Há 80 anos atrás, mais precisamente na noite de 30 de outubro de 1938, a população norte-americana se viu sentiu ameaçada como nunca antes. Os Estados Unidos estavam sob o ataque de um inimigo poderoso, contra o qual seu exército, suas armas mais poderosas se mostravam praticamente inúteis. Os acontecimentos eram narrados ao vivo, pela rádio CBS. Boletins de notícia informavam que um estranho cilindro metálico havia caído em uma fazenda em Nova Jersey. De repente, o país se via sob ataque por numerosos inimigos.
Esse evento jamais ocorreu. Tratava-se da encenação, via rádio, do romance de H. G. Wells, "A Guerra dos Mundos". A emissora norte-americana transmitiu os eventos narrados no livro como se fossem fatos reais, numa brincadeira de véspera de Halloween. O pânico, apesar de aparentemente não ter atingido a escala nacional que se alega, foi muito real. Do cilindro metálico saíram marcianos que atacaram o repórter com um "raio de calor". A programação da rádio voltava ao normal e era interrompida, de tempos em tempos, com a notícia de que milhares de máquinas marcianas invadiam o mundo todo.
Com esse episódio a CBS ganhou notoriedade e marcou a história do rádio, às custas do pânico de milhões de pessoas em várias cidades americanas.
Anos atrás John Stewart, um dos maiores expoentes da sátira jornalística americana, fez uma interessante ponderação a respeito do noticiário televisivo dos dias de hoje. Para Stewart, os canais jornalísticos foram criados para cobrir eventos "tipo 11 de setembro": eventos que requerem cobertura intensa, nos quais informações novas surgem a cada instante, cujo entendimento requer a opinião de especialistas de diversas áreas. Passo a me referir a esses fenômenos como "eventos de alta densidade jornalística". Como há poucos eventos assim, esses canais operam, quase que o tempo todo, abaixo de sua capacidade total e com baixa audiência.
Empresas de jornalismo são empresas como qualquer outra. À primeira vista, o "produto à venda" é a informação. Em tempos de eventos de alta densidade jornalística, o interesse do público é maior; a multiplicidade de fatos e sua complexidade geram uma curiosidade que é suprida por essas empresas. Talvez seja possível medir a densidade jornalística de um evento pelo tempo de participação de especialistas em relação ao tempo de participação dos personagens da própria rede, não sei.
Os eventos de alta densidade jornalística aumentam a audiência dos veículos de notícias. Ocorre que as empresas que produzem conteúdo jornalístico não vivem exatamente da venda do conteúdo em si, mas da venda da visibilidade dos espaços publicitários. Jânio de Freitas, em entrevista para o excelente documentário "O mercado de notícias" explica:
"O jornalista costuma pensar que o jornal é editado pra fazer jornalismo. Não é, não. É editado pra publicar publicidade, que é o que dá dinheiro. O jornalismo recheia o entorno dos anúncios.
(...)
Os jornalistas não se dão conta de que eles são subalternos nas empresas de imprensa. A função fundamental deles é proporcionar à publicação a tiragem que justifique a venda mais fácil e o melhor preço do espaço publicitário no jornal."
A entrevista completa do Jânio, pode ser vista aqui (o trecho destacado está a partir de 49'15"):
O documentário (o primeiro ato), que inclui apenas parte da entrevista, mas também trechos de vários outros jornalistas brasileiros, aqui.
Voltando ao raciocínio de Stewart: como o produto central das empresas de mídia são o público e não a informação, as estratégias comerciais são centradas em produzir os maiores públicos possíveis. Uma vez que a ficção é mais interessante que a realidade, o resultado disso é a dramatização da realidade, a novelização da política. Daí os exageros, as alegorias e, principalmente, a substituição do jornalismo pelo colunismo. Porque opinião também vende mais que o fato.
Noam Chomsky e Edward Herman escrevem um livro, em 2002 intitulado "Manufacturing consent: the political economy of the mass media", infelizmente não disponível em português. Nessa obra, são apresentados os mecanismos através dos quais a imprensa manipula o p´publico através de um mecanismo político e econômico irresistível. Em linha com o que descreveu o Jânio de Freitas: o jornalismo custa muito mais do que os consumidores podem pagar. Essa diferença de preço é coberta pelos anunciantes, que compram, das empresas de mídia, público para os anúncios de seus produtos. Não se pode esperar que a imprensa corporativa, que obtém o seu lucro desses empresários, joguem de verdade contra os interesses desse pessoal. No Brasil (mas não apenas no Brasil), os donos da mídia são também os donos do poder político institucional.
Aqui você encontra uma animação, da Al Jazeera, que sumariza os principais pontos da obra de Chomsky e Herman:
O Brasil não tem economizado em pauta jornalística que justifiquem as mega-estruturas dessas empresas, pelo contrário: nos últimos 5 anos tivemos os protestos de junho de 2013, copa do mundo, eleições 2014, julgamento do mensalão, início do processo de impeachment, olimpíadas, impeachment, eleições de 2016 e lava-jato. Chegamos ao terceiro ciclo eleitoral desde que começou a bagunça toda.
A coisa toda é dramatizada e amplificada pelos canais de notícias. Todos os dias, podemos encontrar os Mervais interpretando a realidade. Julgamentos do STF ganham cobertura ao vivo, com direito a comentaristas jurídicos ao melhor estilo dos comentaristas de futebol. A sequência dos fatos das eleições ganham ares de novela. É a nossa Guerra dos Mundos.
Nunca houve um ciclo eleitoral no qual houvesse tanta divulgação de pesquisas. Datafolha e Ibope liberam novos conjuntos de dados a cada dois, três dias - fora os institutos menores. Um dos maiores fantasmas deste ciclo eleitoral é o temor de que, uma vez eleito, Haddad passaria a enfrentar uma situação política caótica, com a contestação dos resultados das urnas por parte de Bolsonaro e um antipetismo nunca dantes visto. A imagem do PT desgastada pelas várias ondas negativas estaria irremediavelmente desgastada. A subida de Haddad nas pesquisas se deu por transferência de votos de lula, sua estagnação, por transferência da rejeição...as outras teses justificam o aumento repentino na rejeição de Haddad por reação aos movimentos das mulheres, o #EleNão, ou pela divulgação massiva de fake news cuidadosamente elaboradas e direcionadas para públicos específicos, como o eleitorado evangélico. A conferir.
O fato é que, aparentemente, ocorreu uma antecipação da rejeição esperada para o segundo turno, já no primeiro. Até o início da semana, a rejeição de Haddad estava absolutamente compatível com os níveis das candidaturas vitoriosas do PT. A imprensa, porém,. já dava enorme destaque para a rejeição de 32% de Haddad, discurso que também foi estimulado pelo utilitarismo eleitoral de Cirpo Gomes e Geraldo Alckmin. A interpretação ganhava ares de drama na Globonews: jamais o antipetismo esteve tão forte. Vejamos os níveis de rejeição nas últimas quatro campanhas, todas com vitória do PT:
02/10/2002: rejeição de Dilma - 29%
22/09/2006: rejeição de Dilma - 30%
30/09/2010: rejeição de Lula - 27%
03/10/2014: rejeição de Lula - 32%
Convém lembrar que em todas essas eleições, com exceção de 2010, quando Lula tinha 84% de aporvação, havia razões importantes para sustentar o mesmo discurso de que o forte antipetismo impediria a eleição do candidato: em 2002 havia o "risco-Lula", o dólar havia disparado; em 2006 havia o mensalão, e, 2014 o rescaldo dos protestos de 2013, copa e julgamento do mensalão - o PT já era criminalizado.
O curioso é que o temor de derrota provocado pela alta rejeição de Haddad, agora nos 40%, não se reflete nas análises a respeito do risco de derrota de Bolsonaro, que ostenta 45% de rejeição. Para oferecer uma base de comparação: nas eleições de 2014, Dilma passou, ao segundo turno, com 29% de rejeição. O trabalho de campanha do PSDB, a campanha de segundo turno, que é comparativa, elevou esses índices para 38%. Aécio chegou ao segundo turno com 21% de rejeição, terminou com com 41%.
Concluindo: a interpretação da mídia em relação às últimas pesquisas, como já escrevi, levou o campo da esquerda a um sentimento derrotista. Isso foi ampliado porque a subida da rejeição foi rápida, mas já se estabilizou e havia uma sensação, até então, de que talvez a vitória viesse com certa facilidade. Isso eu descarto. Eu continuo sustentando que o que se observa é meramente uma antecipação do segundo turno. Não estou prevendo vitória fácil, mas analisando os dados com um pouco mais de frieza e sabendo que a novelização e dramatização dos fatos é intrínseco à dinâmica da imprensa, a rejeição de 40% de Haddad não me impressiona mais que os 45% de Bolsonaro, até então poupado de ataques mais fortes pela campanha petista e ainda virgem de confrontos diretos. Repito o que disse há três dias: o resultado será apertado, é possível que o Bolsonaro obtenha uma votação maior do que preveem as últimas pesquisas, em função do "shame voting". Mas notem que ele não amplia, de forma significativa, a votação de segundo turno. Até agora ele apenas se aproxima do seu teto teórico.
Vai ser apertado. Vai ser brigado. Não tem nada perdido e, acreditem,, ainda está melhor pro nosso lado. Preparem-se para, possivelmente, uma votação do Bolsonaro maior do que o previsto no primeiro turno. Mas lembrem-se de que tem campanha.
Boa sorte pra nós todos!