Entre nós hoje em dia costuma vigorar predominantemente a idéia de arte como expressão: a expressão única de uma individualidade única, etc. atc. Aquilo que você, e apenas você, ente criativo, tem a dizer ao mundo... o que, na minha opinião, é reducionista.
Até autores inteligentíssimos como Scott Mcloud parecem dar certa predominância à arte-expressão individual (o que é normal sendo ele americano e, principalmente, falando ele para o público americano. Na minha cara-de-pau de falar sobre o que não sei, devo dizer que tenho a impressão de que essa idéia é predominante nos EUA desde o domínio do expressionismo abstrato, estabelecido há décadas atrás)
Bom, não é que a arte não seja isso. Só acho que isso não seja o seu primordial, sua “essência”. É mais uma questão de ênfase.
A questão da arte – e Adorno era um cara que compreendia isso – é, acima de tudo, da construção de um embate com o real. O Embate com a própria realidade, através do jogo direto com a linguagem, os sentidos e os significados – afinal, não há para nós qualquer realidade que não seja conhecida e vivida impregnada por essas mediações. Para esse embate, é necessária a “sagrada mentira” da arte, é necessário criar um espaço de autonomia.
A questão da autonomia da arte é tremendamente mal-compreendida. Toda vez que vejo gente reclamando de “torres de marfim” ou de que Adorno falava mal do jazz eu penso: putaquepariu, mais um que fala sobre o que não entendeu.
Li uma coisa recentemente que me chamou atenção para essa questão da má-compreensão do aspecto de “expressão pessoal” da arte, assim como me forneceu um exemplo esclarecedoramente “doméstico” de significados mais profundos de “autonomia”.
Numa inesperada entrevista com a artista plástica Adriana Varejão numa revista de generalidades “femininas” (moda-celebridades-saúde-boa forma e o caralho), a última pergunta da repórter lhe indagava se, depois de ter se tornado mãe, o trabalho dela tinha se tornado mais... “delicado”.
(detalhe: o trabalho de Varejão é, com freqüência, contundente e pertubador. Vide a imagem abaixo...)
Sem dizer sim ou não – que é o que menos interessava nessa situação – Varejão respondeu que não era assim que funcionava: seu trabalho não se relacionava diretamente com sua vida cotidiana, mas dialogava e bebia de “outras instâncias”. Na verdade, ela dizia, era seu trabalho que influenciava sua vida, que levava sua vida junto com ele, e não o contrário.
Ou seja, ela não aceitou a visão típica de revista-burguesa-genérica de que sua arte seria a “expressão” de uma “interioridade” formada em sua vida íntima – como se fosse ela alguma socialáite a descobrir um súbito amor pelo artesanato -- mas um campo outro, autônomo, de existência sua.
Pra gente ver que vale apena ficar atento a tudo. Quem esperaria achar uma resposta preciosa e direta dessas numa entrevistinha “de artista” numa revistinha vagabunda?
3 comentários:
Uma correção: fui olhar de novo, e não é uma revistinha tão vagabunda, afinal; é apenas uma revista, como eu disse, de "generalidades" (com trocadilho).
É a edição de setembro de 2006 da revista ELLE.
Muito bom, Gabriel! É incrível como a arte tem mesmo esse lugar comum de tradução do
"subjetividade de nosso eu interior" - isso na melhor das hipóteses! Pior é confundir arte com artesanato, terapia ocupacional e decoração... :)
Interessante.
Lembro de fragmentos dessa discussão. Me impressiona também que hoje, décadas depois dos movimentos modernistas ainda se procure maneiras de rotular e enquadrar tudo dentro de gavetas. Acaba levando os artistas "free spirited" a dar sempre essa mesma resposta repudiando a metodificação das artes (aliás, essa sendo justamente a diferença de arte e artesanato citada pelo amigo aí em cima).
belo texto
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