Li Admirável mundo novo depois de 1984, numa edição barata com ilustrações vagabudas. Por contraditório que pareça, ele me soou ao mesmo mais antiquado e mais fantástico que 1984, e ao mesmo tempo mais certeiro quanto ao caminho que andamos trilhando.
Aí que, chegando à história em quadrinhos abaixo (desenhada por Stuart McMillen), descobri que muitas outras pessoas tinham opinião parecida, e que já há pelo menos um livro comparando as perspectivas dos dois autores: Amusing ourselves to death: public discourse in the age of show bussiness, de Neil Postman.
Não sei se o livro é bom, mas a pequena síntese colocada na HQ abaixo é bacana.
(Eu vi essa HQ primeiro numa revista alemã chamada FAZ-FEUILLETON-SEITE, na qual cheguei através de um post do site The Edge (site sobre internet, tecnologia e cultura contemporânea). Procurando mais, achei a imagem num blog de crítica filosófica.)
Embora seja um livro posterior, li 1984 primeiro. O que mais me impressionou no livro não foi sua descrição de uma sociedade totalitária (retratada nos moldes de um estado stalinista ultra-exacerbado tecnológica e culturalmente), mas sim o processo de destruição sistemática do protagonista através da tortura,que ocorre no final.
Mas1984 também tinha um conceito para mim extremamente interessante: o doublethink ("duplipensar"). A idéia de um processo de pensamento no qual se aceitam idéias conflitantes, desde que a autoridade lhe diga que sim. Uma espécie de lavagem cerebral auto-inflingida.
O conceito me impressionou não por seu uso numa a sociedade totalitária, mas sim por sua onipresença no "mundo livre" atual. Por um lado, há aquilo que desde a infância eu tenho ouvido ser chamado de "memória curta": a tendência do público a acreditar no que quer a mídia esteja dizendo AGORA, sem prestar atenção no fato dela estar contradizendo o que já disse antes. Mas o doublethinking me leva também àquilo que autores como Fredric Jameson assinalam como a tendência altamente esquizóide da psique pós-moderna, e como essa psique seria preocupantemente narcisista e apolítica.
Claro, a diferença está no fato de que, ao contrário de 1984, as pessoas "livres" não duplipensam por obediência fanática a dogmas centralmente ditados por um Estado; sua alienação em relação ao funcionamento da sociedade vem, antes, de estarem tão envolvidas e preocupadas com seus pequenos prazeres, com os pequenos espetáculos diários e com os pequenos lugares que lhes cabe, não por autoridade, mas por comodidade, no sistema -- como em Admirável Mundo Novo.
Mas como eu disse, Adimirável Mundo Novo me pareceu ao mesmo tempo mais atual e mais antiquado. Antiquado por que no fundo ele deixar transparecer um moralismo cultural que, francamente, me pareceu "coisa de velho". A idealização de um "ser humano pleno" como um aficcionado por Shapespeare me soou meio forçadinha, ainda ligada a um ideal romântico-liberal-oitocentista de subjetividade e individualidade. Mas a descrição do controle das pessoas num mundo tecnologicamente rico e prazeiroso me pareceu mais revelador de nosso atual momento.
Já havia me ocorrido antes a ironia: o programa Big Brother, cujo nome se baseou no líder fictício de 1984, é na verdade um dos melhores indícios da atualidade do princípio de... Admirável mundo novo.
Mas achar que as sendas distópicas de Huxley e Orwell sejam mutuamente excludentes talvez seja uma abordagem equivocada.
Ignorance is strength, Bial.
2 comentários:
Boa tarde,
Não entendi o arroz com feijão, na minha opnião como literatura do início do século XX foram dados alguns chutes bem certeiros e bem bacanas por ambos autores. Umas coisas de um e outras coisas de outro nos trazem a impressão de que vivemos uma mistura das obras...
Enfim gostei do blog vou passar a visitar mais e ler os textos escritos anteriormente.
Parabéns.
Att.
Santiago
Olá, Santiago. Bem-vindo ao Wilbor, esperamos vê-lo mais aqui.
Sobre o feijão-com-arroz: eu usei a expressão no sentido de que os dois livros são as referências mais básicas e conhecidas de distopia futurista de toda a literatura. O termo não se refere à qualidade e conteúdo dos livros, mas sua popularidade.
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