segunda-feira, 3 de maio de 2010

Nostalgia

(por Gabriel)


Faz tempo que tenho burilado um texto sobre Frank Miller  -- ou melhor, sobre o quão fuleiro e preguiçoso esse autor/celebridade/guru "pop" e "cult" dos quadrinhos tornou-se desde fins da década de noventa. Quem leu meus textos anteriores sobre adaptações das obras dele pro cinema (Sin City e 300) já viu um prenúncio disso.

Mas este post não é desse sobre isso. É sobre quão bom Miller já foi.
Mais do que virtuose do desenho, Miller era um excelente narrador, que construía histórias e cenas de forma inteligente, inovadora e tensa. Para exemplo de que Miller já deu no couro, peguei uma cena que sempre gostei muito, da história "Born Again" (que aqui foi publicada com o nome "A Queda de Murdock")


Eu poderia pegar trechos fantásticos de Roninde Elektra Assassina ou de Elektra Vive, Hqs na qual Miller teve liberdade criativa e gráfica, para ilustrar o melhor de Miller. E talvez eu ainda o faça... mas, ao invés de ir logo no filé, achei mais legal colocar esta HQ abaixo. Isso porque o trecho tem as seguintes características:
  • não foi desenhado por Miller, mas por David Mazzuchelli (um cara muito, muito bom, mas relativamente discreto em suas habilidades), de maneira que dá pra separar bem o que é o traço do autor e o que é a "arquitetura" narrativa proposta por ele;
  • foi feito não em uma "graphic novel" ou qualquer formato de HQ que costume receber reverência ou que permita maiores liberdades artísticas, mas no interior de uma ordinária revista seriada de super-herói  -- no caso, do Daredevil (aqui, "Demolidor", herói que rendeu um filme horrível com Ben Affleck). Pra quem não sabe, na década de 80 a qualidade gráfica de um gibi de super-herói (sem falar da qualidade temática) era muito mais limitada do que hoje (é só ver a paleta muito limitada e plana de cores, sem os degradês computadorizados que hoje são feijão com arroz). Assim, fez-se um ótimo trabalho partindo-se de consideráveis limitações de espaço, de tempo, de conteúdo e de impressão.
  • É um trecho consideravelmente simples do ponto de vista do "lay-ouy", e se adapta muito bem ao formato "barra de rolagem" do blog. Originalmente, a seqüência se estendia por quatro páginas; aqui, eu as juntei todas numa única faixa contínua -- que, na minha opinião, funcionou.
Resuminho da história anterior à cena: 
O personagem central desta cena é o jornalista Ben Urich, que trabalha no Dayly Bugle (o" Clarin Diário", aquele jornal no qual o Homem-Aranha trabalha, lembram?). Um amigo de Urich e protagonista da história toda, Matt Murdock (o Daredevil, Demolidor), foi incriminado injustamente e desapareceu. Urich estava investigando a armação, e ia entrevistar um policial corrompido, o qual iria "entregar o jogo" sobre seu envolvimento com um grande mafioso, o Kingpin ("Rei do Crime"), na empreitada de destruir Murdock. No meio da conversa com este, no estacionamento de um hospital, uma imensa enfermeira surge (a mesma que aparece no trecho abaixo). Deixando claro que trabalha para Kingpin, ela  mói o policial cagüeta de porrada e quebra os dedos da mão direita de Urich (ameaçando fazer bem mais caso ele não fique quieto).

Desde então, o policial ficou hospitalizado e inconsciente; e Urich, em estado de choque, vive apavorado e não consegue trabalhar direito, ao mesmo tempo que não consegue falar a ninguém sobre o que ocorreu.

Então, numa tarde na redação do Clarin, o telefone toca na mesa de Ben Urich...



















(desculpem não conseguir uma versão em português. Eu tentei muito!)



Notem que a cena tem uma clara inspiração cinematográfica -- notável no close gradual que retrata o progressivo alheiamento do protagonista em relação ao seus colegas e ambiente de trabalho na cena, isolado por seu terror. 
Ainda assim, a despeito do efeito "cinematográfico", esse trecho se vale de um tipo de simultaneidade temporal simplesmente impossível para o cinema. Me refiro aqui às várias conversas no interior do Jornal. Tente imaginar essas conversas ocorrendo ao mesmo tempo num filme: seria necessário se valer de estratégias narrativas fragmentárias que, mesmo que ficassem interessantes, quebrariam a progressão.
A maneira como as conversas paralelas  e simultâneas se conectam ao andamento da trama central da cena -- o assassinato "testemunhado" por telefone -- é o tipo de pequena "poesia" que os cabras muito bons dos quadrinhos sabem oferecer. 


Infelizmente, Miller é hoje um autor muito menos inteligente e interessante do que já foi. E, como disse, pretendo falar mais sobre isso no futuro.

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