domingo, 25 de fevereiro de 2007

Evolução, liberdade e processo histórico em V de Vingança. Ah, e sexo.


(escrito uns três meses depois de ver o filme, e complementado agora)

Vamos lá: uma pequena comparação entre filme adaptado e a história em quadrinhos original. Se você sentir cheiro de “nietzchezinhices” por aí, não se importe.
(Espero que convença quem ainda não leu o original a se aventurar por ele...)

Já vi alguns (e talvez muitos estejam com eles) defenderem que o "essencial" da obra original está lá no filme.
Discordo.
Porque para mim, algo essencial a várias obras de Moore e em especial a essa é a idéia de evolução. E essa idéia some no filme.
A evolução até a liberdade.
Vejamos alguns poucos pontos que ilustram a evolução e a liberdade, através de três personagens:
EVE (a Natalie Portman do filme...)
Na HQ, a evolução de Eve até a liberdade é impressionante, e é o centro da história. O filme tenta reproduzir alguns momentos disso, mas se preocupa muito em fazer de Eve um contraponto à frieza “terrorista” de V... no filme, Eve é formada e "opinosa" demais. Não tem a fragilidade quebradiça, desamparada e infantil da menina de Moore, que começa a história praticamente sem ter personalidade própria. Não é à toa que, no original, ela começa a história não “passeando” à noite, mas tentando se prostituir. Tentando vender-se em troca de alguma segurança a mais. E é nesse ato desesperado que ela falha miseravelmente, é abordada por policiais e salva pelo sombrio e carismático V.
Coisa simples que o filme não ousou. Aliás, é bom frisar logo agora: há uma certa “castidade” no filme, um pudor típico da indústria do cinema (na qual sexo raramente é coisa “normal”: ou é sedução-propaganda, ou perversão, ou violência, ou omissão). Eve permanece casta e pura, o filme inteiro; passa alguns dias na casa de seu chefe homossexual que não a toca, e que é morto pelo governo. Na HQ: tem um caso maduro e verdadeiro com um homem mais velho, que é assassinado não pelo governo, mas por um gângster barato (como diria depois V, por um "companheiro de cela" na prisão que todos vivem). Nãolições a serem aprendidas com o sexo no filmemas no quadrinho, sim; Moore não deixa barato, pois conhece o poder, o valor e o lugar do sexo como poucos.
No filme, Eve foge de V. Na HQ, V a expulsa. Pra mim isso é essencial: ele faz isso para forçá-la a crescer. V é, desde o início, o agente de sua maturidade: e isso inclui, é claro, feri-la impiedosamente.

FINCH (o detetive)
Há a evolução de Finch até a liberdade, totalmente apagada do filme. Talvez porque seja radical demais para a indústria -- afinal, poderia quase ser vista como, filosoficamente falando, uma apologia às drogas... pois, para compreender V, Finch recorre ao LSD, e dá vazão a um dos momentos (na minha opinião) mais belos da história das histórias em quadrinhos. Finch vê a si mesmo ao procurar ser V. Finch se liberta tentando alcançar seu inimigo. "Não lute contra monstros, sob pena de se tornar um”. Finch fita o abismo, e o abismo o fita de volta. Ao tentar entender a transfiguração ocorrida na mente de V, sua própria mente é transfigurada: seus grilhões se abrem, e ele torna-se subitamente livre – ao perceber ser ele mesmo aquilo que o prendia e limitava em sua vida inteira. Mas sua liberdade, a liberdade de um velho, é diferente da liberdade jovem de Eve; e enquanto esta toma o lugar de V para construir outro mundo, aquele simplesmente o abandona e sai caminhando para a liberdade solitária.
[Aliás, voltando pro sexo-omitido: há na HQ uma cândida e tênue ligação afetiva e sexual entre Finch e Delia (a médica ex-cientista de campo de concentração que V mata) e que é simplesmente esquecida no filme.]

SUSAN (o “Big Brother” feito pelo John Hurt)
(se alguém aqui não assistiu o documentário “A Arquitetura da Destruição” ou não leu um texto de Nietzche chamado "o que significam os valores ascéticos"... é um bom momento para ir atrás.Recomendo!)

Há ainda a “libertação” de Susan, o “grande líder”. É mais irônica e trágica, talvez. O Líder Fascista do filme é um Grande Irmão cinematográfico. Provavelmente algo que funciona melhor em um filme, claro. Mas, novamente: o essencial da obra original não está contemplado no filme.
O líder original não se parece com um religioso inflamado e perverso, um vilão desprezível; ele, na verdade, é quase que alguém digno de pena. Sua mediocridade emocional e personalidade doentia lhe aproximam muito mais de um burocrata vil de vida semi-monástica, um ser humano minúsculo ("mais máquina que homem") do que de um tirano corrupto. E Susan é – novamente Moore e o sexo – apaixonado pelo supercomputador Destino, que é quem realmente organiza e mantém coeso o regime fascista inglês. Sim, é isso mesmo, literalmente: APAIXONADO POR UM COMPUTADOR. (Se isto não o convencer a ler a HQ, nada mais o fará)
A “libertação final” de Susan (vá ler a HQ!) é quase a mesma de Hitler, aquela que, no fundo, este sempre pedira: a morte.

E, por fim: a noção de TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA some do filme.
V explode prédios, as pessoas colocam roupinhas e oh! Tudo está mudado! O Poder voltou para o povo!! Viva!!!
Em Moore, liberdade não é uma coisa a simplesmente ser entregue: as pessoas não estão simplesmente com a canga de uma ditadura fascista em si. Elas carregam seus grilhões e suas coleiras dentro delas mesmas, é a sua fraqueza que cria os "totalitarismos" e que clama por eles. Servidão voluntária. Em Moore a liberdade, a apavorante liberdade, requer sempre evolução pessoal. Transformação radical. Radicalidade que o cinema muito raramente consegue atingir – até porque sua característica industrial lhe confere pouca liberdade.
A ação de V cria apenas o início: traz caos e revolta total à Inglaterra, e não a “liberdade” democrática. A liberdade é projeto de longo termo, de gerações e gerações e de desenvolvimento individual e coletivo. É um processo histórico. Mas creio que o filme não quis mostrar uma situação final tão inconclusiva e ruidosa quanto a da HQ...
Bem, o V original não é um terrorista de fundo “democrata”. É um ANARQUISTA. E nem um só um “monstro” criado pelas “monstruosidades” do governo tirânico.
Ele é mais que isso, é aquele que transcendeu sua individualidade para se tornar idéia. Sua vendetta não é apaixonada ou desesperada, fruto de simples ódio. Ele está além do ódio.
Todo ato de V é político e estético, é cheio de plenitude simbólica. V não tem rosto porque não é "humano". Ele é um além-homem, uma criatura que lançou-se para fora da humanidade (se por "humanidade" tomarmos o eu e o você normaizinhos). Ele é em si uma existência plenamente política, que não problemas em pôr fim a si mesma quando isso se faz necessário em um plano mais amplo de ação sobre a realidade.
Seu ato de ódio é na verdade um ato de amor em sua face destruidora – e é por ser a “face destruidora” da anarquia que ele tem de se deixar matar, para colocar Eve – a face “criadora” – em seu lugar. Transformação que não se faz em uma geração, nem com um só indivíduo – mas com uma idéia imorredoura que, todavia, só pode ser expressa quando encarnada em alguém(s) e passada a diante em processo lento e contínuo.
E é essa “essência” que acho que o filme não pôde (e poderia?) captar adequadamente.
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5 comentários:

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Algumas considerações:

Surpresa: não li o original. Achei o filme ok, nada mais. Aliás, a análise do Gabriel traz coisas bem mais interessantes do que o filme. A minha é mais óbvia e provavelmente menos “nerdy” que a do meu parceiro...rsrsrs!!

Quanto ao que o Gabriel escreve bem no comecinho, embora eu não possa fazer a análise quanto à integridade do conteúdo do filme, vou concordar. Pelo que li, o próprio Alan Moore não gostou do resultado final.

Mas vamos ao que interessa (pra mim): a idéia de evolução de personagens quando submetidos à realidades tortas e mudanças provocadas nos indivíduos por regimes totalitários não é nada nova...aliás, é um tanto batida. Três obras me vieram à cabeça quando assisti o filme:

- “1984” (Orwell – 1948);
- “Admirável Mundo Novo” (Huxley - 1932);

Um professor meu de criminologia, acusa ambos, Orwell e Huxley de um certo “plágio” em suas idéias...embora a fantasia macabra não esteja presente em sua obra, o filósofo inglês Bentham lança a idéia de estado de alerta absoluto e permanente, a vigília total quando escreve o “Panóptico, já em 1789.

Até onde o filme vai, o que foi adicionado à mistura básica desse tipo de realidade perversa, é a presença de um herói (ou pelo menos de um que use capa), que poderia muito bem existir na realidade de 1984. As relações sociais derivadas das castas de Huxley ou das relações entre proles x membros do partido também tendem a gerar personagens fantásticos, mas na minha opinião, com maior profundidade. Talvez por isso, não só o filme, mas a idéia em si não me empolgou muito. Fiquei com uma impressão de que a coisa é velha e já melhor pensada muitas vezes antes.

De qualquer forma, escrevo aqui na condição de não-leitor de quadrinhos...não é minha intenção desmerecer o Alan Moore nem promover uma comparação injusta entre ele e os autores citados. Mesmo porque são coisas diferentes, artes diferentes...definitivamente Orwell, Huxley, Bentham e Moore são diferentes. Claro que os três primeiros são diferentes entre si, mas como Orwell já disse, “alguns animais são mais iguais que outros”.

Gabriel G; disse...

Mas Orwell e Huxley (grandes criadores) fazer a caracterização de um "totalitarismo" do ponto de vista da opressão. O que eles querem mostrar é a distorção do ser humano, e se referem aos oprimidos.

Sem querer comparar o mérito literário, Moore (que, obviamente e declaradamente leu muito os dois) devassa mais estratos: devassa a vida interior do grande chefe, da menina amedontrada, e de vários paus-mandados em diferentes estratos de um mundo podre

E, veja bem: salvo engano meu (ou seja, se alguém já fez) ele traz sim uma novidade à tradição dos totalitarismos. Veja bem, a questão de Moore, ao contrário de Orwell e Huxley, NÃO É tanto a da distorção do ser humano e do totalitarismo inexpugnável. Mas é a da LIBERTAÇÃO do ser humano, e a demosntração silmultânea que sistemas totalitários são na verdade muito frágeis: seu sucesso depende totalmente de nossa submissão, de nossas coleiras interiores.
Ele talvez seja mais romântico... vide, afinal, o final quase feliz.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Bom, eu acho que repressão e libertação são coisas diretamente ligadas.

A caracterização da opressão dos regimes totalitários traz um desejo de libertação (nesse caso, mais evidente em Orwell).

O desejo que permeia 1984 é o de ver Winston resolver a vida, se libertar daquilo que o impede de ser feliz. Certamente é o que ele quer até um certo ponto do livro. E acho que , ao contrário do que fez na "revolução dos bichos", onde a descrição do regime e o processo que leva à ascenção e decadência do mesmo, em 1984 o regime compõe a história em que Winston é bastante importante.

Gabriel G; disse...

mas a liberdade de Winston não é a libertação política ativa. É a liberdade da fuga, da privacidade individual e do amor... tudo facilmente esmagável, como mostra o final de 1984. É um livro completamente desesperançado, porque a fragilidade humana é desnuda, descarnada e exposta de maneira muito radical.

Gabriel G; disse...

O V de Vingança original é uma história menos voltada à idéia de opressão fascista do que à idéia de anarquia. O principal assunto é a liberdade anárquica, e é isso que o filme apaga.