terça-feira, 18 de novembro de 2014

da compaixão e seus nêmeses


Estava pensando sobre a relação mesquinha de alguns diante do estupro (e outras coisas).

Alguns ficam literalmente "suavizando" pro lado do estuprador, e isso é foco de crítica feminista há muito tempo. Mas noto que muita gente, na verdade, culpa OS DOIS: o estuprador merece forca, ser castrado, morto (facilita se ele ter a devida  "cara de marginal" ao invés de "bom moço" de classe mádia alta); já a menina... pode ser uma piranha, ou não se deu ao respeito,  ou era boba e não se cuidou e bebeu ou andou só com homens ou ficou até tarde na festa  e etc etc: "queria o quê, né"?
Causo rápido: Uma garota menor de idade foi encontrada desacordada no alojamento aqui da Rural, 24 horas depois de de ter sumido de uma festa. A esse respeito, ouvi uma aluna comentar: "metade da culpa foi dela".

Vale algo parecido para assalto, às vezes: se a pessoa não estava estritamente onde "devia" estar, corre o risco de ouvir um "você também pediu, né?". Ao mesmo tempo, também deseja-se a prisão/espancamento/morte do agressor. Ninguém se salva da reprovação moral.

A questão: o que leva uma pessoa a comentar esse tipo de coisa? Independente de estar certo ou errado, qual o motor desse tipo de comentário moralizador, dessa pulsão automática e extremamente significativa de alguns de distribuir culpa à vítima antes de saber mais detalhes?

Hipótese momentânea: medo.
É a necessidade de reafirmar a si mesmo como superior; seja (obviamente) quanto ao bandido agressor; e seja, também, quanto à vítima. Tal racionalização -- de que, se aconteceu algo, a pessoa DEVE ter agido de alguma maneira a "merecer" ou ao menos atrair isso a si -- ajuda o comentarista a afastar o horror de sua própria fragilidade, de saber que o fato dele fazer "tudo certinho" não lhe garante NADA. De que, não importando o quão justo e correto ele seja, o mundo pode foder com ele (às vezes, literalmente) sem lhe dever explicação alguma.

É, no fim, o medo do vazio; o horror à suspeita subconsciente e inquietante de que, na verdade, o mundo não faça sentido. Um medo que necessariamente tende a bloquear qualquer compaixão: não se quer ver o possível núcleo aleatório e injustificável da desgraça alheia, pois ele é um reflexo perigoso da nossa própria condição indefesa diante da desgraça em geral.

Aliás, me parece o mesmo motivo que leva certas pessoas a se identificarem mais com uma pessoa que se salva miraculosamente de um desastre do que com as outras quarenta pessoas que morreram esmagadas (ou queimadas, ou sufocadas, ou etc.) no mesmo desastre. "É um milagre", repete-se, como se os mortos tivessem morrido só para conferir a miraculosidade àquela singular vida salva.
Bem, para cada salvamento miraculoso há uma morte completamente estúpida, azarada e sem sentido; Um bebê retirado com vida de um poço de 20 metros de profundidade para um bebê afogado no berço com seu próprio vômito.

De minha parte, o que eu penso é que nada é garantido (Fortuna Imperatrix mundi, my friend)Não consigo deixar de achar triste qualquer "moralidade" que se baseie na expectativa tácita de um EFETIVO "pacto" transcendental de causa-e efeito com o universo; triste porque é uma moralidade autocentrada, baseada em recompensa e castigo, e não no reconhecimento compassivo da igualdade do outro.

Ao fim, me lembro de duas cenas de Anete Benning no filme "Beleza Americana": uma no início, quando a neurótica personagem interpretada por ela -- uma corretora de imóveis infeliz e fanática seguidora de auto-ajuda -- se estapeia para segurar o choro de desabafo diante do fracasso profissional; e a cena no final do filme -- na minha opinião, complemento da primeira -- em que ela decide matar seu marido repetindo o mantra de auto-ajuda "eu me recuso a ser uma vítima". O arco descrito aí é uma ótima amostra do ponto onde o impulso de auto-afirmação, a pricípio positivo, converte-se em negação covarde do outro (e, paradoxalmente, de si mesmo).





Não há verdadeira e profunda afirmação de si que não venha com o reconhecimento de sua própria finitude e fragilidade; sem essa, tampouco há real capacidade de reconhecer e afirmar o próximo nessa mesma precária finitude que ele compartilha conosco.