segunda-feira, 21 de março de 2016

É golpe (ou a arte de produzir efeito sem causa)

subtítulo roubado do Mutarelli


Você mora em Bom Jesus do Galego e comprou uma arma.  Gosta de atirar e aos fins de semana vai até sua chácara em Santa Maria do Suaçuí, derrubar umas latinhas.

Fulano de Tal é um desafeto antigo, que você não vê há sete anos.  Trata-se de um ex-colega de trabalho que, ao disseminar boatos a seu respeito, acabou provocando sua demissão e divórcio.  Você nunca mais ouviu falar no sujeito até que, numa bela manhã, a polícia bate à sua porta e o conduz até a delegacia, para prestar esclarecimentos.

Você ouve todo tipo de perguntas, a respeito de uma arma, do seu relacionamento pregresso com o tal Fulano de Tal, se sabia da morte do filho dele, se havia ido à Santa Maria do Suaçuí no fim de semana em que, tragicamente, Ciclano de Tal - filho de Fulano - havia sido morto por um disparo de uma arma igua à sua.

Na saída da delegacia, um repórter da TV Leste, afiliada da Rede Globo, faz perguntas acerca do motivo do crime: você tem filhos? Como se sentiria caso matassem um deles? Tem alguma coisa a dizer para a família Tal?  A sua indignação e confusão geram uma resposta meio desinteressada, algo fria.  À noite, o Brasil fica sabendo do crime bárbaro: Ciclano de Tal, 7, morto com um tiro entre os olhos.

Grupos de pessoas fazem vigília na frente da sua casa, sua mulher é agredida na padaria.  A população brasileira conhece o seu ódio por Fulano de Tal e se comove com as lágrimas do pai, que "só quer justiça".

Não há qualquer prova material contra você, além de uma história segundo a qual você teria motivos banais para matar uma criança, vingança desproporcional para uma briga de trabalho, convenhamos...mas você esteve na cidade do crime, na data do crime.  Pessoas de Bom Jesus do Galego confirmam a viagem, há um pagamento registrado no seu cartão de crédito em um posto de gasolina na entrada de Santa Maria do Suaçuí.  A bala que matou Ciclano de Tal é compatível com as balas da sua arma que foi, aliás, disparada naquele dia.

Há uma história compatível com a de alguém que tenha assassinado o pequeno Ciclano de Tal, mas...é também uma história compatível com a de alguém que não tenha matado o menino.  A história é convincente, a opinião pública foi formada  - Fulano de Tal chorou no Fantástico.

O promotor é novo, inexperiente, mas o clamor popular acaba te condenando no tribunal do júri, que não é exatamente um julgamento técnico, formal...o apelo emocional tem um grande peso aqui.  Você é condenado a 17 anos de prisão.

Você sai do fórum berrando aos microfones que "não posso ser preso, não praticou homicídio".  Não importa.

Agora, imagine o seguinte: ao ouvir sua estribuchação (estribuchagem? estribuchamento?), o promotor, com um sorriso maroto diz - para que as câmeras registrem:

"Pode sim.  Não há injustiça alguma sendo cometida aqui, pois homicídio é crime e está previsto em lei."

Alguém levaria esse argumento a sério?

E se o William Bonner desse a notícia, em tom frio: "Assassino de Ciclano de Tal acusa justiça de praticar ato ilegal".

Na mesma noite, Merval Pereira conversa com dois respeitados juristas, que se põem a esclarecer que homicídio é crime, sim.  Um deles abre o Código Penal e faz a leitura do Artigo 121, em voz alta, para assegurar à população de que matar alguém é, de fato, ação passível de pena.  O outro doutor inicia uma explicação no sentido de que:

- Mas o que está em jogo não é se o crime de homicídio existe ou não, mas..."

- Mas existe?

- Sim.

- Então Fulano de Tal pode ser condenado por homicídio.  Muito obrigado doutor, voltamos depois dos comerciais.


Não perderei muito tempo explicando a triste fábula acima.  Enfatizo apenas que, perdi a conta do número de vezes que revirei os olhos, mentalmente (acho, alguns amigos me dizem que só na minha imaginação as caras que eu faço são apenas mentais), ao ouvir que:

Impeachment não é golpe.  Está previsto na constituição.

Pois é, amigos.  Homicídio também, assim como estupro, rixa, incêndio e sedução*.  Mas pra condenar alguém por estes crimes, é muito importante preencher quatro requisitos:

Ação - Resultado - Nexo Causal - Tipificação

Você atirou - Ciclano de Tal morreu - A bala que o matou tem que ter saído DA SUA ARMA - isso tem que estar descrito como crime na lei.

Daí decorre que o Impeachment está sim, descrito na lei.  Mas para alcançar o resultado é necessário provar que CRIME DE RESPONSABILIDADE TENHA SIDO COMETIDO PELA(O) PRESIDENTE DA REPÚBLICA.  Até o presente momento, "pedalada fiscal" não é crime - e não há razão alguma para que passe a ser considerado como tal.

A Constituição Federal, essa lei que vem sendo esquecida por alguns agentes nos últimos tempos tem um artigo - o quinto - que é o primeiro de uma seção sem maior importância, denominada

"Dos Direitos e Garantias Fundamentais"


É um artigo bastante longo, trata dessas bobagens do tipo "homens e mulheres são iguais" e "Liberdade de expressão", dentre outros disparates.  Lá pelas tantas, no inciso XXXIX, diz o seguinte:

"não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal"

O mesmo dispositivo se repete no artigo 1º do Código Penal, deve ser importante.  Dá-se a isso o nome de "princípio da legalidade".  É o que garante que você não será preso por uma lei inventada, a posteriori, que estabeleça que é crime chupar pirulito usando meias e chinelo de dedo só pra te ferrar depois da publicação de um selfie no sofá.

Pedalada Fiscal nunca foi interpretada como crime de responsabilidade - não há, inclusive, sanções previstas.  A única razão de ser das tais pedaladas é satisfazer o mercado financeiro e evitar o atraso nos pagamentos de programas de governo.  Nada foi desviado, nada.  Nada saiu dos cofres públicos.

Enfim, impeachment está previsto em lei, sim.  Impeachment sem base legal, bem...é golpe.



* Parece propaganda de novel.  Mas olhei agora e sedução não é mais crime**, cuidado!  Manterei a redação porque "incêndio e sedução" soa bem.

** Na verdade, não sei se não é crime ou se a ação é descrita em outro tipo...mas dizer que "sedução não é mais crime" me soou bem***.

*** Pronto.

segunda-feira, 14 de março de 2016

Sobre vaias e ovações

A respeito das micaretas manifestações anti-corrupção (na verdade, anti-PT) de ontem (13/03), vi diversas pessoas fazerem uma leitura preocupada do movimento duplo representado pela (relativamente) inesperada hostilização de Alckmin e de Aécio em São Paulo e pela ovação a Jair Boçalnato em Brasília. Na visão destes, isso seria indício de que o grande vitorioso dessas manifestações não seria o PSDB, mas sim a direita mais extrema.


É mesmo uma sobreposição pungente, convenhamos.

Isso é possível, sim; mas é um ponto de vista que, se não pode ser descartado, tem que ser matizado.
Para mim, antes de tudo, essa dupla ocorrência me parece indício da grande heterogeneidade dessas manifestações, onde poderia-se encontrar desde gente que nem sequer acha que deveria haver impítima mesmo (conheço pelo menos uma pessoa!) até defensores declarados de golpe militar e execução sumária de "comunistas". A heterogeneidade de pauta, obviamente, não se refletia em heterogeneidade social (é mais fácil achar gente que não era a favor do impítima do que achar um negro lá no meio); é antes um signo de quão politicamente vaga (e nula) é  pauta "contra a corrupção". Vagueza, obviamente, que é muito interessante para a mídia, que pode dar a cara que quiser às manifestações.

(por essa eu não esperava)

Podem me chamar de Pollyanna (ou de Mc Bin Laden), mas acho potencialmente salutar que, ao invés de simplesmente saudarem Aécio, muitas pessoas se tenham se ressentido de seu esforço malandro de surfar a onda e se promover politicamente, se apresentando como pretenso "convocador" ou "herói" das manifestações. Porra, seria melhor se estivessem todos lá babando por ele e Alckmin?
Porque uma parte dos verdeamarelos certamente estava, já que houve aplausos a eles em parte da manifestação. Os tucanos talvez tenham tido o azar de pousar momentaneamente no "spot" errado.

Isso se converte em demonização de toda a política? Talvez, mas  não necessariamente mais do que ela já é demonizada cotidianamente. Não vi ainda indícios de que aqueles que vaiaram Alckmin sejam pessoas que antes votavam nele e agora passarão a votar  em Boçalnato para presidento ou em ultraconservadores em geral. Aliás, nem mesmo estou certo ainda de que os apoiadores do Boçalnato estejam realmente crescendo tanto; podem estar apenas saindo de suas tocas. E eles, como seu guru, tendem a fazer um barulho desproporcional a seu tamanho.

"Mas Gabriel, quer dizer  então que só porque vaiaram os tucanos tá tudo  tranquilo, tá favorável?"
Não. Tá tenso, tá deplorável. O crescimento do império geral da boçalidade raivosa é um fato e uma ameaça geral. A água parada da desesperança política é sempre criadouro do mosquito do fascismo (perdão pela analogia tosca, não resisti). Mas ficar gritando "lobo" a todo tempo não é necessariamente estar atento e forte.

Vamos ver como as coisas se desdobram. Até porque, no que depender de nossa gorda mídia, o impítima e a invalidação de Lula continuam como pauta principal; e os tucanos continuarão sendo mostrados implícita e explicitamente como a única esperança -- senão "ilibada", ao menos "viável".

sábado, 12 de março de 2016

Temporada de caça

Alguns comentários sobre o estado atual do galinheiro midiojurídico no caso do pedido de "prisão preventiva" de Lula:


1.Hegel-Engels -- "Dialética" da malandragem



O comentário de Renato Janine Ribeiro resumiu bem a questão das citações pseudo-eruditas no pedido de prisão preventiva de Lula feito por promotores do Ministério Público de São Paulo. O erro -- que, mais que citar autores errado, é o erro de querer pagar de culto sem saber do que está falando -- serve sobretudo de indício da (des)qualificação profissional e intelectual dos envolvidos no MP paulista.
E também serve de indício que um dos efeitos simbólicos da "condução coercitiva" de Moro será a abertura de temporada de caça (ou pesca?) a Lula, com qualquer imbecil com autoridade sentindo-se no direto de ter sua vez sob os holofotes por meio da imolação do molusco barbado.


2. Negação e amadorismo

Contudo, a insistência na quantidade de piadas a respeito de Hegel nas redes sociais já começou a me incomodar. Porque não é tão engraçado.
E porque, sinceramente, pessoal da esquerda: é denial de nossa parte.

Digo isso porque esse erro grosseiro da MP paulista infelizmente empalidece diante da ratada-mor da Deputada Jandira Feghali que, logo após a liberação da "condução coercitiva" de Lula,  compartilhou vídeo de si mesma falando enquanto Lula está ao fundo brandando alto e claro que "eles" (sem especificação) "iriam enfiar o processo no cu".




Só uma porcentagem MUITO pequena da população do Brasil seria capaz de entender a diferença entre Hegel e Engels; e só uma parcela um pouco menor dessa mesma fração está se incomodando e desqualificando o pedido com isso (pois há os que acham que qualquer coisa vale desde que prenda-se o Lula).

Mas praticamente 100% dos brasileiros seria capaz de se chocar com o "enfiar no cu" de Lula -- e de perceber que o que Feghali fez ao compartilhar afobadamente seu vídeo antes de checar seu resultado foi uma besteira colossal, um descuido tremendo. Perto da "pateticidade" evidente disso, como minha amiga Marina Vianna comentou, a onda de gozações com Hegel/Engels que tomou meu feed do facebook e o de outros soa meramente intelectualóide, reclamações pernósticas de uma elite intelectual empedernida.

O rompante flagrado de Lula, por sua vez, tornou-se justamente um "embasamento" do pedido de prisão preventiva, que o acusava de pretender contrariar a justiça e inflamar o país. Conclusão não surpreendente: na atual temporada de caça, tudo que Lula parecer fazer pode e será usado contra ele. E ao que parece, mais do que só de seus inimigos, Lula precisa também resguardar-se da incompetência de seus aliados...

Detalhe curioso e procupante: diversos amigos meus que já estavam a reclamar da tosqueira do pedido de prisão e da confusão Hegel-Engels nem sequer sabiam desse vídeo de Feghali. Isso é um sintoma do quanto a "faxina ideológica" que muitos têm feito no facebook em prol de sua saúde emocional tende a colocá-los em estado de isolamento discursivo e ideológico, tendo como fonte de dados apenas aqueles com quem já concordamos.


3. O que me preocupa de verdade

Mas aqui vem o que, para mim, é o real absurdo do tal pedido.
Não há nada visivelmente "conspiratório" na fala de Lula. Nem se tratava de um pronunciamento público, de uma calúnia ou injúria proferida abertamente, mas de um rompante emocional estritamente privativo diante de pouquíssimas pessoas.

Assim sendo... percebem o que significaria o fato de uma pessoa poder ser criminalizada por meramente falar inflamadamente e insultar **em âmbito privado** um aparato institucional?
Uma realidade em que o ato de, na privacidade de sua própria casa ou escritório, "mandar" algum magistrado tomar no reto, ou de "mandar" uma autoridade ir ter com sua hipotética parturiente prostituinte...  pode render um pedido de prisão preventiva?

Há muita coisa misturada aqui: o oportunismo tosco dos promotores, o delírio anticomunista e renitente ódio de classe, bem como a quase infinita empáfia tão arraigada no judiciário brasileiro.
No contexto de acirramento e afobamento político e emocional, a mistura explosiva desses venenos está arruinando ainda mais nossa já precário, parcial e casuístico "Estado de direito".