segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago 2

por Marcelo

Devo começar pedindo desculpas ao Gabriel pelo atropelamento do post dele, mas como a morte do Saramago é uma dessas coisas das quais deve-se falar logo, não achei outra saída que não atrelar os dois textos.  Eu vinha pensando em escrever algo desde que soube de sua morte, mas um trabalho do mestrado e a copa do mundo me impediram de fazê-lo antes

Concordo plenamente com a primeira assertiva do Gabriel: "Saramago foi um daqueles que me fez ficar feliz por eu pertencer à língua portuguesa, e me fazia olhar com certa pena àqueles que não a têm impressa em si.".

 Saramago tinha muito mais que um estilo próprio, era rico em conteúdo e um belíssimo contador de histórias.  A analogia que me vem à mente é a de um grande jazzista das palavras: um artista que domina tanto o seu objeto de trabalho, no caso, a língua portuguesa, que é capaz de criar coisas impressionantes manipulando a língua, seja através de dissonâncias ou variações de melodia, mas sempre mantendo-se claramente conectado à trama principal.  Nesse sentido, acho que não é exagero dizer que Saramago foi um jazzman.



Quanto à sua temática, Saramago se destacou como um criador de parábolas fantásticas - muitas de suas histórias já têm início com o fato.  O português não era de perder muito tempo nas descrições "pré-enredo", e nesse aspecto, me lembra um tanto o Kafka - essa, prometo, será a única referência externa, a obra de Saramago é muito original e extensa, a comparação com outros autores não aumenta ou diminui em nada o que fez.

Como o Gabriel, o primeiro livro que li do autor foi "O evangelho segundo Jesus Cristo", e foi uma obra que me impressionou muito.  O ateísmo de Saramago é de uma vertente inusitada para aqueles que, como eu, estamos acostumados a discutir o tema a partir da ciência.  Saramago, pelo menos em sua obra, o faz a partir de uma minuciosa análise dos personagens bíblicos, das horríveis histórias contadas tanto no Novo quanto no Antigo Testamento.  Coisa curiosa é o fato de ter escrito seu primeiro livro do tema Deus (não li muita coisa dele, talvez tenha escrito algo antes) tratar justamente no Novo Testamento, onde, segundo os católicos, surge o "Deus do Amor", em substituição à figura perversa do Antigo Testamento, o "monstro do mal" de Dawkins.  Jesus aparece como um sujeito ingênuo, que revoltado com a morte do pai (José, e não Deus) foge de casa e é criado por um pastor racionalista - o Diabo.  A trama é deliciosa e altamente recomendável.

Outra curiosidade é o fato de seu último livro tratar justamente da covarde argumentação contra o Deus mau do antigo testamento (é mau no novo também).  Nas obras de Saramago, o deus bíblico era bastante poderoso, mas não onipotente ou infalível.  Assume não ser capaz do impossível e nem sabe o que os homens pensam.  Somente um deus com essas características seria compatível com as ações descritas na Bíblia.  Penso que "Caim" é um dos melhores fechos possíveis para a obra, apesar de ser muito inferior ao "Evangelho".

Quanto ao filme "Blindness", conversei com muita gente que não gostou - todos os que tinham lido o livro.  A exemplo do Gabriel, eu gostei bastante e penso que a adaptação foi muito bem feita para a compreensão na língua inglesa - acho um belo filme.  De qualquer forma, tem uma cena que torna desnecessária qualquer defesa ao filme de Meirelles:


O velhinho só não fará mais falta ainda porque sua obra permanecerá para sempre, e além de me faltar ainda ler muita coisa, há os que certamente serão relidos.  De qualquer forma, um mundo sem a presença de sua personalidade fica certamente mais pobre.

Pra concluir com alguma graça, duas coisas:

1. O jornal do vaticano, aquele mesmo que publicou a declaração do papa afirmando que a máquina de lavar tinha feito mais pela mulher que a pílula, que discutimos nesse outro post, não poderia deixar de comentar a morte de Saramago.Em artigo publicado no último domingo, só faltou mesmo dizer que o português certamente estaria no inferno, coisa que certamente divertiria o autor, caso vivo estivesse.  Pra quem quiser conferir, é só clicar aqui.

2. A revolta da igreja começou com "O evangelho" e terminou com "Caim", do qual transcrevo um trechinho no qual deus acaba de explicar o plano do dilúvio para Caim, na presença de Noé:

    "(...) Então Caim disse, Com estas dimensões e a carga que vai levar dentro, a arca não poderá flutuar, quando o vale começar a ser inundado não haverá impulso de água capaz de a levantar do chão, o resultado será afogarem-se todos os que lá estiverem e a esperada salvação transformar-se-á em ratoeira, Os meus cálculos não me dizem isso, emendou o senhor, Os teus cálculos estão errados, um barco deve ser construído junto à água, não num vale rodeado de montanhas, a uma distância enorme do mar, quando está terminado empurra-se para a água e é o próprio mar, ou rio, se for esse o caso, que se encarregam de o levantar, talvez não saibas que os barcos flutuam porque todo o corpo submergido num fluido experimenta um impulso vertical e para cima igual ao peso do volume do fluido desalojado, é o princípio de arquimedes, Permite, senhor, que eu expresse o meu pensamento, disse noé, Fala, disse deus, manifestamente contrariado, Caim tem razão, senhor. se ficarmos aqui à espera de que a água nos levante acabaremos por morrer todos afogados e não poderá haver outra humanidade.  Enrugando a testa para pensar melhor, o senhor deu umas quantas voltas ao assunto e acabou por chegar à mesma conclusão, tanto trabalho para inventar um vale que nunca existira antes, e afinal para nada.  Então disse, O caso tem bom remédio, quando a arca estiver pronta mandarei os meus anjos operários para a levarem pelos ares para a costa do mar mais próxima, É muito peso, senhor, os anjos não vão poder, disse noé, Não sabes a força que têm os anjos, com um só dedolevantariam uma montanha, o que vale é serem tão disciplinados, não fosse isso e já teriam organizado um complô para me deporem, Como satã, disse caim, Sim, como satã, mas a este jã lhe encontrei a maneira de o trazer contente, de vez em quando deixo-lhe uma vítima nas mãos para que se entretenha, e isso lhe basta, Tal como fizeste a job, que não ousou amaldiçoar-te, mas que leva no coração toda a amargura do mundo, Que sabes tu do coração de job, Nada, mas sei tudo do meu e alguma coisa do teu, respondeu caim, Não creio, os deuses são como poços sem fundo, se te debruçares neles nem mesmo a tua imagemconseguirás ver, Com o tempo todos os poços acabam por secar, a tua hora também há de chegar.  O senhor não respondeu, mas olhou fixamente caim e disse, O teu sinal na testa está maior, parece um sol negro a levantar-se do horizonte dos olhos, Bravo, exclamou caim batendo palmas, não sabia que fosses dado à poesia, É o que digo, não sabes nada de mim.  Com esta magoada declaração deus afastou-se e, mais discretamente que a chegada, sumiu-se noutra dimensão.
    Picado por um debate em que, na opinião de qualquer observador imparcial, não tinha feito a melhor das figuras, o senhor resolveu mudar de planos.  Acabar com a humanidade não era o que poderia se chamar de uma tarefa urgente, a obrigada extinção do bicho-homem poderia esperar dois ou três ou mesmo dez séculos, mas, uma vez que havia tomado a decisão, deus andava a sentir uma espécie de comichão na ponta dos dedos que era sinal de impaciência grave."

 




2 comentários:

Gabriel G; disse...

Pois é, Marcelo, o Saramago também entra no nosso velho tópico comum do ateísmo... (aliás, dá pra ver isso pela seleção dos trechos e obras colocados aqui por nós, não?)

Caramba, essa cena flagrada do Saramago velhinho chorando junto com o Fernando Meirelles (quase tão emocionado quanto por ver a comoção do "ídolo" homenageado) é muito linda. Eu já tinha visto antes, e mesmo assim fiquei comovido de novo.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Verdade. Mas convenhamos, o cara fez por onde...rsrsrs!! Tá certo que daria pra destacar outras coisas, mas acho que seria até "desonesto" de nossa parte uma omissão em relação ao ateísmo tão evidente do Saramago.

E essa cena dele com o Meirelles é do caralho mesmo...