domingo, 26 de agosto de 2007

Quase é mais que suficiente

De uma maneira geral, posso me considerar até hoje bem sortudo no quesito violência física. Nunca apanhei de verdade, nunca feri ninguém, nunca fui maltratado na infância.

Minhas experiências mais próximas de violência séria foram sempre um quase.
Vai aqui três causos relevantes e diferentes.


1- As delícias da otoridade


Nunca fui assaltado, mas não fico repetindo isso por aí. Vai que é que nem chuva. Mas costumo aconselhar (embora nem sempre pratique) que no Brasil é mais seguro ter medo de policial do que de ladrão. Não falo inteiramente sem motivos.

Na saída de uma festa no CAASO, estou eu sozinho com 19 anos e uma pochete preta (pois é), andando a uns 40 metros da entrada da Matemática da USP de São Carlos.
Uma viatura está parada (ou passou e parou, não lembro), e a janela se abre e um policial me chama de maneira estranha, furtiva, acenando. Me pergunta alguma coisa, em tom estranho.
Está um pouco escuro, estou com um pouco de álcool no corpo e ouvidos meio lesados do barulho da festa – afora minha dificuldade sempre presente de entender o que outros falam para mim. Como não entendo o que o policial diz, me aproximo do carro (há outro policial junto com ele).
Na minha aproximação, o imbecil me aponta uma arma e me pergunta o que é que eu estou levando na mui suspeita pochete. Eu abro e mostro, indignadíssimo e a uma distância “segura”: carteira, chaves, etc. E, liberado pelo imbecil, vou embora dormir.


punchline: O único que já me apontou o cano de uma pistola foi um policial.



2- A neutralidade ilusória do voyeur

A ameaça mais séria que já recebi na minha vida veio de quando tentei fotografar mendigos embaixo de um viaduto.

Trabalho de faculdade. Fazer uma leitura sensorial e plástica da paisagem urbana para fazer depois um objeto com isso.
Meu grupo (eu, Du, Camé e Ró) pegamos a velha estação ferroviária de São Carlos e o grande pontilhão que faz uma curva logo após ela (um marco inegável na paisagem urbana, ainda que com aspectos nefastos – como muitos marcos)
Realizávamos um levantamento fotográfico do local. Em um dos espaços entre os pilares do pontilhão, havia um grupo de sem-teto (algo que não se via muito em São Carlos).

Pensamos que seria legal fotografá-los, como parte da leitura da cidade, do não-espaço no qual aquilo a área se transformara. Claro, o faríamos discretamente, junto com o levantamento panorâmico do pontilhão; era só dar um zoom...

Porém, no que fomos vistos com a câmera em punho (eu, especificamente), houve reação. De longe, um homem barbudo se desprendeu do grupo, brandindo um grande e letal tubo de metal nas mãos e gritando que ninguém ali ia fazer fama com sua miséria, que ia até lá arrebentar todos nós e que já tinha fugido da cadeia pela segunda vez e não tinha nada a perder.
Todos os que estavam comigo ficaram apreensivos, meio amedrontados. Eu, bobo que sou, fiquei muito mais bravo que assustado; contrariado por não poder tirar a foto que queríamos, mais indignado ainda por não poder fotografar apropriadamente parte do viaduto (pois era perigoso apontar a câmera em direção ao homem...) e ofendido por ser ameaçado por coisa tão pequena como uma foto para um trabalho de escola (que grosseria, pô!)

Hoje penso: havia uma violência potencial de minha parte contra aqueles moradores. Eu atentava contra sua dignidade, minha lente os coisificava. E eles, mais espertos do que eu, sabiam bem disso.

punchline: pessoas ocupam espaço, e fotos também.


3- O olho do furacão e o umbigo do mundo


18 de julho agora, eu voltava das férias curtíssimas na casa de minha namorada para Cianorte. 6:00 da manhã, eu dormindo no ônibus, ligam pra minha namorada: é um desses tão ocorridos trotes-seqüestro. Pega de surpresa e recém-acordada, minha querida é parcialmente levada na conversa; mas tem presença de espírito o suficiente para ligar para meu pai no celular, ao mesmo tempo em que enrola os “bandidos”.

Resultado: três pessoas apavoradas e recém-acordadas tentando ligar pra um celular que -- muito razoável e coerentemente às 6:00 da manhã e com pouca bateria -- estava desligado.
Acordo, chego em Maringá às 7:30 pra ir pra Cianorte às 8:00. Ligo o celular. Um monte de mensagens. Recém-acordado, não consigo nem sequer ficar realmente chocado ou morrendo de pena das pessoas que, por mim, passaram intensa aflição por mais de uma hora e meia.

Entendam: não consegui achar a coisa toda real. Pareceu uma lorota, uma história absurda. Se eu ouvisse alguém contar o ocorrido com outras pessoas, talvez ficasse mais comovido do que fiquei naquele momento. Senti-me mais indignado, e com aquela certeza grogue de quem acabou de acordar: "mas como assim acreditaram? Eu estava aqui todo o tempo, dormindo -- na verdade, tentando dormir -- numa boa!..."

Toda a preocupação ocorreu em volta de mim; eu não consigo, até agora, me conectar direito ao fato, fazê-lo palpável. Não consigo emprestar realidade ao fato. Como é comigo, não consigo senão negar a empatia a esse acontecimento esdrúxulo.

Sempre fui muito assombrado pelo espectro de minha alienação em relação ao resto do mundo, uma inquietante e irritante separação, uma dificuldade de se ligar e tendência a se isolar mentalmente e emocionalmente da realidade. Tendência que já melhorou consideravelmente, mas contra a qual terei que me bater durante provavelemente minha vida inteira.
Tendo isso em conta, pode-se ver uma irritante ironia nesta última constatação:

A pior coisa que já aconteceu comigo não aconteceu.



Nos três casos, o que senti não foi medo, humilhação, desespero, dor; foi sempre, predominantemente, INDIGNAÇÃO.
Sortudo, sem dúvida.


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