quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

um totalitarismo satisfatório


O "digital" segundo Vilém Flusser (grifos meus):
(...) pode-se perguntar o que acontece, em termos existenciais, quando pressiono uma tecla. O que ocorre quando pressiono uma tecla na máquina de escrever, no piano, no aparelho de televisão, no telefone. (...) Eu escolho uma tecla, decido-me por uma tecla. (...) As pontas dos dedos são órgãos de uma escolha, de uma decisão. O homem emancipa-se do trabalho para poder escolher e decidir.

(...) Essa liberdade das pontas dos dedos, sem mãos, é no entanto inquietante. Se coloco o revólver contra minhas têmporas e aperto o gatilho, é porque decidi pôr termo à minha própria vida. Essa é aparentemente a maior liberdade possível: ao pressionar o gatilho, posso me libertar de todas as situações de opressão. Mas, na realidade, ao pressioná-lo, o que faço é desencadear um processo que já estava programado em meu revólver. Minha decisão não foi assim tão livre, já que me decidi dentro dos limites do programa do revólver. E, igualmente, do programa da máquina de escrever, do programa do piano, do programa da televisão, do programa do telefone, do programa da máquina fotográfica. A liberdade de decisão de pressionar uma tecla com a ponta do dedo mostra-se como uma liberdade programada, como uma escolha de possibilidades prescritas.

(...) é como se a sociedade do futuro, imaterial, se dividisse em duas classes: a dos programadores e a dos programados. (...) Mas essa visão parece ser muito otimista. Pois o que os programadores fazem quando pressionam as teclas para jogar com símbolos e produzir informações é o mesmo movimento de dedos feitos pelos programados. Eles também tomam decisões dentro de um programa, que poderíamos chamar de “metaprograma” (...). Não: a sociedade do futuro, imaterial, será uma sociedade sem classes, uma sociedade de programados programadores. Essa é portanto a liberdade de decisão que nos é aberta pela emancipação do trabalho. Totalitarismo programado.

Mas trata-se certamente de um totalitarismo extremamente satisfatório, pois os programas são cada vez melhores. Ou seja, eles contêm uma quantidade astronômica de possibilidades de escolha que ultrapassa a capacidade de decisão do homem. De modo que, quando estou diante de uma decisão, pressionando teclas, nunca me deparo com os limites do programa. São tão numerosas as teclas disponíveis que as pontas dos meus dedos jamais poderão tocá-las todas. Por isso tenho a impressão de ser totalmente livre nas decisões. O totalitarismo programador, se estiver algum dia consumado, nunca será identificado por aqueles que dele façam parte: será invisível para eles. Só se faz visível agora, em seu estado embrionário. Somos talvez a última geração que pode ver com clareza o que vem acontecendo por aqui.

Vilém Flusser, A não-coisa (2) , In FLUSSER, O Mundo codificado, 2007, pp.63-65.
Traduzido por Raquel Abi-Sâmara do original Das Unding, 2”, publicado em 1990.



Não lembro se já citei aqui; mas O Mundo codificado foi o livro mais interessante que li em 2008, e não me saiu da cabeça até agora. E olha que a maior parte dos ensaios do filósofo Tcheco naturalizado brasileiro foi escrita há mais de 20 anos (como o trecho acima, por exemplo).



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2 comentários:

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Interessantíssimo, vou procurar.

O mais louco é que hoje, você tem programas escrevendo programas e buscando soluções para problemas de programação que nem os próprios programadores poderiam antecipar, dada a complexidade dos softwares atuais.

Gabriel G; disse...

"Quantidade astronômica de possibilidades de escolha que ultrapassa a capacidade de decisão do homem", de maneira que "não se depara com os limites do sistema"...

...Qualquer semelhança com a liberdade de consumo, com a "sociedade de controle" do Fucô ou com the matrix não é mesmo mera coincidência.