...Ó: além de comprido e tagarela, este post contém... spoilers!!
Graças à estratégia de ampliar o escopo de indicados, o Oscar deste ano tem entre suas "nominações" duas histórias de ficção científica envolvendo relações de alteridade entre humanos e alienígenas e nas quais o grande vilão é o trio trio ganância-arrogância-ignorância humanos, em uma de suas encarnações preferidas no cinema: o complexo capitalista/militar.
Ambos os filmes têm:
- alienígenas ágeis e perigosos;
- superarmas e cenas de ação;
- milicos cruéis e empresários inescrupulosos;
- um protagonista humano que se transforma em um alienígena;
- ........ e armaduras de batalha pra nerd nenhum botar defeito.
Apesar de tantos pontos em comum, porém, os dois filmes -- Avatar e Distrito 9 -- são tão absurdamente diferentes que acho que muitos nem sequer lembrariam de compará-los. (até porque acho que os públicos de ambos são consideravelmente diferentes).
Nenhum dos filmes é exatamente novidade em argumento ou tema. Avatar, exemplar da tradição fantasia-blockbuster, é um aglomerado de clichês com roupagens novas, hiperprodução deslumbrante e final feliz daqueles para os quais o termo "hollywoodiano" deve ter sido cunhado. O filme exibe a tenacidade técnica, a capacidade visual e a senilidade conceitual da carreira de um diretor top da indústria, James Cameron.
Distrito 9, por sua vez, é o "debut" de um diretor australiano no grande circuito, Neil Blomkamp, com locação não-mainstream (África do Sul) e nenhum ator famoso. O filme pode ser relacionado à linhagem mais "desagradável" do ciberpunk, da ficção científica "murro no estômago" (embora o filme não seja despido de alguma redenção final), e que compensa a inexperiência do diretor com efeitos muito bons e uma ambição considerável.
Nas duas histórias, o inferno não são os alienígenas, mas nós mesmos, "humanos". Mas onde Avatar é até otimista e moralizador, Distrito 9 é trágico mesmo.
Pocahontas reloaded
No que se refere à alteridade, em Avatar temos o popular mito do bom selvagem reloaded. As metáforas ecológicas de harmonia e pureza se adaptam à "era da informação", com direito a:
- índios e animais com cabo USB;
- animais e florestas brilhando inteiras com LEDs;
- controle de corpo wireless;
- cut/paste de almas de um corpo pra outro;
- árvore mainframe (cheia de fibras ópticas);
... E por aí vai. (Avatar, nesse sentido, é quase um filho bastardo do ecologismo com o ciberpunk... :))
O que me chamou atenção é que a natureza do mundo de Avatar é fabulosa no sentido mais literal-- de fábula. A natureza de Pandora é perfeita num sentido que a nossa nunca foi e nunca será, é preciso ressaltar. A harmonia "conectada" preconizada no filme simplesmente inexiste em nossa biosfera, em qualquer nível. Em sua Pandora, Cameron lança mão de uma conexão bio-energético-espiritual literal entre toda a vida no planeta.
Claro, a fantasia era algo esperado: Avatar, apesar do "realismo" buscado na ação, é estruturalmente uma fábula aventurosa maniqueísta, pertencendo à ampla linhagem que inclui desde Star Wars a Harry Potter (e dá-lhe Disneys no meio!). Aqui, a retórica "populista" sobre ecologia e natureza é a base moral do filme; essa moral já é parte forte de nosso mainstream ideológico (como qualquer propaganda de banco pode atestar) , e o filme a ressoa e reforça. Pra mim, porém, essa investida do filme no caminho de fábula ultra-contemporânea escancara o quanto essa moral tem uma base idealizada e inconsistente.
É evidente a alegoria do filme para a nossa própria "natureza" terrestre ameaçada -- e também para o cruel extermínio histórico dos índígenas. Mas aqui é necessário retomar um ponto crucial: a má compreensão da ciência e da evolução. Como muitos pensadores já apontaram, o que a evolução (e a História também) nos ensina é que o meio ambiente não é uma linda harmonia de equiíbrio ameaçado pela ganância, pela hubrys humana, mas uma catástrofe em motocontínuo em meio à qual padrões de vida se estabelecem durante alguns períodos. E mesmo os índios existentes na Terra nunca foram essas santas criaturas em harmonia com a natureza, mas pessoas desenvolvendo suas culturas com uma grande dependência em relação ao meio (o que geralmente leva a algum grau de respeito simbólico por este).
Buscando sustentação em imagens reconhecíveis e "mitos" inconscientes (a là Star Wars), o filme também acaba enveredando por um etnicismo meio piegas e batido na caracterização dos indígenas: o que poderia chegar a ser a brilhante retratação de uma sociedade completamente estranha vira aquele transe-chacoalhar brega debaixo da árvore sagrada.
Quem percebeu que os Naavi infiltrados foram baseados em atores brancos e todos os Naavi "nativos" foram baseados em atores negros?
"Miséria é miséria em qualquer canto"
Distrito 9, com seu tratamento de "documentário", é também uma metáfora, mas uma que tem um tanto mais a ver com a ficção científica de raiz, hardcore, na minha opinião. Apesar dos elementos deslavados de ação, é um filme herdeiro de um Sci-Fi mais sombrio como Blade Runner -- e, claro, como "a Mosca". Uma linhagem que procura chocar e fazer pensar pelo choque, sem medo de apelar para o asco.
Avatar faz alegoria ao ocidente que vai à terras virgens explorar; o "humano" é o verdadeiro estranho. Em Distrito 9, ao contrário, o alienígena é que é enfiado em "nosso" mundo. E não é o outro "idealizado" de Avatar, mas uma simbolização de todos os "outros" com que se convive no mundo globalizado das migrações: os desagradáveis, os "sujos, feios e malvados", the people of no account. Na caracterização da realidade dos alienígenas e ao trato dos humanos para com estes, há alegoria escancaradas: às favelas, ao apartheid sul-africano, ao discurso assistencialista hipócrita e mal-disfarçadamente racista.
Enquanto o "outro" de Avatar nos colocaria em contato com um nosso "verdadeiro eu", aquele "puro" que seria oculto pela civilização corrupta, os "outros" de Distrito 9 nos oferecem... nós mesmos. No aqui e agora: sujos, mesquinhos, encrenqueiros e amedrontados -- numa palavra, miseráveis. Aqui, como em Avatar, há uma maldade na civilização: mas é a maldade da segregação e da exploração, do tipo civilizatório que lucra com a manutenção e controle da miséria alheia, que extrai força justamente de manter outros alijados da civilização.
O ponto de suprema coincidência dos dois filmes está no fato de que em ambos o protagonista não só passa para o "outro lado", mas se transforma fisicamente nesse "outro" da humanidade ao qual é apresentado e, por isso, torna-se peça-chave da trama. E é nessa coincidência maior que se exprime mais fortemente a oposição entre as duas ficções.
Em Avatar, como o "outro" é esse "índio cósmico" puro e belo mesmo nos padrões humanos, e como o protagonista é um aleijado sem direção na vida, ele se transforma por vontade própria, descobrindo a beleza de ser esse "outro" que nada mais é que um "verdadeiro eu" reencontrado, o velho sonho do romantismo moderno. (...Sem falar que o protagonista não apenas ajuda a salvar os Naavi: ele é a salvação encarnada, ele realiza "antigas profecias".)
Já em Distrito 9, o protagonista é um burocrata de vidinha pacata e arranjada que é jogado para fora de sua humanidade -- legal e corporal -- contra sua vontade. Passa experimentar não a "dignidade primitiva" de avatar, mas a mais total miséria e desumanidade daqueles que, vivendo de restos, são privados da coesão civilizatória. Enquanto os idealizados "aliendígenas" de Avatar só podem encontrar equivalente efetivo na produção ficcional (Peri, Iracema e por aí vai), os "favelienígenas" de Distrito 9 podem ser encontrado em várias partes do mundo.
É muito fácil admirar os Naavi, belos, ágeis, altivos e nobres. Só sendo muito estúpido, medroso, preconceituoso, ganancioso. Se lidar com o outro fosse assim tão fácil, tão simples de decantar em bom e mal! Distrito 9, por outro lado, nos dá insetos asquerosos, grosseiros e ignorantes de 1,80 metros e nos lembra -- por nosso próprio asco ao início do filme -- que a aparência é uma primeira barreira poderosíssima. E é na superação dessa barreira -- indo do estranhamento a uma empatia e soliedariedade completamente desesperadas, a "empatia dos fodidos"-- que se constrói a descoberta do filme.
Em Avatar, talvez a única mensagem real, quero dizer, que não é prejudicada pela lente da fábula idealizadora, é a de que sim, o ser humano seria capaz de ignorar tamanha beleza e harmonia como a presente no Planeta Pandora só por conta de sua ignorância e ganância. Isso é bem verdade... Embora, como outros já apontaram, seria muito mais plausível, mais interessante e mais "crítico" à nossa atual situação ver os humanos capitalizando e explorando justamente a "biotecnologia" do planeta e dos nativos (mas essa já seria uma perspectiva genuinamente ciberpunk).
De certa forma -- ou, pelo menos, para mim -- o final de Avatar já está meio que subentendido desde cedo no filme. Não haveria uma descoberta para o público (nem acho que havia pretensão de se ter, claro), mas a reafirmação de sempre de que os justos, fortes e bondosos triunfam e tornam seus sonhos realidade.
Uma "lição" mais útil, ao meu ver, é de que o inseto asqueroso, ignorante e ameaçador na verdade é igual a nós.