quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Inveja mata


(Mais um de meus flashbacks de arquiteto...)
Abaixo, a reprodução itegral da reportagem da Revista AU (Arquiteura e Urbanismo):

João Sayad cogitou chamar jovens arquitetos para o projeto da Companhia de Dança
Em entrevista à AU, João Sayad explica como foi o processo de escolha de Herzog & de Meuron e porque não quis abrir um concurso
A contratação de jovens arquitetos brasileiros foi a primeira opção de João Sayad, Secretário da Cultura do Estado de São Paulo, para o projeto do edifício da Companhia de Dança. Com 15 mil m² de terreno e previsão de 30 mil m² construídos, a edificação será erguida no quarteirão em que hoje se localiza a antiga rodoviária paulistana, na região da Luz. Mas, no final, venceu a opção por arquitetos estrangeiros com notório saber. Herzog & de Meuron vão assinar o projeto do teatro, decisão divulgada dia 4 de novembro e que levantou debates entre os arquitetos por todo o País.
João Sayad defende a decisão do governo e conta que, para contratar um jovem arquiteto, seria necessário abrir um concurso. "Fizemos uma grande pesquisa com os jovens arquitetos, muitos escritórios foram mencionados por professores da FAU (FAUUSP), do Mackenzie (Universidade Presbiteriana Mackenzie). Mas não posso contratar um arquiteto nacional jovem, que não tenha notoriedade, sem um concurso", explica.
E por que não fazer um concurso? Segundo Sayad, o projeto deve seguir os estudos da consultoria Theatre Projects Consultants (TPC), contratada pelo governo do estado. De acordo com a mesma consultoria, a escolha do arquiteto deveria levar em conta sua capacidade de adaptação às exigências do programa para o teatro. "Porque um teatro é uma obra significativa para o arquiteto e na maioria dos exemplos que a gente conhece o arquiteto acaba comprometendo essas características", diz Sayad. Questionado se o vencedor do concurso não poderia seguir as características exigidas pelo TPC, Sayad defende dizendo que se excluiu a idéia do concurso porque o vencedor passa a ser o dono da obra. "E nós queríamos que o dono da obra fossem os usuários do teatro. A negociação do projeto vencedor seria muito difícil, justamente porque ele ganhou. Mesmo que seja possível, o vencedor tem uma força muito ativa que podia fazer com que o teatro perdesse em favor do arquiteto".
Rejeitando a possibilidade de se abrir um concurso, o governo do estado convidou quatro escritórios estrangeiros: Pelli Clarke Pelli, Norman Foster, OMA (Rem Koolhaas) e Herzog & de Meuron, que fizeram estudos e apresentaram suas propostas e trabalhos a uma equipe do estado de São Paulo. "Não foi uma escolha feita sem critério, a lei de licitação pública permite contratar um profissional notável", explica, adicionando que entre os notáveis brasileiros estariam Paulo Mendes de Rocha e Niemeyer. "E eles já fizeram muito por aqui. Então, partimos para o estrangeiro, onde existem notáveis que não conhecíamos. É uma tarefa da Secretaria da Cultura trazer solistas estrangeiros, artistas estrangeiros. Por que não um arquiteto estrangeiro?", questiona.
Polêmicas à parte, resta esperar os primeiros desenhos da equipe suíça. O projeto arquitetônico deve ser entregue em março de 2009.




Ora, ora. Não poderíamos ser sinceros?
Porto Alegre tem um Álvaro Siza.
Rio de Janeiro vai ter seu Christian de Portzamparc.

Porque São Paulo, a maior e mais rica cidade do Brasil, não pode ter sua própria grande obra premiada internacionalmente de um escritório do Star System mundial? Ninguém vê quão visionária é essa secretaria, ao chamar os arquitetos do Estádio de Pequim? Não percebem o quanto essao obra pode contribuir para tornar São Paulo uma Cidade Mundial?

É claro, A Fundação Iberê Camargo, que encomendou o museu de Siza, não é uma instituição pública. Detalhes, mero detalhes, o que importa é o bom impacto sobre a cidade (e o mundo).

É claro, sobre a Cidade da Música de Portzamparc no Rio e seus já 6 anos de construção paira a suspeita de um poço sem fundo e lamacento de desvio de verbas. Mas convenhamos, senhores: sabemos da morosidade do funcionamento do Estado no Brasil (os paulistanos dirão: "ora, trata-se do Rio de Janeiro!"). Quem dera fosse uma iniciativa privatizada, mas fazer o quê! Cultura é Cultura. Tenham um pouco de visão de longo prazo, ora essa!

São Paulo não pode continuar a se remoer de inveja, logo ela que é tão próspera, tão arrojada, tão trabalhadora! Como sabemos, inveja mata. E são Paulo tem de dar, não ter.

Só a modéstia mesmo impede a secretaria de declarar suas justificadas intenções, ora. Modéstia e o conhecimento de quão provincianos, atrasados, egomaníacos, protecionistas, corporativistas (e, por que não, petistas!) são os nossos arquitetos — e as nossas leis para licitações públicas dessa natureza.

http://www.bdonline.co.uk/Pictures/web/t/x/n/Herzog_de_Meuron.jpg
(Aqui a dupla suíça que fez o Estádio de Pequim... e pode fazer um negocião em São Paulo.)


Bom, deixando a ironia exacerbada, vamos às coisas sérias.

Nada contra um projeto de astros estrangeiros. Adoraria ver um Herzog & de Meuron no país – desde construíssem algo uns 70% financiado por dinheiro PRIVADO (porque 100%, no Brasil, é fantasia. Onde está o arrojo e visionarismo de nosso empresariado, hein?). Ou que sua presença fosse resultado de um concurso internacional, no qual escolhessem os participantes pela qualidade do projeto, e não pelo renome.

Mas o que ofende mesmo, o que deveria ser inaceitável a uma espécie tão orgulhosa e ciosa de sua própria capacidade intelectual, é o quanto a argumentação do secretário da cultura para evitar um concurso é insultosa aos arquitetos e, em especial, à inteligência alheia.
Porque é, com o perdão da coloquialidade, uma sucessão mal articulada de conversas-para-boi-dormir.

O secretário começa falando que o objetivo inicial era de “contratar arquitetos brasileiros jovens”. Em nenhum momento ele explica porque, antes de chegar a “arquitetos estrangeiros” a escolha não passou pelo passo natural de “arquitetos brasileiros EXPERIENTES”. O que não deixa de dar a impressão que este primeiro argumento teve como único objetivo angariar alguma simpatia do leitor: “puxa vida, eles tentaram mesmo se preocupar com o incentivo à arquitetura brasileira!...".

"(...)um teatro é uma obra significativa para o arquiteto e na maioria dos exemplos que a gente conhece o arquiteto acaba comprometendo essas características"
U-A-U. De quais exemplos ele está falando?
Atenção, crianças: toda vez que alguém fala no sagrado nome de ninguém -- "a gente conhece" ou "todo mundo sabe que" ou "na maioria das vezes" -- há sério risco de enrolação chegando.

"E nós queríamos que o dono da obra fossem os usuários do teatro. A negociação do projeto vencedor seria muito difícil, justamente porque ele ganhou. Mesmo que seja possível, o vencedor tem uma força muito ativa que podia fazer com que o teatro perdesse em favor do arquiteto".
Palmas, palmas, palmas. Que ardorosa defesa dos interesses públicos contra o ego inflado dos arquitetos, esses parasitas!
Nos últimos dois trechos, o secretário simples e licensiosamente chamou todos os arquitetos brasileiros (ou só os paulistas?) de prima-donas egocêntricas. E, se se queixarem disso... então será porque são mesmo vaidosos corporativistas, provincianos, até invejosos. Afinal, quem deles ousa se declarar do nível de Herzog & de Meuron?
Não que não haja quem não mereça a alcunha, muito pelo contrário... mas o respeito para com a categoria profissional demonstrado aqui é simplesmente nulo. Trata-se de simples e sincero preconceito ou estão tentando pegar carona no senso-comum popularesco e preconceituoso a respeito dos arquitetos?

Algumas dúvidas que surgem diante da situação apontada:

Pergunta(s) 1: o vencedor de um concurso não tem que obedecer a nenhuma exigência externa? Como assim “vira dono do projeto”? Não haveria nenhuma maneira de fazê-lo seguir as exigências dessa tal “Theatre Projects Consultants” (TPC)?

Pergunta 2: qual a garantia de que Herzog & de Meuron, sendo estrelas mundiais e senhores de “notório saber” na área de construção de teatros, vão se subordinar às exigências dessa “Theatre Projects Consultants”?

Pergunta 3: Quem é essa “Theatre Projects Consultants”? Quais foram as condições de sua contratação e do estabelecimento de seu domínio sobre o projeto futuro? E afinal, quais são esses estudos tão especializados e tão restritivos a ponto de serem a) postos em perigo pelos incivilizados e "estrelinhas" arquitetos brasileiros e b) tão fortes que até um "doutor honoris causa" em teatros como o escritório de Herzog & de Meuron teria que se curvar às suas exigências?


Mas o argumento final é, sem tirar nem por, a cereja do Sunday.

http://veja.abril.com.br/241104/imagens/veja_essa1.jpg
“É uma tarefa da Secretaria da Cultura trazer solistas estrangeiros, artistas estrangeiros. Por que não um arquiteto estrangeiro?”


Ora, todos agradeceríamos muito uma presença maior de arquitetos estrangeiros: em palestras, exposições, consultorias, júris de concursos para obras públicas...


O secretário certamente leva jeito para o humorismo. Do tipo que é feito às custas dos outros.


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Um comentário:

Anônimo disse...

perfeita a análise