Entreouvido hoje no supermercado: dois funcionários conversando bem-humoradamente enquanto arrumavam os produtos na gôndola de condimentos.
Mulher: … é, mas não importa o quanto errado nossos pais estejam, a gente tem que relevar. Afinal, mãe é mãe, né…
Homem: é, nem me fala. Seus pais batiam em você?
Mulher, Rindo leve e falando casualmente: Nossa. Quando eu era criança a gente as vezes até tentava chamar a polícia, sabe? Nossa mãe era só pancada…
Homem: Minha mãe prendia eu e meus irmãos nas pernas assim (mostra), e aí era só cascudo… porrada. Aí, depois ainda tinha o castigo.
Ela, ainda em tom leve: uma vez minha mãe ficou batendo a cabeça de minha irmã na parede. Pegou assim e pá pá, só no barulho. E eu chorando, gritando pára, pára.
(Pausa.)
Acho que é por causa disso que até hoje eu nunca quis ter filho. Sei lá, tenho medo. Medo das pessoas.
Hoje tem palhaçada?
Tem sim senhor!
Hoje tem marmelada?
Tem sim senhor!
E o Tiririca o que é que é?
É um pobre coitado que, ao perceber que o "sim" ganharia, resolveu inverter o seu voto momentos depois de garantir apoio ao governo. Um sujeito tão sem noção que aparentemente acredita que seus milhões de votos são oriundos de um eleitorado que acompanha e se preocupa com as suas posições, e não votos de protesto. Um deputado que apesar de ter conquistado uma votação altíssima, caiu de 1.348.295 de votos em 2010 para 1.016.796 em 2014, e que tendo mudado de posição não terá a confiança de nenhum dos lados do espectro político. Um deputado que, a despeito de ter chegado ao Congresso como piada, amealhou algum respeito por sua atividade parlamentar: assiduidade de 100% e apresentação de diversos projetos de lei relacionados à cultura e à atividade circense; em quem, portanto, os profissionais do circo depositavam alguma esperança de representação. Estes profissionais reagiram ao voto do deputado, o que os levou a apresentar o seguinte manifesto:
"Ao Excelentíssimo Senhor Tiririca Deputado Federal
Senhor Deputado,
Nós,
palhaças e palhaços profissionais, brasileiros e estrangeiros engajados
na defesa da democracia do Brasil, manifestamos nossa mais completa
insatisfação e repúdio em relação à postura e ao voto de V.Exa na
votação do processo de impeachment do último domingo, 17 de abril de
2016.
Como o senhor bem sabe, nossa profissão se baseia, acima de
tudo, na verdade e na honra com a qual o artista se dirige a seu
público.
O que certamente nos diferencia do senhor, na atual
situação de nosso país, é a coragem ética com a qual nós, ao contrário
de V.Exa, lutamos pela consolidação da, ainda frágil, democracia
brasileira.
Sabemos perfeitamente que, em nosso sistema
constitucional, não se pode derrubar um governo simplesmente porque não
se concorda com sua política. É preciso que se prove a existência de
crime de responsabilidade. E tal noção de crime, forjada do dia para
noite, em uma Câmara cujo presidente é investigado na operação Lava
Jato, arranha consideravelmente a legitimidade de um processo que se
pretende honesto.
V.Exa não quer, ou não tem interesse em
observar esses fatos com isenção, honra e justiça. Daí nossa brutal e
essencial diferença.
Portanto, deputado Tiririca, trocando em
miúdos: no último domingo, lamentavelmente, o senhor não representou os
palhaços e palhaças profissionais, envergonhando aqueles que buscam
honrar o seu ofício de levar alegria ao povo brasileiro."
Segue a assinatura de um grande número de profissionais circenses, conforme pode-se ver na carta original.
É um pouco demais a esquerda responsabilizar Tiririca por sua desgraça. O palhaço não é causa, mas efeito de um sistema político em ponto de ruptura e do analfabetismo político da população. Não me sinto confortável em tripudiar sobre uma pessoa tão simples quanto este deputado. Mas é importante lembrar que não é necessário qualquer nível de educação formal para saber que não se quebra palavra acordada, goste-se ou não de Lula ou de Dilma. Aqueles que convenceram Tiririca a mudar de voto e celebraram o voto do palhaço certamente não têm por ele um pingo de respeito. Aliás, só quem poderia dedicar algum respeito a um homem sem instrução, suspeito de analfabetismo após sua primeira eleição, de origem humilde e palhaço profissional seriam justamente aqueles que Tiririca traiu ao mudar seu voto em função da ocasião: a população humilde, palhaços e profissionais do circo. Uma pena.
Wilbor se Revolta completou dez anos. Pra ser mais preciso, isso ocorreu no dia 16 de setembro. Os poucos que acompanham as revoltas wilborianas sabem que elas sempre foram esporádicas, mas que, de uns tempos pra cá, estão mais pra espasmos eventuais de um blog outrora vibrante.
O Gabriel já analisou, em dois excelentes posts (aqui e aqui), os motivos para o declínio da produção do blog. Sugiro fortemente a leitura pois, mais que uma autoanálise, que foi o mote principal das comemorações de cinco anos (aqui e aqui), trata-se de um belo ensaio sobre a evolução da relação da sociedade com a internet e de como as redes sociais, especialmente o facebook, se tornou a própria internet. Abusando um pouco da autopropaganda, que é um dos motivos por aqui, sugiro para os novos leitores a leitura daqueles posts.
Nos textos mencionados já há uma reflexão divertida sobre o número dez, a importância de se comemorar um decênio, a relação com o nosso número de dedos, de modo que não resta muito a dizer a respeito do tema. Colecionarei ideias para 2017, quando prometo tratar, com alguma profundidade sobre as propriedades místicas e semióticas da dúzia.
De qualquer forma e sabendo que apesar da forte recomendação pouca gente se dá ao trabalho de ler "textões" citados dentro de textões, cito um trecho (rá!):
"Logo de início, toda a trivia de comentários e compartilhamento
de coisas bacanas que costumávamos fazer pelo Wilbor passou rapidamente
para o Face. E com razão: ele se presta ao compartilhamento coletivo de
forma incomparavelmente mais eficiente. Ninguém precisa vir ao nosso
cafofo buscar nossas sugestões de link, elas são oferecidas pelo feed. Os posts do blog ficaram definitivamente reservados para
colocações mais autorais e assuntos mais longos e desenvolvidos --
aquilo que hoje se chama de "textão". Ou seja: coisas para as quais,
coincidentemente, tanto eu quanto Marcelo passamos a ter cada vez menos
tempo, ambos embrenhados em nossas respectivas carreiras e vidas
pessoais.
(...)
Porém, a absorção e a sedução das redes vai mais longe: mais que um espaço de coisas mais rápidas, o Facebook é um espaço de contato público que
o blog nunca pôde ser. É um meio muito mais eficiente em "espalhar a
palavra". Nossas reflexões nunca foram tão lidas quando ficávamos só no
Wilbor. Como consequência, o face passou gradualmente a ser nossa
plataforma primária de produção. Muitos posts do Wilbor dos últimos
tempos foram originados como desenvolvimentos posteriores de posts do
face. E, obviamente, tudo o que colocamos no blog é obrigatoriamente
anunciado em nossas respectivas timelines.
Esse processo não foi
uma exceção isolada: nesse últimos anos, ficou visível que cada vez mais
blogueiros montaram no Face sua base de operações, lateralizando (ou
mesmo quase abandonando) seus blogs. E porque não? O tipo de
visibilidade imediata e velocidade de resposta que ele garante é
impressionante.
O problema, porém, é que um "blog" é nosso de uma maneira que nossa timeline do Facebook nunca foi ou será."
Não tenho reparos a fazer à discussão, até porque o tema já foi pauta de inúmeras discussões que tivemos ao longo dos últimos cinco anos. Conforme apontado pelo Gabriel, apesar de termos atingido um ápice de produção em 2007, é exatamente a partir de 2011 que a produção do blog cai vertiginosamente. Apesar disso, solicitamos ao Datafolha um gráfico e percebemos que, apesar da queda na produção, houve, à exemplo do crescimento de Marina Silva nas últimas pesquisas eleitorais, um crescimento subjetivo.
Há, claro, uma coincidência com uma utilização mais pesada do facebook. No primeiro quadrimestre deste ano produzimos 13 postagens. É um aumento discreto, impulsionado pelo momento político. Aliás, a atual crise de tudo faz com que o Wilbor pareça um blog de política. Não é, embora o tema tenha sempre estado em pauta em função do interesse pessoal que ambos temos. Tratamos com alguma frequência de ciência, literatura, quadrinhos e humor - produzindo-o ou discutindo-o.
Não faremos qualquer promessa de incremento, mas no entanto, temos uma novidade: articulando esse post com os textos do Gabriel, surgiu a ideia em adotar a mesma estratégia de muitos outros blogs amadores: deixaremos de divulgar as postagens apenas nas nossas timelines que, ao contrário do blog, são restritas aos amigos, e passaremos agora a divulgar os posts na página oficial de Wilbor se Revolta no facebook.
Há algum tempo as discussões dos posts (que nunca foram lá tão frequentes) passou a ser feita nas nossas timelines. O problema é que, ao contrário do que ocorre no blog, as postagens se perdem no facebook, sendo-nos apresentadas uma vez por ano, no aniversário do evento de publicação. Tendo a página, é possível resgatar as postagens com mais facilidade. A exemplo do que eu já faço sempre que me lembro, adicionaremos, a cada postagem, o endereço para o post na página do facebook, de forma a centralizar a discussão.
Enfim, eis a novidade. Nada mais adequado que fazer o lançamento num feriado de Tiradentes: um blog que foi traído pela internet, enforcado pelo facebook e voltou pra contar a história. Uma espécie de Tiradentes zumbi. Subscrevo ao compromisso já assumido pelo meu co-blogger: apesar de não haver qualquer demanda social para sua continuidade, Wilbor não morrerá (ao menos enquanto vivermos). A gente gosta dele. Eu sinceramente espero que essa estratégia de centralizar as operações de divulgação no facebook nos dê mais gás para dar uma animada no bichinho. Se não der, paciência, a gente continua tentando.
É isso. Ainda não completamos 11 anos, de forma que o meu post comemorativo está em dia. Parabéns pra nós e vida longa ao Wilbor. Continuaremos sendo um blog belo, recatado e do lar, aclamados pela autocrítica, produzindo aquele humor obscuro que vocês tanto não entendem.
Abraços!
Pra quem passou despercebido pelo link, aqui está o endereço no facebook. Curtam, compartilhem, convidem o amigos, mostrem pras vovós!!
Lamentável o editorial de hoje da Folha de São Paulo, "Golpe na ONU".
Há algum tempo o conselho editorial do diário paulista vem adotando uma linha ameaçadora à Dilma em seus editoriais: "se não fizer isso", "se não fizer aquilo". Em linha com a contraofensiva lançada por Michel Temer para evitar danos à sua imagem junto à comunidade internacional, que discuti aqui, o artigo dá mais um ultimato à Dilma:
"Se não voltar atrás em mais uma atitude mal concebida na solidão do
Planalto, a presidente Dilma Rousseff (PT) embarcará para Nova York com
uma péssima ideia na bagagem: denunciar na ONU o suposto golpe de Estado representado pelo processo de impeachment"
Colocada na complicada situação de justificar o injustificável, a Folha classifica como "esdrúxula" a convicção de que a imprensa internacional estaria alinhada à ideia de golpe, alegando que "há de tudo entre os comentários publicados sobre o
impedimento." É uma meia verdade. Se é correta a alegação de que muitos veículos da imprensa internacional não chama o processo de "golpe" per se, é inescapável a percepção de que descrevem o impeachment pelo que é: um processo antidemocrático, no qual uma presidente sem acusações de crime é julgada por um circo comandado por um bandido, aliado a um vice-presidente conspirador que visa levar ao poder um grupamento político incapaz, há quatro eleições, de derrotar o petismo nas urnas. Essa percepção, aliás, é o que justifica a preocupação de Temer e sua turma de conspiradores. Ademais, boa parte do que saiu publicado na imprensa internacional como artigos de opinião é redigido por brasileiros, muitas vezes, membros da mídia corporativa nacional.
Para a Folha, por outro lado, "não há reparos a fazer ao processo de impeachment, até aqui, do ponto de
vista institucional". Trata-se de colher o resultado argumentativo de uma verdade que a própria imprensa brasileira tentou plantar: a de que o processo é legítimo porque a figura do impeachment está na constituição. Há alguns meses convivemos com uma enxurrada de textos e entrevistas que buscam dar suporte a esse argumento. A pergunta, feita à exaustão era: "impeachment é inconstitucional?". Tratei do assunto aqui.
Outro argumento compatível com a narrativa criada pela mídia nacional é a declaração do ministro Celso de Mello de que "é um grande equívoco reduzir-se o procedimento constitucional de
impeachment à figura do golpe de Estado.". É sempre conveniente encontrar um posicionamento do STF que não seja de Gilmar Mendes.
Ainda na questão da legalidade, a Folha dá o veredito:
"Pode-se questionar, como fez esta Folha, se as chamadas pedaladas
fiscais constituem motivo suficiente para o impeachment. Não se pode
negar, entretanto, que a prática figura entre os crimes de
responsabilidade descritos em lei, nem que os deputados detêm
autorização constitucional para emitir juízo sobre o assunto. "
Reproduzo a perplexa resposta de Marco Aurélio Mello a Augusto Nunes, no Roda Viva: "Ora, pra que processo então?". Não cabe à imprensa determinar o que é ou não é crime. O mérito do processo ainda não foi julgado e, pessoalmente acredito que seja muito difícil, caso o STF decida julgar o mérito da questão, que se considere que as "pedaladas fiscais" constituem crime de responsabilidade. Deixando isso de lado, trata-se de absoluta dissimulação do jornal afirmar que "a prática figura entre os crimes de
responsabilidade descritos em lei", uma vez que a interpretação jamais foi neste sentido. Quanto a autorização constitucional para emitir juízo, sim eles a tem. Mas emitir juízo sobre o assunto foi a única coisa que não fizeram no domingo passado.
Vencida a argumentação legal, resta ao jornal apenas duas atitudes: desqualificar as posições das autoridades que se declararam contra o golpe, como "as manifestações impensadas dos
secretários-gerais da OEA, Luis Almagro, e da Unasul, Ernesto Samper" e o apelo à imagem do Brasil. Denunciar o golpe, "mesmo se estivesse certa, ainda seria um ato irresponsável", pois "toca a quem a
ocupa zelar por seu bom conceito aqui e alhures, e não solapá-lo", equivale, como argumentei ontem, a dizer: "olha, mesmo que a gente tenha feito merda, não saia por aí contando porque pega mal". Vou repetir sumariamente, porque já me referi a isso, mas o que pega mal mesmo, na comunidade internacional é o baixo nível do nosso congresso, uma conspiração armada por um vice-presidente, um corrupto comandando um processo que, pra dizer o mínimo, é antidemocrático. Atacar a democracia pega mal.
No final do editorial a Folha parece estar tentando bater algum tipo de recorde de dissimulação. Primeiro por adiantar que "espernear não vai resolver nada", porque eles já sabem o que vai acontecer: "decerto tomarão como insólita (se não oportunista) a tática de
instrumentalizar uma reunião sobre mudança do clima para fazer
propaganda dirigida ao público brasileiro e, pior, em causa própria, não
no interesse nacional". Mas por último, e mais grave: a Folha apela a FHC e a Lula:
"Com o mau passo, Dilma Rousseff apenas abalará mais um pouco, em seu
desleixo diplomático, a imagem do Brasil como democracia funcional e
estável, reconstruída a duras penas por Fernando Henrique Cardoso (PSDB)
e Luiz Inácio Lula da Silva (PT)."
É de lascar, né? Resumo da ópera: desde que a Folha decidiu escrever exclusivamente para o público conservador, passou a se comportar de forma vil. Apela não para o bom senso, mas para a burrice do leitor. Neste editorial dá uma lição do que o jornalismo não deve fazer: desinforma, pratica o proselitismo, ameaça e vaticina. Ameaçar e declarar que aqueles que se sentem injustiçados não devem procurar apoio onde julgam poder encontrar bom senso não pode ser descrito em outros termos que não terrorismo jornalístico.
Não há mais limites para a surreal oposição brasileira. O último movimento consiste em tentar impedir que a Dilma fale na ONU. Aloysio Nunes, o candidato à vice-presidência na chapa de Aécio, declarou o seguinte:
Ora...quem foi que transformou o Congresso num circo em que palhaços corruptos comandados por um gangster julgaram uma presidente sem qualquer acusação diante dos olhos do mundo inteiro?
Quem é que está levando às últimas consequências um pedido de impeachment que a imprensa internacional reconhece como ilegítimo pela ausência de crime?
Quem é que está viajando aos EUA a mando de um vice-presidente conspirador, flagrado com um inédito sorriso de orelha a orelha ao assistir a palhaçada que hipnotizou o país no último 17 de abril, para convencer o mundo de que "o golpe não é golpe"?
Um vice-presidente sorri ao assistir o resultado da conspiração que o levou à quase-presidente Essa foto certamente entrará para a galeria das imagens mais escrotas da história do Brasil.
Esse receio em relação à própria imagem (porque, como vimos na câmara, esse povo tá cagando pra imagem do país) é equivalente a um marido que, após espancar a mulher, fica com medo que ela relate o acontecido à imprensa, porque pega mal ficar conhecido como "aquele cara que bate na mulher".
Temer, é LÓGICO que pega suuuuper mal a imagem de golpista, de um vice que conspira contra a presidente. Deixo a dica: evita-se
esse tipo de coisa respeitando o estado Democrático de Direito, é simples.
Agora, como eu já disse antes, a estratégia de impedir a presidente de viajar à Nova York e denunciar, na ONU, aquilo que toda a imprensa internacional já entendeu é enfiar as patas traseiras pelas dianteiras. Pra quem não quer parecer golpista, censurar a fala da presidente no órgão máximo da política internacional é o ápice da burrice.
O país tá bem melhor. Na manhã
seguinte ao impítiman, o Ibirapuera estava assim. Obrigado pela
lucidez, agora a gente tira o Temer, o Cunha, o Renan, os 16
governadores e milhares de prefeitos que pedalaram, os 300 e tantos
parlamentares com pendências jurídicas e consegue um pedido de desculpas
do Bolsonaro, né?
Pelo que me consta, a função do embaixador é de ordem estritamente
diplomática, e não de tentar se casar com algum cardeal - para
frustração de alguns destes.
"Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la?"
Repito o que venho dizendo há algum tempo: nenhuma das posições aparentemente
progressistas do papa se converteu em declaração oficial, da espécie considerada intrinsecamente verdadeira em função da tal
infalibilidade papal. Isso só ocorre quando o papa fala "ex cathedra": numa
encíclica, por exemplo. Talvez seja necessário papel especial e uma
caneta com tinta do Espírito Santo, vai saber.
De qualquer forma,
a postura do Vaticano frente ao diplomata gay vai de encontro com o
posicionamento do então cardeal Mário Sérgio Bergoglio, que em 2010
escreveu o seguinte sobre o projeto de casamento gay na Argentina:
"O povo argentino deverá confrontar, nas próximas semanas, uma situação
cujo resultado poderá ferir gravemente a família. Trata-se do projeto
de lei sobre o matrimônio de pessoas do mesmo sexo.
Estão em jogo
aqui a identidade e a sobrevivência da família: pai, mãe e filhos. Está
em jogo a vida de tantas crianças que serão discriminadas de
antecipadamente, privando-se do amadurecimento humano que Deus quis que
fosse com um pai e uma mãe. Está em jogo a rejeição direta à lei de
Deus, gravada, ademais, nos nossos corações.
Recordo uma frase de
Santa Teresinha quando fala sobre sua enfermidade de infância. Disse
que a inveja do Demônio quis cobrar em sua família a entrada de sua irmã
maior ao convento de Carmelo. Aqui também está a inveja do Demônio,
através da qual entrou o pecado no mundo, que de modo arteiro pretende
destruir a imagem de Deus: homem e mulher receber o mandato de crescer,
multiplicar-se e dominar a terra. Não sejamos ingênuos: não se trata de
uma simples luta política. É a pretensão destrutiva ao plano de Deus.
Não se trata de um mero projeto legislativo (este é meramente o
instrumento), mas de uma 'movida' do pai da mentira que pretende
confundir e enganar os filhos de Deus."
O que é mais provável, pergunto: que entre 2010 e 2013 o papa tenha
tido uma epifania e finalmente, revertido sua posição ou que o Vaticano
tenha uma preocupação com sua imagem e perda de fiéis?
Nada
mudou. Papa e Vaticano continuam contra o casamento gay, o uso de
preservativos e sem tomar uma atitude concreta e de escala compatível
com os escândalos de pedofilia que atingem sua igreja.
Pra ser justo, algo mudou: o departamento de relações públicas.
Por fim: pra quem é católico e acredita em Deus tal qual colocado pela Igreja Católica, a minha "exigência" de que o papa fale utilizando seus poderes de infalibilidade não pode ser resolvida por vontade do papa Chico, uma vez que depende de vontade divina. Neste caso, sinto dizer...a única forma de manter a coerência entre a doutrina católica e qualquer posicionamento progressista é acreditar que de fato Deus seja contra o casamento gay e assumir o pecado de concordar com uma posição herege do papa, já que homossexualidade é crime (bem como sexo com qualquer finalidade que não a reprodutiva ou fora do casamento).
Logo mais eu e muita
gente iremos às ruas. Bicho racionalista/determinista que sou, não sei se com
algum efeito prático, mas mesmo sem saber se nossa presença nas ruas pode ter
algum efeito absolutamente positivo, acredito que pode haver um efeito
relativo: o de que ruas vazias, por parte da esquerda possa, implicitamente,
autorizar deputados que ainda não decidiram (ou não quiseram decidir) a votar a
favor do golpe que se tenta neste momento.
A responsabilidade sobre
a presença nas ruas é da esquerda.A massa
CBFista que certamente dividirá os espaços públicos conosco não se move naturalmente.Por mais que não se sintam assim, essas
pessoas estarão nas ruas como resultado da ininterrupta incitação e manipulação
da grande mídia corporativa nacional, nas mãos de cinco famílias que na verdade
são uma só.Da mesma forma que a imprensa
colocou Collor no Planalto para depois derrubá-lo, é provável que a multidão revoltosa seja
apenas utilizada como cenário legitimador – até porque a partir daquele processo,
é dever daqueles que pensam o país com responsabilidade histórica ao menos considerar que houve traços de ilegitimidade em 1992.A diferença é que, ao contrário do que acontece agora. absolutamente ninguém se dispunha a defender o presidente “d´aquilo roxo”. Eis a dimensão política de um processo de impeachment.
Em 2010 Lula deixa o governo com
87% de aprovação.Me pergunto: quantos
dos que agora enxergam no PT uma filial do inferno estavam entre os 4% que, ao
final daquele período consideravam o governo de Lula ruim ou péssimo?Ali estava a semente do ódio
que, adubada por parte da elite nacional com altas doses de chorume midiático
floresceu nesta sufocante e opressiva massa verde-amarela.
Outro sentimento me move
no dia de hoje: o medo grande de que, caso se confirme essa marcha da
insensatez, venhamos a mergulhar num longo período negro da nossa
história. Alguns falam em 20
anos para voltar à normalidade.Não há como saber: o governo golpista
pode até ser transitório e cair em 2018, mas certamente quem luta de forma tão
ardilosa para chegar ao poder não tem intenção de deixá-lo tão cedo. Até porque
a força motriz do golpe é a preservação de uma classe política que se vê ameaçada
por seu próprio remédio: a lava jato começou a respingar em quem não devia.É cedo para saber se haverá violência de
fato: isso dependerá exclusivamente da capacidade de resistência dos democratas,
já que sabemos o tom da resposta das polícias aos já marginalizados movimentos
sociais no país.Caindo o governo Dilma,
estejam certos de que a criminalização da esquerda continuará com força
total.Eu penso que os donos (de fato)
do poder avaliam que pegaram leve com Lula em 2002.Não repetirão o erro.
O golpe que está em curso
é mais sofisticado que aquele que vivemos em 1964: o Paraguai foi o laboratório
desta nova modalidade na América do Sul.No país vizinho,
Fernando Lugo caiu em um processo que durou 48 horas; por essas paragens, o
processo teve início em dezembro, mas vem sendo gestado há muito tempo, desde a derrota não admitida por Aécio, pra sermos específicos. De forma mais difusa, porém, desde que os setores interessados perceberam que poderiam
aproveitar os protestos de 2013 para canalizar um sentimento contido de ódio de
classe que eclode pelo menos 11 anos atrás, durante a campanha vencedora de
Lula em 2002.Há, até o presente
momento, um esforço hercúleo em dar contornos de legalidade ao golpe.Isso continuará.
Por fim, um outro fator
me fará deixar de acompanhar o circo de hoje de casa, com conforto, comida e
cerveja, fazendo comentários nas redes sociais e montando planilhas: não conseguiria ficar
em paz estando em casa.De alguma forma
me sinto moralmente obrigado a fazer volume no Anhangabaú.Quero deixar claro que não imputo reprovação alguma
àqueles que não poderão ou não querem ir...cada qual tem suas razões e não cabe
a mim questioná-las.Mas penso que se a
votação de hoje estiver de fato perdida, será das ruas, os grandes palcos da
democracia brasileira, que sairão os primeiros gritos de resistência.
Antes ficavam isolados em seus quintais e portas de apartamento com correntinhas; hoje lançam-se em público, redes de ódio (variando entre a ignorância, a paranóia e esquizofrenia) arremessadas na midiosfera, que em seu arrastão recolhem brasil afora seus outros semelhantes.
A visibilidade e os grandes números coletivos (união faz a força) atraem ainda mais pessoas.
Aqui uso o irretocável comentário de minha amiga Nilce Aravecchia:
"Um indivíduo sozinho pode ser incapaz de exprimir certos atos violentos que consegue tranqüilamente produzir em grupo. O sentimento de ódio compartilhado em um grupo acaba por potencializar a força destruidora, impedindo o chamamento à consciência."
Nesse sentido, é perigoso subestimar a força da lógica subjacente da sociedade do espetáculo ("o que é bom é o que aparece e o que aparece, se aparece é porque é bom"); a visibilidade, os números são sua própria justificativa. Seja ódio, boçalidade ou vulgaridade: para a imensa maioria das pessoas, a publicização já é em si legitimação. A mídia se reconstruiu como 'reality-show', o mundo se reconfigura como 'show-reality': realidade de miudezas sempre à mostra para milhões, de eternização dos espasmos dos afetos (em especial os afetos negativos).
Essa força de reatroalimentação coletiva/midiática produziu, recentemente, o mais amplo surto coletivo de esquizofrenia paranóide já visto no país.
A eleição não dá o resultado que desejo? Eleição falsificada. Abaixo à urna eletrônica, quem acredita nessas urnas só pode ser idiota mesmo. A revista que há anos fala mal do governo federal em toda e qualquer oportunidade (real ou fictícia) por acaso acabou de reconhecer algo de acertado que esse governo fez? É vendida, petralhada, sacana.
Essas criaturas vão ferir muita agente ainda. Indiretamente e diretamente.
Há uma velha máxima no mundo jurídico: "o Direito Civil serve para os ricos, enquanto o Direito Penal se aplica aos pobres".
Antes que o público "anticorrupção" comece a atirar pedras e comemore o fato de que a operação lava jato subverteu essa regra ao levar à cadeia alguns dos maiores empresários do país, peço que façamos uma reflexão sobre o que está por trás da assertiva, pois eu quero chegar em outro lugar.
O Direito Penal foi e vem sendo utilizado, ao longo da história, como instrumento de controle social. Basta observar o perfil da população carcerária brasileira. Ao mesmo tempo em que sabemos que condições de precariedade econômica podem conduzir ao crime, também é verdade que a situação econômica é determinante no que diz respeito ao acesso à justiça. O direito à defesa é mais facilmente alcançável por aqueles que detém recursos para contratar bons advogados, ao passo em que a população mais pobre muitas vezes precisam se contentar com advogados designados ou defensores públicos (quando existem).
Há uma série de teorias sobre as funções da pena mas, de forma simplificada, podemos elencar três:
Função retributiva: a punição daquele que comete um crime, uma forma de;
Função utilitária: prevenir, através do exemplo da punição, o cometimento de novos crimes;
Função social: buscar a readaptação do delinquente à sociedade.
Sabemos, por conhecimento empírico, que as duas últimas são uma ficção na realidade brasileira. A função utilitária da pena tem se mostrado ineficaz para reduzir as taxas de criminalidade. A simples prisão de um criminoso não combate o problema em sua origem: a sociedade é criminógena, ou seja, a sociedade, em suas dimensões políticas, culturais e econômicas, é organizada de forma a naturalmente gerar tensões e ambientes que favorecem a ocorrência de crimes. Um bom exemplo disso são as taxas de homicídios nos EUA, onde verificam-se menos assassinatos em estados que rejeitam a pena capital.
A função social é outra fábula: como é possível imaginar que um sistema carcerário que remete às masmorras medievais possa ser capaz de reabilitar um indivíduo? Como imaginar que alguém que tenha cometido um crime possa se tornar melhor ao ser colocado em um ambiente pior que o original?
Resta-nos a função retributiva ou punitiva.
A ideia de promover, através do Estado, a punição de um criminoso, puramente porque quem comete um crime deve pagar é antiga e natural para as sociedades humanas. Uma das primeiras peças criminais da humanidade é o Código de Hamurabi, que data do ano 1.772 a.C., no qual se encontra inscrita a Lei de Talião: "olho por olho, dente por dente". Trata-se de um dos primeiros exemplos formais de retaliação do delinquente. A função retributiva da pena encontra aí uma de suas primeiras inspirações; trata-se de "vingança promovida pelo Estado". A noção de punição retributiva perdura, através da história, até os dias de hoje.
Os primeiros registros de algum pensamento humanista na história, ainda que sua interpretação seja controvertida, surgem também na Babilônia, mais de mil anos depois. trata-se do "Cilindro de Ciro", onde aparece, pela primeira vez, o conceito de liberdade de religião e abolição da escravatura. Todavia, é apenas no direito moderno que surgem discussões mais aprofundadas e diretamente relacionadas à moderna "Declaração dos Direitos Humanos".
A noção de que há direitos fundamentais, do qual todas as pessoas são titulares, esbarra no fato de que a real compreensão da necessidade destes depende de algum aprofundamento intelectual. É mais provável que a ideia de uma punição imediata e a sensação de alívio de ver, atrás das grades, aqueles que são considerados perigosos, suplante a abstração de que a defesa dos direitos fundamentais de qualquer indivíduo implica na defesa das nossas próprias garantias legais.
Mesmo nos cursos de Direito é comum a dificuldade de entender, de fato, a importância da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal para criminosos. Em exemplos extremos a situação fica mais clara: por que um assassino confesso deveria ter direito à essas coisas? A resposta mais simples é a seguinte: nem todo crime tem a mesma gravidade. Um homicídio pode ter uma série de agravantes ou atenuantes: pode ser cometido após tortura, estupro, assédio psicológico, vingança, etc. Se concordamos em estabelecer penas mínimas e máximas, é decorrência lógica que, no debate entre acusação e defesa, possamos chegar a uma pena adequada (dosimetria da pena). É possível que o assassino tenha matado por se encontrar em uma situação na qual não se poderia esperar conduta diversa, e eu já presenciei um caso assim em tribunal do júri (inexigibilidade de conduta adversa). Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que em um julgamento sem defesa haveria uma tendência à distorção das penas para cima.
O Direito existe, enquanto ramo do conhecimento, por uma razão simples: sem o aprimoramento dos instrumentos jurídicos não é possível a evolução social. O linchamento, modalidade de crime na qual o Brasil é campeão mundial, é uma das formas mais primitivas de justiçamento, remete à práticas anteriores à própria Lei de Talião: o preço por um dente pode ser a vida do outro. Trata-se da mais absoluta falta de qualquer refinamento do pensamento jurídico.
Assistimos hoje, no Brasil, à naturalização do linchamento, tanto em sua forma física, incentivado por personagens retrógrados da mídia, como em sua versão psicológica - os linchamentos morais, turbinados por uma parcela ainda maior da mídia, além de setores do judiciário e grande parte da sociedade:
O discurso odioso dos que promovem o linchamento encontra terreno fértil em uma população pouco educada e nada familiarizada com noções básicas de Direito e Cidadania. É um apelo a aquilo que as pessoas têm de pior, ao raciocínio rápido e inconsequente.
A evolução da espécie humana, num sentido estritamente biológico, não avançou muito da antiguidade pra cá. Os instintos de vingança e punição talvez tenham de fato surgido porque representavam algum tipo de vantagem evolutiva, e somente o surgimento dos direitos humanos (em suas inspirações filosóficas) foi capaz de alterar a forma como pensamos a função do Estado, do Direito, da Humanidade.
Colocando fogo nesse paiol de pólvora, setores da imprensa e do judiciário. Recentemente foi noticiado que o ex-presidente Lula estaria tripudiando da justiça ao mandar "enfiar o processo no cu". A história surgiu a partir de um vídeo gravado pela deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ). Dias depois, a Folha de São Paulo se retratou. O dano político, porém, já estava realizado e é irreversível.
Sergio Moro e a Polícia Federal têm sido responsáveis por vazar, para a imprensa, uma série de depoimentos de delações premiadas. No caso mais grave, o juiz de Curitiba levantou o sigilo de conversas telefônicas que abrangeram Lula, sua família, seus advogados, a presidente da república e ministros. A atitude foi claramente ilegal, acusada pela imensa maioria dos juristas, levando o juiz a pedir "desculpas pelo constrangimento".
Ora, um juiz de direito, especialmente um que atue na esfera do Direito Penal, tem plena noção do que deve fazer em relação à escutas telefônicas que não tenham relação com o processo ou que não contenham evidência de qualquer crime: destruir as gravações. Sabe também que um pedido de desculpas não resolve a situação e muito menos repara os danos causados, como bem coloca Lênio Luiz Streck. Ainda que pudesse alegar ignorância, não parece ser o caso.
Os vazamentos seletivos e a utilização da imprensa para gerar clamor social por justiça não são meros acidentes. São ações premeditadas.
Sergio Moro escreve, em 2004, um artigo intitulado "Considerações sobre a operação mani puliti", a operação "mãos limpas". O texto é um relato sobre a operação que inspirou a Lava Jato, escrito num estilo simples e pouco inspirado, mas suficiente. A leitura permite entender a ordem da operação Lava Jato, bem como verificar que os vazamentos são propositais. Destaco um trecho:
"Os responsáveis pela operação mani pulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes.
Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva. Craxi, especialmente, não estava acostumado a ficar na posição humilhante de ter constantemente de responder a acusações e de ter a sua agenda política definida por outros.
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.
Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios." - grifos nossos.
O juiz pondera que não há sugestão de que os envolvidos naquela investigação tenham deliberadamente alimentado a imprensa com informações, para logo em seguida, saudar o efeito de tais revelações junto à opinião pública. No Brasil, sabemos que o próprio Moro tratou de alimentar a imprensa com as gravações ilegais. Se interpretarmos segundo o que escreveu em 2004, Moro levantou o sigilo das ligações obtidas de forma irregular, incluindo muitas gravações sem qualquer ligação com a investigação em curso, buscando apenas constranger os personagens junto à opinião pública. Certamente conseguiu. A reação popular foi imediata e os pequenos reparos feitos por parte da imprensa não foram capazes (como nunca são) de desfazer o dano.
Circula pelo facebook um abaixo-assinado no qual os subscritos afirmam "não aceitar qualquer tipo de punição a Moro". Como alguém pode defender uma pessoa que obviamente cometeu um ato ilegal, claramente premeditado tendo ciência de sua ilegalidade? Aparentemente, Moro tem licença especial para quebrar as leis, desde que persiga os alvos escolhidos.
Outro trecho que preocupa é o seguinte:
"A estratégia de ação adotada pelos magistrados incentivava os investigados a colaborar com a Justiça: A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso “dilema do prisioneiro”). Além do mais, havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados. Para um prisioneiro, a confissão pode aparentar ser a decisão mais conveniente quando outros acusados em potencial já confessaram ou quando ele desconhece o que os outros fizeram e for do seu interesse precedê-los. Isolamento na prisão era necessário para prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma, acordos da espécie “eu não vou falar se você também não” não eram mais uma possibilidade.
Há quem possa ver com maus olhos tal estratégia de ação e a própria delação premiada. Cabem aqui alguns comentários.
Não se prende com o objetivo de alcançar confissões. Prende-se quando estão presentes os pressupostos de decretação de uma prisão antes do julgamento. Caso isso ocorra, não há qualquer óbice moral em tentar-se obter do investigado ou do acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito. O próprio isolamento do investigado faz-se apenas na medida em que permitido pela lei. O interrogatório em separado, por sua vez, é técnica de investigação que encontra amparo inclusive na legislação pátria (art. 189, Código de Processo Penal)." - grifos nossos.
Aqui Moro assume a postura de que é lícito mentir para atingir seus objetivos "espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado", de que é permitido torturar psicologicamente investigados "levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão". De alguma forma, mantém um discurso legalista, de aparência técnica, de que ninguém é preso sem que existam os requisitos par uma prisão preventiva. O problema é que, quem decide aqui, é o próprio Moro...o juiz não parece ser incompetente ou agor de má-fe: parece um alucinado, que de fato se enxerga como herói soplitário numa cruxada pelo bem.
A condução coercitiva de um interrogado que jamais deixou de comparecer às convocações de interrogatório é apenas um dos sinais de que o juiz age segundo a tese de que "os fins justificam os meios". Ameaçar um investigado de prisão por tempo indeterminado até que confesse algo, além de desumano pode conduzir à confissões falsas, na qual o prisioneiro acaba revelando o que o investigador quer (papel que Moro aparentemente acumula). A não homologação do acordo de delação premiada com os executivos da Odebretch parece corroborar com a hipótese: Lula e Dilma não estavam implicados...apesar de mais de 200 políticos estarem presentes nas listas da empresa, os executivos desta empresa continuam presos - talvez até revelarem algo sobre os alvos preferenciais, verdade ou não.
Aqui cabe outra observação: na utilização da imprensa para veicular vazamentos, um outro padrão se torna claro. O acusado só precisa de um fato que se sustente. O resto da história pode ser balela, o que pode até vir a ser provado posteriormente...pra mídia não importa: se um dos fatos se mostrar verdadeiro, o público engolirá todo o resto da história. É uma técnica mais utilizada por mágicos e médiuns que por aqueles que perseguem a verdade dos fatos.
Moro justifica esse modus operandi referindo-se a uma suposta ousadia dos “giudici ragazzini” (jovens juízes), que teriam uma deferência menor ao funcionamento tradicional do direito estabelecido. de uma certa forma, contorna-se a jurisprudência estabelecida para pegar os "peixes grandes", numa espécie de Direito Penal Novo.
A superexposição de investigações criminais na mídia traz efeitos negativos. A sanha vingativa do povo raramente perdoa aqueles que são acusados. Para o cidadão médio, acusado e culpado são rigorosamente a mesma coisa, como pudemos observar no caso da Escola Base, no qual os acusados eram inocentes e vivem até hoje sob o estigma de criminosos. Mais recente e mais explorado: o caso dos Nardoni. Aparentemente o casal era culpado, mas imaginemos, que não fosse: que chance teriam em um julgamento? Muito antes o pai e a madrasta de Isabella já haviam sido condenados pelo público. Pessoas comuns foram ao fórum protestar e pedir justiça.
A transmissão ao vivo de julgamentos é um erro, na minha opinião. Juízes precisam de um ambiente tranquilo para poder julgar rigorosamente sobre os fatos. Qualquer julgamento com muito clamor popular coloca uma pressão sob a qual os magistrados podem sucumbir, levando à distorções nas decisões. Parece bom quando é com aqueles que enxergamos como culpados, não tão bacana se vier a ocorrer com um de nós.
Retomando o início do texto, outra distinção que se faz entre os direitos civil e penal é que, no primeiro, o julgador pode se satisfazer com a verdade "formal", enquanto no último não se pode admitir a condenação com menos que a "verdade real". Tirar a liberdade de alguém é algo sério, é preciso ter cuidado. Imaginem passar uma noite na cadeia por ter cometido um crime; agora, imaginem passar um período indeterminado por algo que não fez...
As justificativas dadas por Moro para a condução da Lava Jato se encontram em seu artigo de 2004. Essa proposta de um novo padrão de investigação atropela princípios básicos do Direito Penal e dos Direitos Humanos. Moro relativiza a importância da presunção de inocência, trata investigados como condenados, sujeita-os à tortura psicológica, e utiliza a imprensa, indiscriminadamente, para "gerar constrangimento", facilitando a obtenção de confissões (nem sempre confiáveis). Com isso não só o juiz macula seu conjunto probatório como destrói qualquer princípio de dignidade da pessoa humana. Certamente obter provas de crimes cometidos por pessoas influentes se
torna mais difícil se não tolerarmos que métodos espúrios sejam
utilizados, mas não há dúvida de que, se permitíssemos também a tortura
física, ficaria ainda mais fácil. É melhor que as coisas caminhem a
passos lentos e seguros, pro nosso próprio bem.
Nos EUA o fundamentalismo religioso dos "born-again christians" reacendeu a discussão sobre o ensino da Teoria da Evolução nas escolas versus as "teorias" criacionistas ao cunhar o termo "Design inteligente". O linguajar moderno, a construção da imagem de um herói de olhar firme e determinado, incorruptível, jovem e bem vestido, ajudam na construção da opinião pública. É fácil apelar para os instintos mais primitivos das pessoas: o desejo de vingança movido por um sentimento de indignação criado pela mídia e ampliado pelo efeito de manada das redes sociais. O "Direito Penal Novo" de Moro é apenas uma roupagem moderna para as formas mais primitivas de justiça: o justiçamento. Está, para o direito primitivo, como o design inteligente está para o criacionismo: trata-se de "sophisticated bullshit" ou "fashionable nonsense".
Defender os princípios básicos do Direito moderno, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é não apenas condição sine qua non para uma sociedade civilizada, mas para a garantia dos nossos próprios direitos individuais. Cada vez que permitimos que as regras sejam dobradas para punir aqueles que queremos que sejam punidos, estamos fazendo com que uma injustiça seja cometida contra nós mesmos se torne mais provável.