sexta-feira, 11 de setembro de 2009

A consciência da Morte

O número de julho me pareceu meio fraquinha, mas a Piauí de agosto estava particularmente interessante para discussões religiosas.

Um texto que me champou MUITO a atenção foi este aqui: A consciência da Morte, de Julian Barnes.

Um trecho abaixo, com grifos meus:

A religião costumava oferecer consolo para as dificuldades da vida, e recompensa, no fim, para os fiéis. Mas, acima e além destes agrados, ela dava à vida humana uma noção de contexto, e, portanto, de seriedade. Ela fazia as pessoas se comportarem melhor? Às vezes sim; às vezes não; fiéis e infiéis têm sido igualmente criativos e maus em sua criminalidade. Mas ela era verdadeira? Não. Então por que sentir falta dela?

Porque ela era uma ficção sublime, e é normal a pessoa ficar triste ao fechar um grande romance. Na Idade Média, costumavam mandar animais a julgamento - gafanhotos que destruíam plantações, carunchos que destruíam as vigas das igrejas, porcos que jantavam bêbados caídos na sarjeta. Às vezes, o animal era levado ao tribunal, às vezes (como acontecia com insetos) era julgado necessariamente
in absentia. Havia um julgamento completo, com promotoria, defesa e um juiz de toga, que podia ordenar uma variedade de punições - liberdade condicional, banimento, inclusive excomunhão. Às vezes até mesmo execução judicial: um porco podia ser enforcado por um funcionário do tribunal de luvas e capuz.

Tudo isso parece - agora, para nós - incrivelmente estúpido, uma expressão da incompreensível mente medieval. Entretanto, era perfeitamente racional e perfeitamente civilizado. O mundo foi feito por Deus, e, portanto, tudo o que acontecia nele ou era uma expressão do desígnio divino ou uma consequência do livre-arbítrio que Deus concedeu à Sua criação. (...)

Para nós, isto pode parecer mais uma prova da engenhosa bestialidade humana. Entretanto, há outra maneira de interpretar: como uma elevação do
status dos animais. Eles eram parte da criação de Deus e dos desígnios de Deus, não simplesmente colocados na terra para prazer e uso do Homem. As autoridades medievais levavam os animais a julgamento e avaliavam seriamente seus atos criminosos; nós colocamos animais em campos de concentração, os enchemos de hormônios, e os retalhamos de forma que eles nos façam lembrar o mínimo possível de algo que um dia grasnou ou baliu, ou mugiu. Qual dos mundos é o mais sério? Qual o mais avançado moralmente?

(...)

Encorajamos as pessoas a caminhar na direção do paraíso moderno da autorrealização: o desenvolvimento da personalidade, os relacionamentos que ajudam a nos definir, o emprego que dá status, os bens materiais, a posse de propriedades, as férias no estrangeiro, a poupança, a acumulação de façanhas sexuais, as visitas à academia, o consumo de cultura. Tudo isto resulta em felicidade, não é? Não é? Este é o mito que escolhemos, e quase tão ilusório quanto o mito que insistia em realização e êxtase quando a última trombeta soasse e os túmulos se abrissem, quando as almas curadas e perfeitas se juntassem à comunidade de santos e anjos.

Mas se a vida é vista como um ensaio, ou uma preparação ou uma antessala, ou seja lá qual for a metáfora que escolhermos, mas, de todo modo, como uma coisa contingente, uma coisa que depende de uma realidade maior que está em outro lugar, então
ela se torna ao mesmo tempo menos valiosa e mais séria. Aquelas partes do mundo onde a religião desapareceu, e onde existe um entendimento geral de que este curto espaço de tempo é tudo o que temos, não são, de modo geral, lugares mais sérios do que aqueles onde cabeças ainda se inclinam ao soar o sino da catedral ou ao muezim no minarete. De forma geral, elas se rendem a um materialismo frenético; embora o engenhoso animal humano seja capaz de construir civilizações em que a religião coexiste com o materialismo frenético (em que a primeira pode até ser uma consequência do segundo): vejam a América.

E daí, você poderia responder. Tudo o que importa é a verdade. Você preferiria curvar-se diante de uma besteira e perverter a sua vida ao capricho do clero, tudo em nome de uma suposta seriedade? Ou preferiria erguer-se em toda a sua estatura anã e realizar todos os seus desejos triviais em nome da verdade e da liberdade? Ou esta é uma oposição falsa?

(...)
Talvez a divisão importante não seja entre religiosos e irreligiosos, mas entre aqueles que temem a morte e aqueles que não temem. Caímos, portanto, em quatro categorias, e fica bem claro quais são as duas que se consideram superiores: os que não temem a morte porque têm fé, e aqueles que não temem a morte apesar de não terem fé. Estes grupos estão no plano mais alto da moral. Em terceiro lugar, vêm aqueles que, apesar de terem fé, não conseguem se livrar do medo antigo, visceral, racional. E finalmente, fora do quadro de medalhas, abaixo da média, mergulhados na lama, vêm aqueles que temem a morte e não têm fé.


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