(Wilbor, como sempre, postando atrasado sobre polêmicas velhas...)
Em um post de anos atrás, prestei minhas homenagens ao Ziraldo, pela importância de seus livros na minha formação.Desde então já li e ouvi
coisas terríveis sobre ele, já fiquei meio de saco cheio da "canonização em vida" que ele e várias outras personalidades (Chico, Caetano, Niemeyer e por aí vai) receberam, e das merdas que começaram a falar e fazer.
(tenho comigo que consagração excessiva não faz bem à produção de ninguém).
Mas também acho que muito é culpa da
velhice. Se pensarmos, ela mistura fatores compreensíveis:
a) menor disposição e energia pra ver o que se passa e repensar suas posições
b) mais segurança e apego às próprias convicções
c) Menos respeito pelos que são mais jovens (afinal, eles "sabem menos")
d) Menos vergonha e menos necessidade de auto-afirmação pela aprovação alheia, sentindo-se a pessoa então mais livre para dizer
o que der na telha
e) Menos disposição e paciência para receber críticas (devido aos motivos acima).
Não, não vou criticar a questão do milhão recebido por ele de idenização pela censura e prisão na época da ditadura. De todos os motivos pra se criticar, considero esse um dos mais babacas. O governo militar fodeu com ele. Fodeu muito mais com outros, que até hoje esperam justiça e que mereciam compensação muito mais que o Ziraldo. Mas isso não faz sua idenização injusta. PONTO.
Embora possa ser convencido do contrário, neste momento eu acho sinceramente que quem reclama do que ele recebeu se encaixa em pelo menos uma das alternativas:
a) não pensou muito no assunto;
e) não vai com a cara do Ziraldo (talvez até por bons motivos)
b) caiu no impulso sedutor de criticar "figuras consagradas" (o que tende a ser confundido como sinal de "independência intelectual"
per se)
c) está com inveja;
d) tem ódio de figuras "de esquerda" em geral.
Não. O que eu pretendo criticar aqui é esta babaquice abaixo.
Cartaz do Ziraldo para o bloco de carnaval "Que merda é essa", que protesta contra a "sanitarização" da cultura infantil pelo "politicamente correto".
O gatilho pra tudo isso, segundo o que entendi, foi a polêmica em torno do fato do MEC desaconselhar a adoção de certos livros infantis de Monteiro Lobato (Caçadas de Pedrinho incluso) do rol de livros obrigatórios no ensino público devido ao conteúdo racista de alguns trechos.
(de novo:
desaconselhar a adoção como leitura obrigatória. Se você ouviu algum defensor de ocasião da liberdade de expressão dizendo histericamente que queriam
proibir Monteiro Lobato, saiba que foi só isso mesmo: histeria.)
No desenho, Ziraldo tenta implicar que essa babaquice não cola aqui, que na verdade, no Brasil é tudo amor: no desenho estão juntos o
cravo e a
rosa (aqueles velhos
cantiga fighters, lembra?); o
gato e o
pau (referência àquela velha tentativa de assassinato cantada que termina num
berrô mi-áu); e Lobato e... a "mulata" que ele supostamente desprezava
(o carnaval une tudo: democracia racial pra ninguém botar defeito).
Igualar a questão do racismo do Lobato ao caso do "atirei o pau no gato" censurado é foda. Porquê?
Realmente, eu nunca quis atirar pau em gato algum só por causa dessa música. É, sim, "politicamente correta", boba, a alteração pra "
não atire o pau no gato-tô". MAS: a comparação com Lobato aqui só seria realmente pertinente num mundo em que gatos fossem sencientes e freqüentassem escolas... e que lá tivessem que aprender a cantar essa música. Substitua a letra por "a-tirei o pau no criou-lô-lô" e você talvez vá ter uma idéia do que quero dizer.
Pior ainda é fazer isso colocando a imagem de uma típica e desfrutável "mulata de carnaval".
Mas bem, sou suspeito de falar. Eu ODEIO o carnaval. Desde sempre. Ou, pelo menos, odeio a babaquice televisiva-merchandising-celebridade-machismo-pornografia que se faz passar por carnaval. (O resto, as festas e bailes e blocos de gente fantasiada e bêbada, eu só não curto, mas não me causam nenhuma indignação.)
A coisa é que Ziraldo, provavelmente sem querer, acertou: ESSA é verdadeira "democracia racial brasileira" que interessa --
democracia do branco na mulata gostosa.
A questão interessante é que Lobato era mesmo literalmente (e
literariamente) racista. Tinha desprezo declarado por mestiços: achava a mestiçagem uma degeneração racial, o fim da civilização, coisa que só gerava gente feia e burra. Mesmo.
Quem não acredita que Lobato tenha sido racista nunca leu muito
a respeito dele -- ou não leu Sítio do Pica-Pau amarelo com muita atenção.
Eu li mais da metade da coleção entre os 09 e 11 anos. Gostava bastante. Algumas coisas eram meio antiquadas demais, mas ok, eu sacava isso. Mas havia alguns laivos racistas que, mesmo com 10, 11 anos, eu não pude deixar de perceber: alguns insultos raciais pontuais, simplemente grosseiros e gratuitos, geralmente destinados à Tia Anastácia, e geralmente proferidos pela boneca Emília. Minha impressão às vezes é que eles meio que visavam traçar uma linha, separando os "pretos" do resto. Suporte-os, faça-os personagem, até
goste deles (em sua subalternidade); mas
não se misture. É claro que isso não era a tônica dos livros, e havia muitas ambigüidades de afeto e desprezo. Mas os laivos racistas
estão lá. São reais e sérios -- principalmente quando você pensa em
obrigar crianças negras a lê-los.
Claro que Lobato estava longe de ser o único. Quem estudou só um pouco história das ciências sociais no Brasil vai saber do embate entre teorias racialistas que ocorreu no país entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Lobato é um exemplo delas, sem dúvida; haviam muitos como ele, homens letrados defensores da eugenia, para os quais a raça era uma questão crucial, de primeira necessidade, no desenvolvimento de uma nação e povo.
Mas ainda assim: pra mim, "politicamente correto" mesmo é dizer que Lobato era "simplesmente um homem de seu tempo". Ah, vá. Lobato era racista, PONTO. O Brasil inteiro era na época, verdade; mas Lobato, como se diz no Maranhão, era
dicunforça. Elogiar a KuKluxKlan, mesmo que em carta íntima,
não é pra qualquer um.
A maneira leviana e chauvinista com que Ziraldo se comportou a respeito é de lascar. E ainda lascou essa em sua defesa: "racismo sem ódio não é racismo".O pior dessa é que, além de errada na aplicação (pois Lobato desprezava sim) é errada no princípio:
racismo não tem a ver com ódio, tem a ver com poder.
E pior: ISSO vem de alguém que famoso e de referência por ser "de esquerda", meu deus.
Quer fazer piada, tem que ter graça, pelo menos.
Enfim, é o tipo de caso que faz você ir perdendo o respeito por figuras admiradas. O que é sempre triste, mas faz parte do crescimento.
... Se alguém quer saber mais sobre o caso e sobre o racismo monteirolobático, recomendo a
Carta Aberta a Ziraldo, de Ana Maria Gonçalves: o mais completo, visceral e definitivo que já li sobre essa polêmica, e de onde tirei algumas informações.