Confunde as regras da conversação e quando o faz bem é sublime. Creio que se trata de uma raça em via de extinção, um portador de virtudes eminentemente burguesas. Vidrado em salão Verdurin, até mesmo em casa Guermantes. Os estudantes ainda lêem essas coisas?" 
"Eu leio." 
"O imbecil é Joachim Murat, que passa em revista seus oficiais e vê, cheio de condecorações, um da Martinica. "Vous êtes nêgre?", pergunta-lhe. E este: "Oui mon général!" E Murat: "Bravo, bravo, continuez!" E assim por diante. Está me seguindo? Desculpe, mas esta noite estou comemorando uma decisão histórica da minha vida. Deixei de beber. Quer mais outro? Não responda, me faz sentir culpado. Pílades!" 
"E o estúpido?" 
"Ah. O estúpido não se engana de comportamento. Engana-se no raciocínio. É aquele que diz que todos os cães são animais domésticos e que todos os cães latem, mas que também os gatos são animais domésticos e que portanto latem. Ou antes, que todos os atenienses são mortais, todos os habitantes do Pireu são mortais, logo todos os habitantes do Pireu são atenienses." 
"O que é verdade." 
"Sim, mas por acaso. O estúpido pode mesmo dizer uma coisa certa, mas por motivos errados." 
"Pode-se dizer coisas erradas, basta que as razões sejam justas." 
"Por Deus. Para que então esforçar-se tanto para se ser animais racionais?" 
"Todos os grandes símios antropomorfos descendem de formas de vida inferiores, os homens descendem de formas de vida inferiores, logo todos os homens são grandes símios antropomorfos." 
"Essa é bem boa. Já estamos naquele limiar em que a gente suspeita de que algo não se encaixa, mas que nos requer certo trabalho para demonstrarmos o que é e por quê. O estúpido é insidiosíssimo. O imbecil a gente reconhece de súbito (para não falar do cretino), enquanto o estúpido raciocina quase como tu, salvo um desvio infinitesimal. E um mestre dos paralogismos. Não há salvação para o redator editorial, tem que esperdiçar uma eternidade. Publicam-se muitos livros de estúpidos porque à primeira vista nos convencem. O redator editorial não é obrigado a reconhecer o estúpido. Se a  academia de ciências não o faz, por que deveria fazê-lo o editor?" 
"A filosofia não o faz. O argumento ontológico de santo Anselmo é estúpido. Deus deve existir porque posso pensá-lo como um ser que encerra todas as perfeições, inclusive a existência. Confunde existência na mente com a existência no real." 
"Sim, mas também é estúpida a refutação de Gaunilone. Posso pensar numa ilha no mar mesmo se tal ilha não existe. Confundo o pensamento do contingente com o pensamento do necessário." 
"Uma luta entre estúpidos." 
"Certo, e Deus se diverte como um louco. Quis a si mesmo impensável só para demonstrar que Anselmo e Gaunilone eram estúpidos. Que escopo sublime para a criação, que digo, para o próprio ato em virtude do qual Deus se quer. Finalizando tudo na denúncia da estupidez cósmica." 
"Estamos cercados de estúpidos." 
"Não se escapa. Todos são estúpidos, exceto o amigo e eu. De novo, sem querer ofender, exceto o amigo." 
"Mas sabe que se aplica a prova de Gódel?" 
"Não sei, sou cretino. Pílades!" 
"A vez é minha." 
"Depois dividimos. Epimênides de Cnosso diz que todos os cretenses são mentirosos. Se ele, que é cretense, assim o diz, e os conhece bem, então é verdade." 
"Isto é estúpido." 
"São Paulo. Epístola a Tito. Ora esta: todos aqueles que pensam que Epimênides seja mentiroso não podem senão confiar nos cretenses. mas os cretenses não confiam nos cretenses, portanto nenhum cretense pensa que Epimênides seja mentiroso." 
"Isto é estúpido ou não?" 
"Veja. Disse-lhe que é difícil individualizar o estúpido. Um estúpido pode até ganhar o prêmio Nobel." 
"Deixe-me pensar... Alguns daqueles que não crêem que Deus haja criado o mundo em sete dias não são fundamentalistas, mas alguns fundamentalistas pensam que Deus haja criado o mundo em sete dias, portanto ninguém que não creia que Deus haja criado o mundo em sete dias é fundamentalista. É estúpido ou não?" 
"Meu Deus -- é o caso de dizer... Não saberia. O que me diz?" 
"É em todos os casos, mesmo se fosse verdade. Viola uma das leis do silogismo. Não se pode extrair conclusões universais de duas particularidades." 
"E se o estúpido fosse o senhor?" 
"Estaria em boa e secular companhia." 
"Isto mesmo. a estupidez nos rodeia. E talvez por um sistema lógico diverso do nosso. a nossa estupidez é a sabedoria deles. Toda a história da lógica consiste em definir uma noção aceitável de estupidez. Grande demais. Todo grande pensador é o estúpido de um outro." 
"O pensamento como forma coerente da estupidez." 
"Não. A estupidez do pensamento é a incoerência de um outro pensamento." 
"Profundo. Já são duas horas, daqui a pouco Pílades fecha e não teremos chegado aos loucos." 
"Já chegamos. O louco é reconhecível de cara. Um estúpido que não conhece os truques. O estúpido procura demonstrar sua tese, tem uma lógica cambeta, mas tem. O louco ao contrário não se preocupa em ter uma lógica, procede por curtos-circuitos. Tudo para ele demonstra tudo. O louco tem uma idéia fixa, e tudo o que encontra lhe serve para confirmá-la. Reconhece-se o louco pela liberdade com que toma nos confrontos os deveres de prova, na disposição de encontrar iluminações. E lhe parecerá estranho, mas o louco mais cedo ou mais tarde acaba vindo com essa dos Templários. 
"Sempre?" 
"Há também loucos sem Templários, mas os de Templários são mais insidiosos. No princípio não o reconhece. parece que falam de modo normal, depois, de súbito..." Fez um sinal de pedir outro uísque, mas voltou atrás e pediu a conta. 
"Mas a propósito dos Templários. Um dia desses um indivíduo me deixou um original datilografado sobre o assunto. Estou quase apostando que seja um louco, mas de aspecto humano. O original começa de maneira pacata. Quer dar-lhe uma olhada?" 
"Com muito prazer. Pode ser até que nele encontre alguma coisa que me sirva." 
"Não creio muito. Mas se tem uma horinha livre dê um pulo na editora. Via Sincero Renato número 1. Será de mais proveito para mim do que para o amigo. Poderá me dizer desde logo se lhe parece um trabalho fidedigno."
"Por que confiar em mim?"
 
"Quem lhe disse que confio? Mas se vier confio. Confio na curiosidade." 
Entrou um estudante, de fisionomia alterada: "Companheiros, os fascistas estão ao longo do canal, com correntes!" 
"Vou esmagá-los", disse o de bigodes à tártara que me havia ameaçado a propósito de Lenin. "Vamos companheiros!" Saíram todos. 
"Que fazemos? Vamos embora?" perguntei, culpabilizado. "Não", disse Belbo. 
"São falsos alarmas que Pílades manda espalhar para desobstruir o local. Por ser a primeira noite que deixo de beber, sinto-me alterado. Deve ser a crise de abstinência. Tudo o que lhe disse, até este instante inclusive, é falso. Boa noite, Casaubon."

Resquiat in Peace