Qual foi a notícia mais estranha que você leu relacionada à morte de Michael Jackson?
A que eu li (até agora) foi esta:
Presos dançam thriller
"Mais de 1.500 detentos de uma prisão do centro das Filipinas dançaram neste sábado de macacão laranja ao som da música 'Thriller' em homenagem a Michael Jackson, constatou um jornalista da AFP"
Bizarria à parte, esta notícia dá uma boa idéia da dimensão que Jackson teve.
Não posso dizer que lamento sua morte: aquilo que havia para se lamentar já havia morrido há muito tempo, e há tanto tempo quanto eu não tenho mais idade nem gosto para gostar de seu trabalho. Melhor que estava ele não ia ficar, eu já falei a alguns.
Porém, enquanto muitos dedicavam desprezo e zombaria à figura que ele se tornou, eu posso dizer sinceramente que o que sentia em relação às suas mudanças físicas, escãndal0s e esquisitices era desconforto... e mesmo pena por um homem tão perturbado e distorcido em tantos aspectos.
Mas eu gostava de Michael Jackson quando era criança.
E o pesadelo mais antigo que tenho na lembrança é dos meus quatro anos; é de acordar gritando de medo pelo Michael-lobisomen/Michael-zumbi de Thriller...
Isso é uma homenagem.
terça-feira, 30 de junho de 2009
sexta-feira, 26 de junho de 2009
terça-feira, 23 de junho de 2009
Mais um momento materialista e dialético (2)
Postado por
Gabriel G;
(Perdão a todos os cientistas sociais pela mixórdia que vou fazer)
Uma discussão política comum de se ouvir no mundo das humanas é a respeito do que foi alardeado como “fim das utopias”, ou “fim das metanarrativas” ou “fim da história”.
No clima “pós-moderno” de a partir dos anos 80, falou-se muito da queda das “metanarrativas” ou “grandes narrativas”. “Metanarrativa” significa, tosca e basicamente falando, um sistema de pensamento que encara o mundo como um devir, como algo que vai evoluir e cuja evolução pode e deve ser direcionada pela humanidade. A discussão, no fim, se referia mais especificamente à derrocada dos vestígios quebrados e distorcidos do sonho socialista no fim da década de noventa, com o fim da União Soviética, à qual muitos esquerdistas ainda se apegavam como esperança de poder vislumbrar algo ainda fora do capitalismo (por pior que fosse). Os liberais capitalistas, por outro lado, se apegaram à derrocada desse símbolo para dizer: “pronto, já era. Agora vocês vão ter que aceitar a realidade: o mundo é assim, não vai haver ‘grande projeto’ e ‘grande mudança histórica’. Finito”.
O(s) socialismo(s) é(são) uma(s) Grande Narrativa, sem dúvida. Mas aí está o ponto: não só ele.
Pesquisador, professor e praticante de design, Guy Bonsiepe falou algo interessante numa palestra para um público de Designers. Traduzo aqui livremente do inglês (grifos meus):
“Disseram para nós que as Grandes Narrativas estão mortas. Esse é o ponto de partida da condição pós-moderna. Mas onde anteriormente nós tínhamos várias narrativas competindo, nós encaramos agora — em escala mundial — a propagação de Uma Meganarrativa, chamada O Mercado. Qualquer onda totalizante e universalizante como esta é um motivo para preocupação.”
Bingo. (gostei do nome “meganarrativa”).
Aí, este mês, eu fui assistir (viva o e-mule!!) a edição do Programa Roda-Viva, na cultura, no qual entrevistaram Slavoj Zizek (o qual eu tenho citado aqui com alguma freqüência).
Perto do fim do programa, ele comentou sobre a atual crise econômica. Disse mais ou menos isto: com a queda do muro de Berlim e a derrocada da URSS, proclamou-se o fim das utopias. Mas, na verdade, as utopias modernas não acabaram lá: desde os anos noventa, estivemos todos nós vivendo sob a dominância irrestrita e sem competição da última utopia moderna restante, a UTOPIA NEOLIBERAL do Mercado Livre.
Isso faz todo o sentido, assim como a "meganarrativa" referida por Bonsiepe. Nenhum de nós consegue sequer imaginar hoje o mundo sem a onipresença do mercado e do mundo financeiro.
Pois bem, aí entendi mais claramente o impacto político da atual crise econômica — principalmente a ajuda bilionária dada pelos Estados Nacionais às pobres instituições financeiras. Porque ela é, simbolicamente, a queda do muro de Berlim do capitalismo, mostrando crua e descaradamente aquilo que se negava a todo custo: não há livre-mercado que não esteja ancorado em políticas de Estado...
Segundo Zizek, AGORA sim estaríamos assistindo ao fim das utopias modernas.
Mas segundo o próprio, viver sem Utopia não é uma opção.
Uma discussão política comum de se ouvir no mundo das humanas é a respeito do que foi alardeado como “fim das utopias”, ou “fim das metanarrativas” ou “fim da história”.
No clima “pós-moderno” de a partir dos anos 80, falou-se muito da queda das “metanarrativas” ou “grandes narrativas”. “Metanarrativa” significa, tosca e basicamente falando, um sistema de pensamento que encara o mundo como um devir, como algo que vai evoluir e cuja evolução pode e deve ser direcionada pela humanidade. A discussão, no fim, se referia mais especificamente à derrocada dos vestígios quebrados e distorcidos do sonho socialista no fim da década de noventa, com o fim da União Soviética, à qual muitos esquerdistas ainda se apegavam como esperança de poder vislumbrar algo ainda fora do capitalismo (por pior que fosse). Os liberais capitalistas, por outro lado, se apegaram à derrocada desse símbolo para dizer: “pronto, já era. Agora vocês vão ter que aceitar a realidade: o mundo é assim, não vai haver ‘grande projeto’ e ‘grande mudança histórica’. Finito”.
O(s) socialismo(s) é(são) uma(s) Grande Narrativa, sem dúvida. Mas aí está o ponto: não só ele.
Pesquisador, professor e praticante de design, Guy Bonsiepe falou algo interessante numa palestra para um público de Designers. Traduzo aqui livremente do inglês (grifos meus):
“Disseram para nós que as Grandes Narrativas estão mortas. Esse é o ponto de partida da condição pós-moderna. Mas onde anteriormente nós tínhamos várias narrativas competindo, nós encaramos agora — em escala mundial — a propagação de Uma Meganarrativa, chamada O Mercado. Qualquer onda totalizante e universalizante como esta é um motivo para preocupação.”
Bingo. (gostei do nome “meganarrativa”).
Aí, este mês, eu fui assistir (viva o e-mule!!) a edição do Programa Roda-Viva, na cultura, no qual entrevistaram Slavoj Zizek (o qual eu tenho citado aqui com alguma freqüência).
Perto do fim do programa, ele comentou sobre a atual crise econômica. Disse mais ou menos isto: com a queda do muro de Berlim e a derrocada da URSS, proclamou-se o fim das utopias. Mas, na verdade, as utopias modernas não acabaram lá: desde os anos noventa, estivemos todos nós vivendo sob a dominância irrestrita e sem competição da última utopia moderna restante, a UTOPIA NEOLIBERAL do Mercado Livre.
Isso faz todo o sentido, assim como a "meganarrativa" referida por Bonsiepe. Nenhum de nós consegue sequer imaginar hoje o mundo sem a onipresença do mercado e do mundo financeiro.
Pois bem, aí entendi mais claramente o impacto político da atual crise econômica — principalmente a ajuda bilionária dada pelos Estados Nacionais às pobres instituições financeiras. Porque ela é, simbolicamente, a queda do muro de Berlim do capitalismo, mostrando crua e descaradamente aquilo que se negava a todo custo: não há livre-mercado que não esteja ancorado em políticas de Estado...
Segundo Zizek, AGORA sim estaríamos assistindo ao fim das utopias modernas.
Mas segundo o próprio, viver sem Utopia não é uma opção.
sexta-feira, 19 de junho de 2009
terça-feira, 16 de junho de 2009
sexta-feira, 12 de junho de 2009
quarta-feira, 10 de junho de 2009
Sim ou não Simonal
Postado por
Gabriel G;
Neste fim de semana, fui ver o documentário sobre o Simonal "Ninguém sabe o duro que dei". Achei muito legal. O filme possuía cenas muito bonitas, e informações interessantes. Em grande parte, foi legal porque eu não sabia praticamente nada sobre quem era o Simonal.
Algumas coisas no documentário me incomodavam, porém. Não sabia dizer o que, exatamente. Mas tinha vagamente a ver com a sedutora lente de distorção da nostalgia.
Minha impressão final saindo do cinema: Simonal sofreu um bocado antes e depois do sucesso, era charmoso e extremamente talentoso, mas também consideravelmente burro (coisa que, com a típica boa-vontade que se tem na relação nostálgica com os mortos sofridos, os entrevistados chamaram de "inocência"). Um grande cantor, enterteiner de massas, homem da TV e personalidade forte, que se ferrou em grande parte por, deslumbrado com o sucesso, só querer saber do seu próprio umbigo.
Pra quem achar que sou insensível ao sofrimento e injustiça real feitos ao cantor -- que não era, afinal, cagüeta da ditadura -- digo sinceramente: quanquer um que manda "amigos" espancarem alguém, pelo motivo que seja, não merece a minha pena.
Mas há também uma parte importante da história que o filme não comenta, preferindo se focar na injustiça da campanha difamatória dos jornais e do Pasquim (que, como se sabe, era lido por todo mundo...) : a incapacidade de Simonal de se reinventar musicalmente. Por melhor que fosse, Simonal de certa forma era o que hoje chamamos de POP, e não conseguiu ser muito mais que isso. Isso num momento em que já tínhamos "pops" da estatura de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Ben...
Essa última questão ficou mais clara pra mim ao ler este texto aqui, Rebulding Simonal dita(brand): ninguém sabe à ditadura o que dei. E nesse texto eu entendi o que me incomodou no filme.
Ao contrário do autor do texto, eu de início achei que o filme deu sim espaço considerável para um julgamento pesado sobre Simonal ao entrevistar o ex-contador que foi (supostamente) torturado meio que a pedido dele.
Aliás, dá pra escrever um artigo inteiro sobre ditadura e as peculiares relações brasileiras entre público e privado a partir dessa historinha! Soldados da polícia militar que a "pedido de amigo" levam alguém clandestinamente -- pela porta dos fundos e sem acusação formal-- para um órgão oficial --DOPS -- para extrair uma confissão oficial?
Mas lendo o texto citado acima eu me dei conta: ôpa, será que esse filme foi feito pra mim ou pra fazer a cabeça de outros?
Qual seria o impacto do filme sobre alguém que acredita, afinal, na "ditabranda"? O que significa todo esse jabazão da globo lá no documentário (pra que entrevistar o Boni???) ?
E, em especial: o que ele significa na atual mania da grande imprensa (leia-se a Falha de S. Paulo) em "diminuir" a "suposta violência" da ditadura? E diante da inclinação -- ignorante ou invejosa mesmo-- de muitos hoje em dia em reclamar do sucesso que artistas anti-ditadura tiveram ou de nhénhénhézar a respeito do Ziraldo (entrevistado no filme) receber uma bolada por ter sido censurado durante a ditadura?
Não acho tampouco que esse documentário foi feito para esse pessoal do nhénhénhé, mas passei a gostar menos dele.
Anyway: recomendo o filme e o texto linkado.
Algumas coisas no documentário me incomodavam, porém. Não sabia dizer o que, exatamente. Mas tinha vagamente a ver com a sedutora lente de distorção da nostalgia.
Minha impressão final saindo do cinema: Simonal sofreu um bocado antes e depois do sucesso, era charmoso e extremamente talentoso, mas também consideravelmente burro (coisa que, com a típica boa-vontade que se tem na relação nostálgica com os mortos sofridos, os entrevistados chamaram de "inocência"). Um grande cantor, enterteiner de massas, homem da TV e personalidade forte, que se ferrou em grande parte por, deslumbrado com o sucesso, só querer saber do seu próprio umbigo.
Pra quem achar que sou insensível ao sofrimento e injustiça real feitos ao cantor -- que não era, afinal, cagüeta da ditadura -- digo sinceramente: quanquer um que manda "amigos" espancarem alguém, pelo motivo que seja, não merece a minha pena.
Mas há também uma parte importante da história que o filme não comenta, preferindo se focar na injustiça da campanha difamatória dos jornais e do Pasquim (que, como se sabe, era lido por todo mundo...) : a incapacidade de Simonal de se reinventar musicalmente. Por melhor que fosse, Simonal de certa forma era o que hoje chamamos de POP, e não conseguiu ser muito mais que isso. Isso num momento em que já tínhamos "pops" da estatura de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Jorge Ben...
Essa última questão ficou mais clara pra mim ao ler este texto aqui, Rebulding Simonal dita(brand): ninguém sabe à ditadura o que dei. E nesse texto eu entendi o que me incomodou no filme.
Ao contrário do autor do texto, eu de início achei que o filme deu sim espaço considerável para um julgamento pesado sobre Simonal ao entrevistar o ex-contador que foi (supostamente) torturado meio que a pedido dele.
Aliás, dá pra escrever um artigo inteiro sobre ditadura e as peculiares relações brasileiras entre público e privado a partir dessa historinha! Soldados da polícia militar que a "pedido de amigo" levam alguém clandestinamente -- pela porta dos fundos e sem acusação formal-- para um órgão oficial --DOPS -- para extrair uma confissão oficial?
Mas lendo o texto citado acima eu me dei conta: ôpa, será que esse filme foi feito pra mim ou pra fazer a cabeça de outros?
Qual seria o impacto do filme sobre alguém que acredita, afinal, na "ditabranda"? O que significa todo esse jabazão da globo lá no documentário (pra que entrevistar o Boni???) ?
E, em especial: o que ele significa na atual mania da grande imprensa (leia-se a Falha de S. Paulo) em "diminuir" a "suposta violência" da ditadura? E diante da inclinação -- ignorante ou invejosa mesmo-- de muitos hoje em dia em reclamar do sucesso que artistas anti-ditadura tiveram ou de nhénhénhézar a respeito do Ziraldo (entrevistado no filme) receber uma bolada por ter sido censurado durante a ditadura?
Não acho tampouco que esse documentário foi feito para esse pessoal do nhénhénhé, mas passei a gostar menos dele.
Anyway: recomendo o filme e o texto linkado.
segunda-feira, 8 de junho de 2009
Grandes são os desertos, minha alma
Postado por
Gabriel G;
retirado do texto A busca, noite adentro, de Per Petterson:
"
Não sei por que sou desse jeito, não sei se é comum, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente comigo, mas, para ser bem honesto, é insuportável. Que o mundo não seja inteiro, que o mundo não seja completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo, que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas sentadas nos degraus da porta em frente à casa onde moro, bebendo café e conversando sobre o que elas conhecem; dar-lhes adeus para sempre. E se preciso fazer isso para poder evoluir, como se diz por aí, então que sentido faz? O Martin Eden de Jack London fez isso, deixou para trás tudo que era dele em troca da cultura que via nas classes educadas e na burguesia - a poesia, a filosofia, tudo - porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; queria elevar-se, queria ter o que eles tinham. Queria cruzar a fronteira. Assim, quando surgiu a oportunidade ele desembarcou em São Francisco e entrou nas mansões dos bairros abastados para conversar com as pessoas que moravam nelas, para confabular (como dizem), para escutar, para tomar livros emprestados, para ser instruído, e ele temia que ao atravessar aqueles recintos com o seu andar de marinheiro os seus ombros fossem derrubar e espatifar no chão toda aquela porcelana, mal conseguia segurar o garfo e a faca como eles, mas estava determinado a aprender o que sabiam e muito mais. E conseguiu, com um esforço tamanho que ainda me comove quando penso no passado e me vejo com a cabeça enfiada no livro que hoje provavelmente é ilegível, mas que me devastou na ocasião, porque quando ele atingiu o seu objetivo, quando Martin Eden pôs a mão na mais recôndita porta, percebeu que as pessoas em que se inspirava, e que respeitava tanto, no fundo não se interessavam como ele, que para elas essa cultura não tinha qualquer importância exceto como fachada, um verniz, um véu cobrindo o que realmente importava - possuir, ter poder - e que para além disso o mundo delas era um lugar vazio, estéril e duro. Enojado, ele deu meia-volta e retornou para as partes da cidade que antes eram dele, para os marinheiros e operários. Mas era tarde demais, a corda tinha sido rompida, eles já não podiam se entender, ergueu-se uma parede de vidro que ele era incapaz de atravessar e, em desespero, ele entrou no seu barco, velejou até a baía de São Francisco, pulou na água e nadou para o fundo, para o fundo, até que a pressão que o puxava para baixo fosse mais forte que a pressão que o empurrava para a superfície, mais forte que a vontade de viver. É fácil perceber agora que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais tenha tomado consciência plena disso, e é claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Martin Eden. É óbvio para todo mundo, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir exatamente qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Mas nada no mundo me faria ter o mesmo destino que ele, jamais terminaria meus dias, desesperado, no meio das algas e sargaços do Bunnefjord, ou dentro do lago Alun entre percas e lúcios, e é possível que me falte a coragem necessária, tampouco faria como Rimbaud e me tornaria um outro daquela maneira, um vendedor de armas e possivelmente um traficante de escravos na África, portanto tentei reunir tudo dentro do meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo, juntando eu a mim, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregue, tento fundi-los nessa única pessoa que sou, mas raramente consigo, porque na realidade não há espaço suficiente; posso acabar partindo ao meio. Mas enquanto for esse que sou, haverei de sair caminhando pela noite como agora, quase esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando nos meus olhos, com os braços abertos como as asas de um avião, dançando pelo caminho sem ser visto.
"
O texto completo está na Piauí de maio.
(O título deste post vem de um Fernando Pessoa que pra mim tem muito a ver com esse texto...)
"
Não sei por que sou desse jeito, não sei se é comum, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente comigo, mas, para ser bem honesto, é insuportável. Que o mundo não seja inteiro, que o mundo não seja completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo, que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas sentadas nos degraus da porta em frente à casa onde moro, bebendo café e conversando sobre o que elas conhecem; dar-lhes adeus para sempre. E se preciso fazer isso para poder evoluir, como se diz por aí, então que sentido faz? O Martin Eden de Jack London fez isso, deixou para trás tudo que era dele em troca da cultura que via nas classes educadas e na burguesia - a poesia, a filosofia, tudo - porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; queria elevar-se, queria ter o que eles tinham. Queria cruzar a fronteira. Assim, quando surgiu a oportunidade ele desembarcou em São Francisco e entrou nas mansões dos bairros abastados para conversar com as pessoas que moravam nelas, para confabular (como dizem), para escutar, para tomar livros emprestados, para ser instruído, e ele temia que ao atravessar aqueles recintos com o seu andar de marinheiro os seus ombros fossem derrubar e espatifar no chão toda aquela porcelana, mal conseguia segurar o garfo e a faca como eles, mas estava determinado a aprender o que sabiam e muito mais. E conseguiu, com um esforço tamanho que ainda me comove quando penso no passado e me vejo com a cabeça enfiada no livro que hoje provavelmente é ilegível, mas que me devastou na ocasião, porque quando ele atingiu o seu objetivo, quando Martin Eden pôs a mão na mais recôndita porta, percebeu que as pessoas em que se inspirava, e que respeitava tanto, no fundo não se interessavam como ele, que para elas essa cultura não tinha qualquer importância exceto como fachada, um verniz, um véu cobrindo o que realmente importava - possuir, ter poder - e que para além disso o mundo delas era um lugar vazio, estéril e duro. Enojado, ele deu meia-volta e retornou para as partes da cidade que antes eram dele, para os marinheiros e operários. Mas era tarde demais, a corda tinha sido rompida, eles já não podiam se entender, ergueu-se uma parede de vidro que ele era incapaz de atravessar e, em desespero, ele entrou no seu barco, velejou até a baía de São Francisco, pulou na água e nadou para o fundo, para o fundo, até que a pressão que o puxava para baixo fosse mais forte que a pressão que o empurrava para a superfície, mais forte que a vontade de viver. É fácil perceber agora que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais tenha tomado consciência plena disso, e é claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Martin Eden. É óbvio para todo mundo, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir exatamente qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Mas nada no mundo me faria ter o mesmo destino que ele, jamais terminaria meus dias, desesperado, no meio das algas e sargaços do Bunnefjord, ou dentro do lago Alun entre percas e lúcios, e é possível que me falte a coragem necessária, tampouco faria como Rimbaud e me tornaria um outro daquela maneira, um vendedor de armas e possivelmente um traficante de escravos na África, portanto tentei reunir tudo dentro do meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo, juntando eu a mim, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregue, tento fundi-los nessa única pessoa que sou, mas raramente consigo, porque na realidade não há espaço suficiente; posso acabar partindo ao meio. Mas enquanto for esse que sou, haverei de sair caminhando pela noite como agora, quase esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando nos meus olhos, com os braços abertos como as asas de um avião, dançando pelo caminho sem ser visto.
"
O texto completo está na Piauí de maio.
(O título deste post vem de um Fernando Pessoa que pra mim tem muito a ver com esse texto...)
sexta-feira, 5 de junho de 2009
terça-feira, 2 de junho de 2009
Mais propaganda
Postado por
Gabriel G;
A bailarina no espelho, "audioficção" do Bruno, já está disponível para download na internet. O blog do trabalho está aqui.
Essa é uma ficção que eu conheço e gosto muito desde sua versão original escrita, feita há uns 6 anos atrás. Curta e grossa (carateres que me fazem lembrar filmes como O Invasor), há alguns trechos e frases que não me saíram mais da cabeça.
A maioria dos audiobooks, até onde sei, é uma versão "declamada" de um texto escrito (como alguém que lê para uma criança antes de dormir). Aqui, porém, há uma diferença: como o próprio livro tem a forma de pequenas notações em um diário, o arquivo sonoro torna-se na verdade uma interpretação própria (de Pablo Meyer), como alguém fazendo comentários variados para seu gravador: um verossímil "audiodiário". É muito legal e interessante. A ficção já tem até resenha...
Já falei pro Bruno que eu queria ver o livro impresso. Gostei do audiobook, mas gostei também da cadência do antigo texto lido. (vou ver se convenço ele a publicar o texto no blog.... cada post, um capítulo. Quem sabe.)
As poucas e belas ilustrações do CD, como essa "capa" que encabeça o post, são do ótimo Marcelo Dsalete.
Essa é uma ficção que eu conheço e gosto muito desde sua versão original escrita, feita há uns 6 anos atrás. Curta e grossa (carateres que me fazem lembrar filmes como O Invasor), há alguns trechos e frases que não me saíram mais da cabeça.
A maioria dos audiobooks, até onde sei, é uma versão "declamada" de um texto escrito (como alguém que lê para uma criança antes de dormir). Aqui, porém, há uma diferença: como o próprio livro tem a forma de pequenas notações em um diário, o arquivo sonoro torna-se na verdade uma interpretação própria (de Pablo Meyer), como alguém fazendo comentários variados para seu gravador: um verossímil "audiodiário". É muito legal e interessante. A ficção já tem até resenha...
Já falei pro Bruno que eu queria ver o livro impresso. Gostei do audiobook, mas gostei também da cadência do antigo texto lido. (vou ver se convenço ele a publicar o texto no blog.... cada post, um capítulo. Quem sabe.)
As poucas e belas ilustrações do CD, como essa "capa" que encabeça o post, são do ótimo Marcelo Dsalete.
Assinar:
Postagens (Atom)