segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Cadernos Paternos IV: és um senhor tão bonito


É fato sabido que o primeiro ano de paternidade/maternidade é muito, muito intenso. Para os pais de primeira viagem, há o agravante da inexperiência geral; mas mesmo para os já escaldados, há a inexperiência particular da criança em si, pois cada criança é um ser único, irrepetível, intransferível e, dirão alguns, incorrigível.

Mas há aí mais uma questão, sobre a qual talvez poucos fora do círculo de interesse parental saibam: em seu primeiro ano, "a criança" na verdade são várias.
Os padrões de comportamento e reações se estabelecem, duram algum tempo e então mudam; aquilo que finalmente funcionou para fazer o bebê dormir um mês atrás agora não funciona mais, o lance é outro, e perdemos um tempinho insistindo no que já não funciona (sobretudo quando somos inexperientes, imagino).

Mais do que só em seu comportamento e reações, a criança também muda radicalmente de aparência.
Parece claro, mas isso não é tão óbvio assim se você não conviveu atenciosamente com bebês.
O grau de radicalidade da mudança só não me era completamente estranho porque, alguns anos antes de ser pai, eu havia visto este lindo vídeo aqui {https://vimeo.com/69986655} e me impressionado.

A Second a Day from Birth. from Sam Christopher Cornwell on Vimeo.

Ver esse vídeo, obviamente, não me preparou pra quase nada relevante na paternidade (nada te prepara pra ser pai, a não ser talvez cuidar intensivamente de alguma criança pequena); mas me deu ao menos a noção do nível de transformação.

O que vemos entre o parto e o primeiro aniversário é a metamorfose de um animalzinho larvário, pura víscera e canais sensórios, em uma pequena pessoa humana no que talvez seja seu estágio máximo de fofura. Ao fim do primeiro ano fora do útero, a criança tem mais semelhança física e neurológica com os adultos que a criam do que consigo mesma quando acabara de nascer.

 Imagino que todos podemos já ter visto fotos de nós mesmos ou de nossos irmãos recém-nascidos e exclamar "nossa, como éramos diferentes". Podemos até ter convivido com recém-nascidos (como eu convivi com minha meia-irmã nova quando tinha 15 anos).
Mas é tudo diferente quando estamos no regime de atenção radicalmente novo e paradoxal da criação. Ao menos para mim, os dias foram longuíssimos e, simultaneamente, passaram MUITO rápido. Parece-me um regime de percepção em que, parafraseando Tom Zé, "cada segundo tem décimos, centésimos, tem pêlos e cabelos de milésimos". Na temporalidade paterna, os dias tem horas e cada hora tem minutos e segundos. Como num fractal, o tempo expande seu perímetro quase indefinidamente pelas micro-frações; ainda que ocupando mais ou menos a mesma área e mantendo mais ou menos a mesma figura geral, seu perímetro se expande de modo impressionante.

Paternidade de Mandelbrot: uma fralda que nunca acaba de ser trocada

Mas aí chegamos na questão para qual esse processo todo me chamou atenção: o tempo.



"És um senhor tão bonito
quanto a cara do meu filho
"

Mesmo tendo essa música de Caetano Veloso entre minhas preferidas, eu nunca tinha pensado muito nesse par inicial de versos em particular; tinha me dado por satisfeito em achá-los meramente bonitinhos, afetuosos.
Obviamente, ser pai me proporcionou ver uma dimensão completamente nova para o começo dessa canção. Com um ano e meio de paternidade, me dei conta de maneira visceral que em nenhuma instância o tempo é mais belo, mais dotado de sutileza e maravilha, do que em presenciar o crescimento de uma criança -- sobretudo de sua face, onde se vê não apenas a mudança, mas a emergência de expressão e personalidade.

No desenvolvimento do filho -- que muda e ainda assim se mantém -- há ao menos três belezas temporais simultâneas:
A beleza da alegria simples da presença, do momento presente de aqui-e-agora.
A beleza da melancolia de cada criança que ele já não é, que deixou e está deixando de ser.
A beleza da promessa de porvir em trânsito que é todo ser, e sobretudo toda criança.

Semana após semana as fases, padrões de comportamento, reações e aparências vão se transformando. Pequenos saltos, minúsculas mudanças-marcos, dentro de uma progressão contínua, suave, ainda que não constante; progressão que se estica, contrai e torce como uma sanfona. Nossa relação com a criança-larva-mutação muda; são vários pequenos filhos que são semi-deixados para atrás, e amamos cada um deles e temos um pequeníssimo luto por cada um deles, atenuado pela alegre saudação ao novo filho que recebemos.

Aqui pode-se contrapor que, ora, é assim que o tempo age em cada um de nós, nada de excepcional. Mas em nós adultos mudança é arrastada demais, enquanto os bebês e crianças vêm com a aceleração propícia: nem tão lenta que mal a notemos ("no começo do ano ele nem andava ainda!...") e nem tão rápida que não consigamos nos tornar realmente familiarizados. O crescimento da criança nos desvela o tempo precisamente porque nela, estando em tenso estado de atenção ampliada, conseguimos tanto perceber (e sentir, lamentar e alegrar) quanto nos acostumar com a mudança de cada estado transitório.

Nessa temporalidade amorosa há, assim, tanto afirmação quanto transcendência da passagem: a mudança no rosto de meu filho, sempre tão familiar sendo a cada dia diferente, é o mais lindo dos espelhos do tempo.