segunda-feira, 8 de junho de 2009

Grandes são os desertos, minha alma

retirado do texto A busca, noite adentro, de Per Petterson:
"
Não sei por que sou desse jeito, não sei se é comum, se os outros sentem a mesma coisa, ou se é algo que acontece somente comigo, mas, para ser bem honesto, é insuportável. Que o mundo não seja inteiro, que o mundo não seja completo, que talvez eu deva decidir me afastar disso tudo, que se quiser fazer alguma coisa da minha vida terei de abandonar tudo que me pertence, tudo que sei fazer e tudo que conheço; abandonar essas pessoas sentadas nos degraus da porta em frente à casa onde moro, bebendo café e conversando sobre o que elas conhecem; dar-lhes adeus para sempre. E se preciso fazer isso para poder evoluir, como se diz por aí, então que sentido faz? O Martin Eden de Jack London fez isso, deixou para trás tudo que era dele em troca da cultura que via nas classes educadas e na burguesia - a poesia, a filosofia, tudo - porque isso lhe parecia tão atraente, tão sábio, tão belo e necessário; queria elevar-se, queria ter o que eles tinham. Queria cruzar a fronteira. Assim, quando surgiu a oportunidade ele desembarcou em São Francisco e entrou nas mansões dos bairros abastados para conversar com as pessoas que moravam nelas, para confabular (como dizem), para escutar, para tomar livros emprestados, para ser instruído, e ele temia que ao atravessar aqueles recintos com o seu andar de marinheiro os seus ombros fossem derrubar e espatifar no chão toda aquela porcelana, mal conseguia segurar o garfo e a faca como eles, mas estava determinado a aprender o que sabiam e muito mais. E conseguiu, com um esforço tamanho que ainda me comove quando penso no passado e me vejo com a cabeça enfiada no livro que hoje provavelmente é ilegível, mas que me devastou na ocasião, porque quando ele atingiu o seu objetivo, quando Martin Eden pôs a mão na mais recôndita porta, percebeu que as pessoas em que se inspirava, e que respeitava tanto, no fundo não se interessavam como ele, que para elas essa cultura não tinha qualquer importância exceto como fachada, um verniz, um véu cobrindo o que realmente importava - possuir, ter poder - e que para além disso o mundo delas era um lugar vazio, estéril e duro. Enojado, ele deu meia-volta e retornou para as partes da cidade que antes eram dele, para os marinheiros e operários. Mas era tarde demais, a corda tinha sido rompida, eles já não podiam se entender, ergueu-se uma parede de vidro que ele era incapaz de atravessar e, em desespero, ele entrou no seu barco, velejou até a baía de São Francisco, pulou na água e nadou para o fundo, para o fundo, até que a pressão que o puxava para baixo fosse mais forte que a pressão que o empurrava para a superfície, mais forte que a vontade de viver. É fácil perceber agora que esse livro influenciou muito a minha vida, embora eu jamais tenha tomado consciência plena disso, e é claro que tem algo de muito errado nas conclusões de Martin Eden. É óbvio para todo mundo, e para mim também, mas nunca cheguei a descobrir exatamente qual é o erro, pois de algum modo ele também está certo. Mas nada no mundo me faria ter o mesmo destino que ele, jamais terminaria meus dias, desesperado, no meio das algas e sargaços do Bunnefjord, ou dentro do lago Alun entre percas e lúcios, e é possível que me falte a coragem necessária, tampouco faria como Rimbaud e me tornaria um outro daquela maneira, um vendedor de armas e possivelmente um traficante de escravos na África, portanto tentei reunir tudo dentro do meu corpo, os dois lados ao mesmo tempo, juntando eu a mim, aquele que fui e aquele que poderia ter sido se em algum momento eu tivesse me entregue, tento fundi-los nessa única pessoa que sou, mas raramente consigo, porque na realidade não há espaço suficiente; posso acabar partindo ao meio. Mas enquanto for esse que sou, haverei de sair caminhando pela noite como agora, quase esquecido por mim mesmo, com a escuridão se infiltrando nos meus olhos, com os braços abertos como as asas de um avião, dançando pelo caminho sem ser visto.
"

O texto completo está na Piauí de maio.

(O título deste post vem de um Fernando Pessoa que pra mim tem muito a ver com esse texto...)


Bookmark and Share

Nenhum comentário: