Muito novo pra ter hemorróidas.
Foi isso que o último médico lhe disse, e era nisso que ele pensava naquele exato momento, sentado na espera do consultório.
Novo demais. Sentia-se comparado a um carro com defeito. Algum carro de poucos anos mas que, estranhamente, já tem algum problema típico de desgaste de uso, como um estofado arranhado ou – pensou amargamente – um escapamento cheio de ferrugem.
(talvez porque o pagamento do novo carro lhe ocupasse grande parte do pensamento naqueles tempos, analogias automobilísticas lhe vinham facilmente à mente)
Desgaste talvez seja a palavra. Em inglês, stress; em português novamente, estresse. Estava estressado. Era estressado. O "estresse" dos últimos anos que trouxe as hemorróidas antes do tempo. Não necessariamente um desgaste da área diretamente envolvida, é claro; mas o stress geral de uma vida stressada de uma pessoa stressada.
Mas não era pelas hemorróidas que ele estava nesta sala de espera de agora. Já sabia das hemorróidas, e que era novo demais pra tê-las: ouvira isso três meses atrás, em outra clínica. Como na piada do anão-corcunda-caolho-manco que no final se revela, além de tudo, argentino: “usted no sabe de lo peor...”
Estava lá na espera do consultório por causa do Boston Medical Group. Mais precisamente, por causa da propaganda dele: um casal indo dormir na cama, a esposa olha o marido com um sutil ar de expectativa, o marido apenas se vira, deita e diz boa-noite; no que ele se deita, um narrador em off começa a dizer numa voz quase imperativa: “seja honesto com sua parceira. Disfunção erétil é doença e tem tratamento”. O subtexto acusatório: vá se tratar, brocha.
Não foi pelo improvável apelo que ele estava agora na sala de espera de um urologista. É que a propaganda era tão ridícula – incluindo nisso seu tom imperativo disfarçado de condescendência -- que tornava insuportável a identificação, ver a si mesmo em cena semelhante era demais.
Usted no sabe de lo peor: não só novo demais para ter hemorróidas, mas também novo demais pra ser brocha.
(De novo o grande culpado, o estresse: o desgaste lhe envelhecia, lhe dava problemas de velho. E o carro velho lhe dava estresse, e por isso comprou o carro novo; mas descobriu que pagar o carro novo -- o qual não daria estressava per se -- também trazia estresse. Mais desgaste, mais hemorróidas, menos ereções.)
Já imaginava, amargurado, algum engraçadinho hipotético comentando: “hemorróida, brocha e, ainda por cima, preto!...”.
Mas sabia que a possibilidade disso era pequena hoje, podia dar cadeia. Imaginava mais pela necessidade de poder voltar sua indignação contra alguém.
(Também, começou a pensar, se acontecesse algo assim, não ia dar queixa na polícia nem nada. Ia se limitar a dar um olhar gelado ao imbecil hipotético e murmurar pra-si-mesmo-mas-numa-altura-que-todo-mundo-pudesse-ouvir: “babaca...”.)
Estava com raiva. Indignado com sua situação. Queria mesmo ter raiva de alguém. Queria poder, pelo menos em sua imaginação, canalizar a indignação para algo mais específico que “a vida”, mais externo que seu próprio corpo e mais consensualmente desprezível perante a sociedade. Então imaginou o mesmo babaca-hipotético-de-piada-racista:
“que adianta o tamanho, se não presta pra nada...”
Não pôde deixar de completar a ofensa hipotética com sua própria metáfora automobilística: “...Tão novo o carro, e esse câmbio já não funciona”.
Pelo menos o carro novo (ainda) não tinha problema.
Pelo menos ele não era argentino.
2 comentários:
Bom, eu tenho problemas de coluna, sistemas respiratório, surdez parcial...y usted no sabe de lo peor (is this some sort of joke about me not beibg married?)
http://www.youtube.com/watch?v=pUEV4rnu5V8
kkkkkkkkkkk!!!!!!! Ótimo texto. Eu nem lembrava mais que a gente podia usar o blog para ficção - ainda que agora me lembre da gente discutindo isso aí no Rio.
Ah, e dá pra dizer que matou dois coelhos numa cajadada só: nunca tinha me ocorrido, mas os comerciais do Boston Medical Group clamavam pela sua elevação a "wilbor material".
Esse vídeo é ótimo!! hehehehe
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