domingo, 6 de junho de 2010

Mondo Cane

(por Gabriel)

Acho que fica bem óbvio aqui no Wilbor que eu e o Marcelo somos fãs do Laerte (se houvesse uma carteirinha, teríamos).
Mas só quem nos conhece pessoalmente sabe que somos também fãs de cachorros.

Laerte sempre me pareceu um cara dos gatos, um "cat person". Suas tirinhas d'Os Gatos -- e mesmo o exemplo da Selina -- atestavam algo assim.
Mas uma série relativamente recente de Laerte, "Cães", me deixou muito interessado. Mais do que engraçada, duas de suas "reflexões" a respeito de cães me clarearam algumas questões que estavam presentes mas desarticuladas na minha cabeça.
Primeiro, temos esta:

LAERTE-25-03-10.jpg

Aqui já há uma questão sobre a qual eu já pensei muito: os tipos de relação que estabelecemos com animais, por um lado, e mais especificamente a impossibilidade de uma relação "igualitária" entre os pólos humano-animal na vida doméstica, por no mínimo dois motivos:
1. Por que a própria estrutura de nossa vida familiar e doméstica impõe hierarquia e diferenciação;
2.  Porque cães, particularmente, funcionam num mundo instintivo hierarquizado (gatos são ao mesmo tempo mais simples e mais complicados quanto a isso). Não há, para o cão, nenhuma aspiração ao tipo de "liberdade" da qual nós costumamos falar, nenhuma vontade complexa o suficiente para ser confundida com o que nós, depois de milhares de anos de evolução cultural, chamamos de "autonomia". 

Eu coloco falo aqui especificamente da "desigualdade" da vida doméstica simplesmente porque não tenho dados para opinar sobre a relação humano-animal em outras situações... Por exemplo: a relação entre mendigos e "seus" cães nunca me pareceu nada parecida com o tipo de "posse" que exercemos nas famílias, mas não posso falar muito sem cair no achismo total.

Acho desnecessário falar da "escravização" de cães e outros animais no mundo do trabalho;  animais têm sido nossas ferramentas desde nos tornamos capazes de utilizar-los para tal. Se tem algo que eu poderia qualificar como da "natureza" humana (e vocês só me verão falar de "natureza humana" entre aspas) é isso: instrumentalizar as coisas. Fazemos isso aos cachorros, fazemos com qualquer outro item do universo -- incluindo, obviamente, outros seres humanos.

(Lembram de um episódio do fim da vida -- e da sanidade -- de Nieztsche quando, vendo um cavalo ser chicoteado, ele entra em prantos e abraça o pobre bicho e pede perdão pelos pecados humanos contra a vida? Essa reflexão sempre me traz essa cena de volta à mente.)


A tira seguinte, por sua vez, me trouxe algo muito diferente. Ela se aproxima da anterior no fato de cutucar nossa compreensão de como percebemos e representamos os cães para nós mesmos -- e, por conseguinte, como nós vemos a nós mesmos (p.ex: de companheiros, passamos a escravizadores de cães). Mas a partir daí, a questão desta é bem outra.
LAERTE-24-03-10.jpg


Eu nunca tinha refletido sobre essa questão de representação bicho/gênero; mas, ao vê-la aqui, ela me soou tão verdadeira e natural como se eu mesmo já tivesse pensado nela. Acho que provavelmente os estudiosos e interessados na representação de gêneros (i.e. os "feministas" :) ) poderiam esboçar um sorriso de concordância ao lerem a tira. (Se o blog da Marjorie estivesse em funcionamento, eu mandaria isto para ela pra ver sua opinião)
Eu já tinha pensado bem de leve em como o comportamento dos gatos possui uma série de padrões associados com representações do feminino (charmoso, sedutor, manhoso, caprichoso, imprevisível, interesseiro, traiçoeiro... etc), mas não havia pensado ainda nos cachorros. O interessante é que, nesta tira, não se chega a fazer a contraposição entre "cão" e "gato". ; o texto se limita ao cachorro.
O que temos, então, é apenas um cão pensando e questionando suas próprias representações de gênero...

Quando pensei nisso, de repente me toquei: caramba, é um cão gay.

Laerte não estaria falando só de nosso vício de fazer projeções de nossas qualidades em bichos. Não se trata só de uma mera curiosidade diletante transformada numa "tirinha sem-piada". Ele fala aqui sobre como as pessoas representam a sexualidade para si mesmas. Como o cachorro é que é o sujeito da fala aqui, ele também está discutindo sua própria sexualidade.
Sua frase final, "quanta idiotice", me parece falar não só do fato dessas associações serem tolas, mas dele próprio não se ver refletido nelas -- não ser, portanto, tão "masculino" assim só por ser cão.
Não é só que os cães não se encaixam nesses estereótipos: é idiotice vincular a idéia de macho com qualidades como "leal" e "descomplicado". É idiotice esperar que as pessoas sejam qualquer coisa  só por seu gênero.
(E, no entanto, é isso que as pessoas inconscientemente fazem o tempo todo, até quando simplesmente vestem seus filhos de azul e as filhas de rosa.)

Laerte retorna nesta segunda tira a um assunto recorrente seu -- a representação de gêneros e sua inadequação frente às sutilezas do ser humano. (Ainda vou fazer um post gigantesco sobre a abordagem "laertiana" da homossexualidade. Na verdade, se  eu tiver tempo e saco de levantar e ler uma bibliografia mínima sobre o assunto das representações de gênero, ainda vou escrever um artigo a respeito).

 Laerte instabiliza espaços meio "seguros".Usando um espaço tradicionalmente brando e familiar -- as tirinhas de jornal --  e tomando como objeto algo também familias -- os cães -- ele elabora pequenas charadas para cutucar partes de nosa personalidade que nem sabíamos possuir.
Coisa, com o perdão da palavra, de artista.

3 comentários:

Unknown disse...

Adorei.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Gabriel, acho que esse é um dos seus melhores textos da nossa infindável série sobre o Laerte. De fato, se houvesse carteirinha, nós a teríamos. Eu tinha visto a série dos cães, acho que tinha até comentado contigo, e a idéia que eu pretendia ilustrar com uma delas tinha mais ou menos a ver com o que você escreveu a respeito da primeira tirinha. A que eu havia selecionado era essa:
http://verbeat.org/blogs/manualdominotauro/assets_c/2010/04/LAERTE-19-03-10-thumb-600x189-6616.jpg

Era o seguinte: não tinha pensado na relação entre mendigos e seus cães, mas na origem da subserviência canina. A coisa entre cães e mendigos provavelmente é a coisa mais próxima do início da relação entre as espécies, e que levou à domesticação dos lobos.

Quanto a isso, Dawkins apresenta uma teoria muito interessante em seu último livro "O maior espetáculo da Terra". O autor da idéia é Raymond Coppinger.

A tese é a de que boa parte da domesticação do cão foi um processo de autodomesticação, mediada mais pela seleção natural do que qualquer outra coisa. O raciocínio é o que segue:

"Cães de povoado", como os cães de mendigos do terceiro mundo, se alimentam de restos em depósitos de lixo. Os lobos não fazem o mesmo porque não frequentam, naturalmente, os monturos humanos. Isso ocorre, principalmente, porque os lobos guardam uma grande "distância de fuga", isto é, uma distância a partir da qual eles se sentem seguros para observar e fugir, se necessário. Quando encontramos um animal comendo, podemos medir a "distância de fuga" ao verificarmos o quanto o animal permite que nos aproximemos sem fugir.

Os indivíduos que fogem tarde demais correm o risco de ser mortos pelo risco que se aproxima - os que fogem cedo demais nunca fazem boas refeições porque sempre fogem ao menor sinal de risco.

Lobos, como todos os animais, têm uma distância ótima de fuga. Obviamente essa distância varia, entre a timidez excessiva e a ousadia total. Em condições "naturais", a média dessa distância é a distância ótima de fuga.

A partir do momento em que surgem os grupamentos humanos, os lobos que tinham uma distância de fuga menor poderiam se alimentar dos restos humanos, e isso representou uma vantagem. A distância ótima de fuga foi diminuída até que permitiu a um grupo conviver de fato com os grupos humanos.

Coppinger conclui que as primeiras relações entre homens e lobos eram provavelmente hostis, e portanto, o processo de domesticação não teria começado por seleção artificial, mas pela seleção natural daqueles indivíduos que fossem, ao mesmo tempo "ousados e dóceis" - claro, lobos que se aproximassem demais e atacassem seriam mortos.

Desde então (e isso ja faz tempo), os cães evoluíram bastante, e o seu abandono dificilmente representa uma volta à condição selvagem - o que seria uma desvantagem no modo de vida urbano. Dessa forma, me parece que a relação mendigos x cães se assemelha à essa relação primordial entre os primeiros lobos domesticados e grupos humanos que obtinham as vantagens da proteção territorial, alarme, etc...enfim, me lembrei disso.

Quanto à segunda tirinha, você está coberto de razão na interpretação. O aniversário do blog tá chegando e a gente precisa planejar a entrevista com o Laerte. Essa tirinha do cão gay, como sabemos, não é coisa inédita no universo do Laerte, mas a abordagem da imagem que os homens projetam nos animais para discutir o tema sim...Laerte é genial.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Quanto à participação dos cães no mundo do Laerte, acho que só ficam atrás dos gatos por conta "dos gatos". Tirinhas eventuais foram várias, mesmo antes dessa última série, que é ótima:

http://verbeat.org/blogs/manualdominotauro/caes/

Mas assim como você lembrou da Selina, eu me lembrei do Roni:

http://wrevolta.blogspot.com/search?q=laertando

Parece que o Laerte personifica menos os cães do que faz com os gatos.