Estou há algum tempo sem colocar nada no blog. Tinha alguns assuntos engatilhados, mas não os postava porque havia algo que eu queria fazer antes – algo que era trabalhoso e doloroso, e por isso eu continuava evitando.
Mas percebi que, não importa se são uma semana ou dois meses, não vou conseguir escrever algo à altura do que queria. E, enquanto eu não escrever isto, não vou conseguir escrever mais nada.
Nunca fui num funeral na minha vida até sábado passado. Essa “lacuna” em minha experiência, por sua vez, deu-se na pior circunstância possível: na morte de um ente querido.
Meu avô faleceu na última sexta-feira, 27 de março.
Edvard Elias de Souza, o meu Vô Vadinho, foi uma das pessoas mais extraordinárias que já conheci, e certamente uma das principais referências da minha vida.
Após pensar muito — ou melhor, pensar o quanto eu me permiti pensar, porque admito que desde que seu caixão foi para baixo da terra eu tenho evitado pensar nele — percebi que o que quer que eu pudesse falar do meu avô nesse momento seria insuficiente. Mas mesmo antes eu tinha idéia de fazer um livro sobre meu avô, e pretendo fazê-lo. Todavia, descobri algo previsível — que pensar sobre ele era mais fácil quando eu sabia que podia conversar com ele, mesmo que eu não fosse efetivamente lá falar com ele.
Irei falar então algumas pequeninas coisas a respeito de meu querido avô. Não são nem de longe as necessárias para se saber quem ele era, ou para se fazer uma real homenagem.
Não. Estas são algumas das minhas impressões de neto; algumas das coisas de meu vô que me tocaram na qualidade de neto e que ainda tocam a criança envolvida pelas várias camadas de idade, experiência e cinismo.
Meu avô era ao mesmo tempo agitado e reservado. Nunca conheci alguém que fosse tão excêntrico e, ao mesmo tempo, tão sólido e responsável.
Meu vô tinha uma xícara e um prato que eram só dele, e eram diferentes dos de todos que sentavam à mesa. Sempre era o último a sentar e o primeiro a sair da mesa; sempre se sentava no mesmo lugar; sempre comia as mesmas coisas, e muito pouco. Beliscava comidinhas e docinhos o dia todo.
Meu vô tinha cumprimentos especiais para seus netos quando éramos crianças, e chamava minha avó com um assovio particular que até hoje consigo imitar.
Meu avô colecionava ferro-velho, metódica e obsessivamente. Ele raramente dava algum uso àquilo; só via coisas interessantes e as levava, e ia acumulando na casa. Algumas coisas ele estudava, recuperava ou usava. A maioria não. Mas não jogava nada fora. E sim, as casas começavam a não ter mais espaço para as pessoas.
O que eu quero dizer com ferro-velho? Bem TUDO o que se pode achar num ferro-velho – desde livros a quilo até carcaças de carro, ou seja, tudo o que se joga fora sem se jogar no lixo.
Eu poderia escrever um livro sobre as coisas que encontrei nas casas dele durante minha vida. Provavelmente vou escrever. (a título de exemplo: na área lateral da antiga casa dele havia, entre outros carros, 2 romisetas e uma estranha caminhonetezinha de 3 rodas, para um só pessoa. Até hoje não sei que veículo era aquele).
Meu vô tinha pouquíssimo senso estético no que se refere a arrumar as coisas; ele simplesmente as acumulava. Mas tinha um senso funcional fantástico. Era um exímio faça-você-mesmo, um inventor nato. Consertava, encaixava, montava, acoplava, traquitanava, enfim: inventava e improvisava.
Quando eu tinha uns 7 anos, ele fez uma espada Jedi para mim com um pedaço de cabo de vassoura (devidamente polido para ter um formato mais ergonômico para a mão) e uma antena de carro embutida neste.
Quando começou a se interessar por computadores, ele comprou várias carcaças de modelos diferentes, as quais ficava desmontando e observando. Queria “entender como funcionava” ao invés de só ficar usando.
O primeiro videogame que joguei (e no qual viciei), ainda aos 5, 6 anos, foi um Odyssey comprado pelo meu avô. Meu jogo preferido era “Didi na Mina de Ouro”. Meu avô também jogava, e era um craque nesse jogo. Falava que eu era o Rei desse joguinho, mas que ele era o Papa.
Às vezes, mu avô assistia desenhos e afins com os netos. Gostava de Dragon Ball Z e do desenho do Jackie Chan. Era possível conversar com ele sobre Majin-boo, Vegeta e Goku (não que eu tenha feito isso; nessa época eu mesmo era velho demais para abertamente ficar mostrando conhecimento sobre uma animação tão vagabunda). Foi meu avô que me chamou a atenção, quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, para o fato de que a trilha sonora de Jaspion tinha um bom naipe de metais. Até então eu nem sabia o que era um naipe de metais.
A maior parte de meu repertório de quadrinhos de super-heróis veio dos montes de revistas que meu vô comprava de uma vizinha, as quais eram refugos das bancas cujas capas são enviadas de volta às editoras para controle. Até hoje acho estranho o fato de revistas formatinho terem capas.
Meu avô tinha centenas de manias e nenhuma frescura.
Meu vô era assustador quando ficava bravo, sem precisar chegar a bater ou insultar.
Meu avô gostava de brincadeiras e trocadilhos. Assim como a inteligência e a melancolia do tipo deixem-me-no-meu-canto, o senso de humor terrivelmente infame é uma de suas heranças.
Meu avô cursou direito, sociologia e odontologia. Sabia pilotar avião, trabalhou como dentista e se aposentou como fiscal da Receita federal.
Meu avô andava de moto até poucos anos atrás. Não há a mínima, menor, ínfima possibilidade de eu olhar e pensar em uma moto ou em uma lambreta sem me lembrar dele.
Meu vô era um homem ativo, inquieto, e também atlético. Eu o via como um homem muito forte e saudável e tinha orgulho de ter um avô assim. Por outro lado, a decadência física dos últimos anos talvez fosse para ele um peso grande, justamente por ser fisicamente muito ativo. Acho que era um peso bem maior do que seria, por exemplo, para mim.
Ou assim quero pensar. Mas sei que o enfraquecimento dele era meio doloroso para mim.
E sempre achei que ele viveria bem mais que setenta e sete anos.
Eu amava meu avô e nunca disse isso pra ele.
Mas ele também nunca disse que me amava, e isso nunca me impediu de ter a mais absoluta convicção de que isso era um fato.
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3 comentários:
Encheu meus olhos d'agua, irmão.
Pra falar a verdade... os meus também, juju.
Que bom que você leu. Fiquei feliz.
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