quarta-feira, 23 de março de 2011

Indignação seletiva (1)

Não tenho pretensão nem tempo de discutir a fundo a atual polêmica em torno do "blog de poesias" de Maria Bethânia e os 1,3 milhões que se quer captar para sua realização. (o blog terá 365 curta-metragens  de declamações de poesias pela própria Bethânia)

Minha opinião sucinta sobre o projeto e a captação:
1. É um absurdo;
2. Não é o primeiro absurdo, nem o único, e nem de longe o pior já gerado pela política de incentivo fiscal encarnada pela Lei Rouanet, Lei do Audiovisual e demais mumunhas (criadas pelo governo FHC e mantidas pelo governo Lula);
3. A maioria das pessoas que estão a xingar por aí sabe pouquíssimo sobre o projeto de Bethânia, sobre quanto se costuma gastar em projetos culturais e sobre a história escabrosa das políticas de incentivo (o que é normal e previsível).

É simplesmente absurdo que, num país com falta de moradia, saúde e educação, o Estado custeie produções culturais de alto custo. PONTO.
Eu pararia por aqui já. Mas tem mais: mais absurdo é que o Estado custeie produções de projetos para figuras consagradas da cultura nacional; que custeie projetos elitistas que cobram ingressos caríssimos (o caso de, entre muitos outros, shows de Bethânia e de seu irmão Caetano); e muito, muito mais absurdo ainda é que cubra os gastos de marketing das empresas envolvidase e garanta o lucro  destas -- cujo "desconto" em impostos pode chegar a ultrapassar 120%.
Como? Sorry? É isso mesmo: em alguns casos se você investir 200 mil reais num filme você poderia chegar a deixar de pagar ao Estado 240 mil.  Pois é, além de garantir os custos integralmente o governo ainda te "pagou" 40 mil reais -- ou talvez mesmo 60 mil , se contarmos que uns 20 mil seriam os gastos de marketing de sua própria empresa! Não é uma delícia? Não é estranho que os empresários adorassem o FHC (e que muitos seguissem adorando o Lula).

Disto isso tudo, me parece extremamente sintomático o fato da indignação a respeito das políticas culturais emergir com tal força justamente quando o objeto da produção é um blog, e a arte envolvida é a poesia.

Onde estava essa indignação com a série de irrelevâncias monumentais que nosso cinema tem produzido como, digamos, O Guarani e Paixão de Jacobina? Lembrando que tais abacaxis cinematográficos custaram (e custam)  muito mais que 1,3 milhões, e combraram ingresso -- enquanto, por mais questionável que seja, a produção de Bethânia será gratuita e virtualmente disponível a todos pela internet, algo muito mais condizente com um projeto financiado com dinheiro público "indireto".

Enfim: claro que é absurdo, e claro que tem um jabazão no meio. Mas não consigo reprimir a impressão de que se Maria Bethânia captasse 3 milhões para fazer um longa-metragem com ela mesma declamando poesia o quiproquó seria menor... fica um pouco difícil não ter a impressão de um subtexto: blog não é coisa séria, poesia é inútil.
Mas deve ser só pessimismo meu. (E eu nem ligo tanto assim pra poesia...)

Um comentário:

Marcel disse...

Ah Gabriel, o intenção da Lei é interessante... Agora parece que corre projeto para alterar a lei e não ocorrer estas distorções que você apontou...