“
O fim das descobertas imperiais”,
é um dos mais belos textos do gajo Boaventura de Sousa Santos, no qual se discute, basicamente, conceitos de dualidade. Assim não existem governantes sem governados, como não existe o conceito de certo sem
o errado, é também impossível falar nos descobridores sem falar nos
descobertos. Desta maneira, é justamente sobre os conceitos atribuídos às
descobertas e aos descobertos que se calca a imagem do descobridor. Ao
fazer as descobertas, o descobridor
descobre a si próprio, ou pelo menos
passa a viver sob a luz de um conceito que só funciona sob a luz do contraste
entre dominadores e dominados.
Falando especificamente sobre as tais "descobertas imperiais", ou seja, as descobertas do império do Ocidente, o autor destaca três descobertas fundamentais, que levam à uma compreensão aprofundada sobre aspectos do próprio Ocidente, até mais que dos descobertos, que no caso em questão são os orientais e o Oriente; o selvagem, sob a forma de povos indígenas das Américas; e por fim, a descoberta da própria natureza, e como a exploração desta, agora transformada em "recurso natural" revela aspectos fundamentais da cultura ocidental.
A primeira grande descoberta imperial é a descoberta do Oriente. É justamente a dualidade imposta por essa descoberta que leva à compreensão de que havia um Ocidente. De fato, o Oriente representa uma civilização alternativa à ocidental, caso diferente dos indígenas americanos. O imperialismo vive de subjugar seus dominados, diminuindo sua cultura, costumes, língua, religião. Nada mais conveniente para o Império Ocidental fazer a comparação com o Oriente nos dias de hoje, uma vez que o mundo vive a era da globalização, claramente ocidental.
O Oriente representa assim um contraponto à civilização ocidental moderna. Boaventura dos Santos afirma claramente essa tese ao afirmar que: “Para o Ocidente, o Oriente é sempre uma ameaça, enquanto o Sul é apenas um recurso. A superioridade do Ocidente reside em ele ser simultaneamente o Ocidente e o Norte.”
Feita a "descoberta imperial", é necessário reafirmá-la constantemente, para deixar sempre evidente a supremacia ocidental. Por isso, o imperialismo ocidental lança mão de discursos maniqueístas, da demonização do Oriente - vide o papo do W. Bush. Fica mais evidente perceber o quanto somos "democráticos, modernos, racionais e dinâmicos", quando observamos nos telejornais imagens de barbárie ocorrendo no oriente. Cenas de atentados terroristas, fanatismo religioso, malucos barbados orando de bundas pra cima, voltados para Meca enquanto outros clamam pela morte dos infiéis (categoria que inclui a nós todos). É como olhar para marcianos atrasados.
Por outro lado, é necessário lembrar que o mundo árabe tem uma concepção igualmente negativa do mundo ocidental, de um mundo “bárbaro, arrogante, intolerante, pouco honrado nos compromissos”. O fanatismo religioso e o fundamentalismo estão presentes também na nossa história. Basta lembrar das barbáries cometidas pela igreja católica, da Santa Inquisição, da prática da simonia, das próprias cruzadas e recentemente dos conflitos entre católicos e protestantes na Irlanda do Norte. Barbárie e desbunde não são exclusividade oriental.
Um ponto interessantíssimo levantado pelo autor é o que analisa que o Ocidente, não satisfeito em combater o Oriente em “território inimigo”, cria os seus próprios Orientes em território ocidental, transformando os kosovares, por exemplo, em apenas minorias étnicas, mas não islâmicos. Muito sagaz.
O Selvagem
Problemas diferentes, soluções diferentes. O Oriente é o contraponto do Ocidente enquanto civilização. A História oficial fez com que fosse assim, e as atitudes e ações adotadas em relação ao Oriente são no sentido de ridicularizar e diminuir os valores que fazem deles uma civilização, para que o Ocidente possa se sair vitorioso numa comparação.
Quanto ao Sul, a relação é outra: somos inferiores, somos selvagens, somos bichos, desalmados correndo pelados pelas selvas tropicais. Isso foi muito difundido, os Jesuítas foram enviados para essas terras de animais para catequizar alguns, preparar essa terra de ninguém para os seus donos naturais – os europeus. Relação parecida com a da África, negros e índios tem tantos privilégios perante Deus quanto os calangos que comiam. O que é o carnaval ou qualquer outra expressão cultural latina para o Império senão uma brincadeira exótica? Certamente nada que vá produzir cultura que preste.
Aí vem a teoria da “escravatura natural” de Aristóteles para explicar tal relação: alguns homens foram feitos para mandar e outros para obedecer. Os últimos, percebendo a sua inferioridade em todos os aspectos ficariam felizes por serem tutelados por seres superiores.
Não há, portanto, na relação Norte-Sul uma história de disputa por modelos de civilização, progresso, prosperidade. A relação é simplesmente de senhores e escravos, de homens e bichos. Por isso não existe qualquer preocupação histórica com o Sul. Simplesmente não somos relevantes do ponto de vista de civilização. Já quanto à exploração dos recursos que possuímos, a história é diferente. Veremos a seguir.
A Natureza
Essa seria a terceira grande descoberta do milênio (passado). A descoberta da natureza enquanto recurso econômico, enquanto insumo, enquanto capital. Os selvagens simplesmente convivem com a natureza por não a visualizarem como bem, como algo a ser explorado. A veem simplesmente como parte da paisagem dos lugares onde vivem.
O Ocidente enxerga na natureza, "o exterior a ser domesticado", e consequentemente, explorado. O próprio selvagem, com seus rudimentares conhecimentos sobre o funcionamento dos sistemas em que se encontram servem de ferramenta para a exploração dos recursos naturais, muitas vezes levando os cientistas dos grandes laboratórios à verdadeiras "minas de ouro biológico".
A natureza, por ser tão capaz de expressar algo coerente quanto seus habitantes selvagens, não pode ser compreendida, pois não tenta se comunicar. Daí a ciência e suas explanações sobre a natureza. Daí a exploração irracional dos recursos naturais. Daí a situação atual, totalmente calamitosa e cruel.
Finalmente
Essa é uma boa idéia a respeito da imagem que a civilização ocidental tem de si. Tal imagem é construída justamente sobre as diferenças com o resto do mundo, daí as comparações com civilizações diferentes, povos inferiores e exploração desordenada dos recursos naturais. Todas essas ações perversas dariam ao ocidente uma margem de superioridade em todos os aspectos.
Ao fazer a comparação com o Oriente, o Ocidente sente-se tornar avançado, tecnológico, racional. Ao se comparar com negros e índios, o Ocidente sente-se tornar superior fisicamente, espiritualmente e intelectualmente . E por fim, muito disso é devido à essa exploração irracional de recursos que não pertencem aos exploradores.
Vale lembrar que a "história oficial" é escrita pelo Ocidente. Vale lembrar que debaixo dos nossos narizes temos guerras civis no Haiti, na Colômbia, problemas sérios de ideologia política, como Cuba. Até bem pouco tempo atrás tínhamos conflitos religiosos como os da Irlanda do Norte, (lembram do IRA?). Enfim, trata-se apenas uma roupagem ocidental dos mesmos problemas.
Recordemos ainda que não se sabe se esse atraso observado no Oriente médio se deve, ao menos em parte, aos conflitos que não cessam na região. Os governos teocráticos talvez sejam garantia de atraso, mas até que ponto? E até que ponto a população Oriental deseja ser ocidentalizada? Será que a homogeneização cultural é quista por lá? Será que seria se houvesse igualdade social e acesso ao ensino? São todas questões muito complexas, derivadas das questões deixadas pelo autor no final do texto e que só podem ser respondidas com o tempo.