quarta-feira, 14 de julho de 2010

Novo demais



Muito novo pra ter hemorróidas.


Foi isso que o último médico lhe disse, e era nisso que ele pensava naquele exato momento, sentado na espera do consultório.


Novo demais. Sentia-se comparado a um carro com defeito. Algum carro de poucos anos mas que, estranhamente, já tem algum problema típico de desgaste de uso, como um estofado arranhado ou – pensou amargamente – um escapamento cheio de ferrugem.
(talvez porque o pagamento do novo carro lhe ocupasse grande parte do pensamento naqueles tempos, analogias automobilísticas lhe vinham facilmente à mente)


Desgaste talvez seja a palavra. Em inglês, stress; em português novamente, estresse. Estava estressado. Era estressado. O "estresse" dos últimos anos que trouxe as hemorróidas antes do tempo. Não necessariamente um desgaste da área diretamente envolvida, é claro; mas o stress geral de uma vida stressada de uma pessoa stressada.


Mas não era pelas hemorróidas que ele estava nesta sala de espera de agora. Já sabia das hemorróidas, e que era novo demais pra tê-las: ouvira isso três meses atrás, em outra clínica. Como na piada do anão-corcunda-caolho-manco que no final se revela, além de tudo, argentino: “usted no sabe de lo peor...”


Estava lá na espera do consultório por causa do Boston Medical Group. Mais precisamente, por causa da propaganda dele: um casal indo dormir na cama, a esposa olha o marido com um sutil ar de expectativa, o marido apenas se vira, deita e diz boa-noite; no que ele se deita, um narrador em off começa a dizer numa voz quase imperativa: “seja honesto com sua parceira. Disfunção erétil é doença e tem tratamento”. O subtexto acusatório: vá se tratar, brocha.


Não foi pelo improvável apelo que ele estava agora na sala de espera de um urologista. É que a propaganda era tão ridícula – incluindo nisso seu tom imperativo disfarçado de condescendência -- que tornava insuportável a identificação, ver a si mesmo em cena semelhante era demais.


Usted no sabe de lo peor: não só novo demais para ter hemorróidas, mas também novo demais pra ser brocha.


(De novo o grande culpado, o estresse: o desgaste lhe envelhecia, lhe dava problemas de velho. E o carro velho lhe dava estresse, e por isso comprou o carro novo; mas descobriu que pagar o carro novo -- o qual não daria estressava per se -- também trazia estresse. Mais desgaste, mais hemorróidas, menos ereções.)


Já imaginava, amargurado, algum engraçadinho hipotético comentando: “hemorróida, brocha e, ainda por cima, preto!...”.
Mas sabia que a possibilidade disso era pequena hoje, podia dar cadeia. Imaginava mais pela necessidade de poder voltar sua indignação contra alguém.
(Também, começou a pensar, se acontecesse algo assim, não ia dar queixa na polícia nem nada. Ia se limitar a dar um olhar gelado ao imbecil hipotético e murmurar pra-si-mesmo-mas-numa-altura-que-todo-mundo-pudesse-ouvir: “babaca...”.)


Estava com raiva. Indignado com sua situação. Queria mesmo ter raiva de alguém. Queria poder, pelo menos em sua imaginação, canalizar a indignação para algo mais específico que “a vida”, mais externo que seu próprio corpo e mais consensualmente desprezível perante a sociedade. Então imaginou o mesmo babaca-hipotético-de-piada-racista:
“que adianta o tamanho, se não presta pra nada...”
Não pôde deixar de completar a ofensa hipotética com sua própria metáfora automobilística:   “...Tão novo o carro, e esse câmbio já não  funciona”.


Pelo menos o carro novo (ainda) não tinha problema.


Pelo menos ele não era argentino.

2 comentários:

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Bom, eu tenho problemas de coluna, sistemas respiratório, surdez parcial...y usted no sabe de lo peor (is this some sort of joke about me not beibg married?)

http://www.youtube.com/watch?v=pUEV4rnu5V8

kkkkkkkkkkk!!!!!!! Ótimo texto. Eu nem lembrava mais que a gente podia usar o blog para ficção - ainda que agora me lembre da gente discutindo isso aí no Rio.

Ah, e dá pra dizer que matou dois coelhos numa cajadada só: nunca tinha me ocorrido, mas os comerciais do Boston Medical Group clamavam pela sua elevação a "wilbor material".

Gabriel G; disse...

Esse vídeo é ótimo!! hehehehe