(escrito uns três meses depois de ver o filme, e complementado agora)
Vamos lá: uma pequena comparação entre filme adaptado e a história em quadrinhos original. Se você sentir cheiro de “nietzchezinhices” por aí, não se importe.
(Espero que convença quem ainda não leu o original a se aventurar por ele...)
(Espero que convença quem ainda não leu o original a se aventurar por ele...)
Já vi alguns (e talvez muitos estejam com eles) defenderem que  o "essencial " da obra original está lá no filme. 
Discordo.
Porque  para  mim , algo  essencial  a várias obras  de Moore e em  especial  a essa é a idéia  de evolução . E essa idéia  some no filme.
A evolução  até  a liberdade .
Vejamos alguns poucos pontos que ilustram a evolução e a liberdade, através de três personagens:
EVE (a Natalie Portman do filme...)
Na HQ, a evolução  de Eve até a liberdade  é impressionante, e é o centro da história. O filme tenta reproduzir alguns momentos disso, mas se preocupa muito em fazer de Eve um contraponto à frieza “terrorista” de V... no filme, Eve já  é formada e "opinosa" demais. Não tem a fragilidade  quebradiça , desamparada e infantil  da menina  de Moore, que  começa  a história  praticamente sem  ter  personalidade  própria . Não é à toa que, no original, ela começa a história não “passeando” à noite, mas tentando se prostituir . Tentando vender-se em  troca  de alguma segurança  a mais. E é nesse ato desesperado que ela falha  miseravelmente, é abordada por policiais e salva pelo sombrio e carismático V.
No filme , Eve foge de V. Na HQ, V a expulsa . Pra  mim  isso  é essencial : ele  faz isso  para  forçá-la a crescer . V é, desde  o início , o agente  de sua  maturidade : e isso  inclui, é claro , feri-la impiedosamente .
FINCH (o detetive)
Há a evolução  de Finch até a liberdade, totalmente apagada do filme. Talvez porque seja radical demais para a indústria -- afinal, poderia quase ser vista como, filosoficamente falando, uma apologia às drogas... pois, para compreender V, Finch recorre ao LSD, e dá vazão a um dos momentos (na minha opinião) mais belos da história das histórias em quadrinhos. Finch  vê a si mesmo ao procurar ser V. Finch se liberta  tentando alcançar  seu  inimigo . "Não  lute contra  monstros , sob  pena  de se tornar  um”. Finch fita  o abismo , e o abismo  o fita  de volta . Ao tentar  entender  a transfiguração  ocorrida na mente  de V, sua  própria  mente  é transfigurada: seus  grilhões  se abrem, e ele  torna-se subitamente livre  – ao perceber  ser  ele  mesmo  aquilo  que  o prendia e limitava em  sua  vida  inteira. Mas  sua  liberdade , a liberdade  de um  velho , é diferente  da liberdade  jovem  de Eve; e enquanto  esta toma  o lugar  de V para  construir  outro  mundo , aquele simplesmente  o abandona e sai caminhando para a liberdade solitária.
[Aliás, voltando pro sexo-omitido: há na HQ uma cândida  e tênue  ligação  afetiva  e sexual  entre  Finch e Delia (a médica ex-cientista de campo de concentração que V mata) e que é simplesmente  esquecida no filme.]
SUSAN (o “Big Brother” feito pelo John Hurt)
(se alguém aqui não assistiu o documentário “A Arquitetura da Destruição” ou não leu um texto de Nietzche chamado "o que  significam os valores  ascéticos"... é um bom momento para ir atrás.Recomendo!) 
  Há ainda a “libertação” de Susan, o “grande líder”. É mais  irônica  e trágica , talvez . O Líder Fascista do filme é um Grande Irmão cinematográfico. Provavelmente algo que funciona melhor em um filme, claro. Mas, novamente: o essencial da obra original não está contemplado no filme.
O líder original não se parece com um religioso inflamado e perverso, um vilão desprezível; ele, na verdade, é quase que alguém digno de pena. Sua mediocridade emocional  e personalidade  doentia  lhe  aproximam muito  mais  de um  burocrata  vil  de vida  semi-monástica, um  ser  humano  minúsculo  ("mais  máquina  que  homem ") do que  de um  tirano corrupto . E Susan é – novamente Moore e o sexo – apaixonado pelo supercomputador Destino, que é quem realmente organiza e mantém coeso o regime fascista inglês. Sim, é isso mesmo, literalmente: APAIXONADO POR UM COMPUTADOR. (Se isto não o convencer a ler a HQ, nada mais o fará)
A “libertação final” de Susan (vá ler a HQ!) é quase  a mesma  de Hitler, aquela que , no fundo , este sempre  pedira: a morte .
E, por fim: a noção  de TRANSFORMAÇÃO HISTÓRICA some do filme .
V explode prédios, as pessoas colocam roupinhas e oh! Tudo está mudado! O Poder voltou para o povo!! Viva!!!
Em Moore, liberdade não  é uma coisa  a simplesmente  ser  entregue : as pessoas  não  estão simplesmente  com  a canga  de uma ditadura  fascista  em  si . Elas seus  grilhões  e suas  coleiras  dentro  delas mesmas, é a sua  fraqueza  que  cria  os "totalitarismos " e que  clama por  eles . Servidão  voluntária . Em Moore a liberdade, a apavorante liberdade, requer sempre evolução pessoal. Transformação radical. Radicalidade que o cinema muito raramente consegue atingir – até porque sua característica industrial lhe confere pouca liberdade.
A ação de V cria apenas o início: traz caos e revolta total à Inglaterra, e não a “liberdade” democrática. A liberdade é projeto de longo termo, de gerações e gerações e de desenvolvimento individual e coletivo. É um processo histórico. Mas creio que o filme não quis mostrar uma situação final tão inconclusiva e ruidosa quanto a da HQ...
Bem, o V original não é um terrorista de fundo “democrata”. É um ANARQUISTA. E nem um só um “monstro” criado pelas “monstruosidades” do governo tirânico.
Ele é mais que isso, é aquele que transcendeu sua individualidade para se tornar idéia. Sua vendetta não é apaixonada ou desesperada, fruto de simples ódio. Ele está além do ódio.
Todo ato  de V é político  e estético , é cheio  de plenitude  simbólica. V não  tem rosto  porque  não  é "humano ". Ele  é um  além-homem, uma criatura  que  já  lançou-se para  fora  da humanidade  (se por  "humanidade " tomarmos o eu  e o você  normaizinhos). Ele  é em  si  uma existência  plenamente  política , que  não  vê  problemas  em  pôr  fim  a si  mesma  quando  isso  se faz necessário  em  um  plano  mais  amplo  de ação  sobre  a realidade .
Seu ato de ódio é na verdade um ato de amor em sua face destruidora – e é por ser a “face destruidora” da anarquia que ele tem de se deixar matar, para colocar Eve – a face “criadora” – em seu lugar. Transformação que não se faz em uma geração, nem com um só indivíduo – mas com uma idéia imorredoura que, todavia, só pode ser expressa quando encarnada em alguém(s) e passada a diante em processo lento e contínuo.
E é essa “essência” que acho que o filme não pôde (e poderia?) captar adequadamente.
 

 
5 comentários:
Algumas considerações:
Surpresa: não li o original. Achei o filme ok, nada mais. Aliás, a análise do Gabriel traz coisas bem mais interessantes do que o filme. A minha é mais óbvia e provavelmente menos “nerdy” que a do meu parceiro...rsrsrs!!
Quanto ao que o Gabriel escreve bem no comecinho, embora eu não possa fazer a análise quanto à integridade do conteúdo do filme, vou concordar. Pelo que li, o próprio Alan Moore não gostou do resultado final.
Mas vamos ao que interessa (pra mim): a idéia de evolução de personagens quando submetidos à realidades tortas e mudanças provocadas nos indivíduos por regimes totalitários não é nada nova...aliás, é um tanto batida. Três obras me vieram à cabeça quando assisti o filme:
- “1984” (Orwell – 1948);
- “Admirável Mundo Novo” (Huxley - 1932);
Um professor meu de criminologia, acusa ambos, Orwell e Huxley de um certo “plágio” em suas idéias...embora a fantasia macabra não esteja presente em sua obra, o filósofo inglês Bentham lança a idéia de estado de alerta absoluto e permanente, a vigília total quando escreve o “Panóptico, já em 1789.
Até onde o filme vai, o que foi adicionado à mistura básica desse tipo de realidade perversa, é a presença de um herói (ou pelo menos de um que use capa), que poderia muito bem existir na realidade de 1984. As relações sociais derivadas das castas de Huxley ou das relações entre proles x membros do partido também tendem a gerar personagens fantásticos, mas na minha opinião, com maior profundidade. Talvez por isso, não só o filme, mas a idéia em si não me empolgou muito. Fiquei com uma impressão de que a coisa é velha e já melhor pensada muitas vezes antes.
De qualquer forma, escrevo aqui na condição de não-leitor de quadrinhos...não é minha intenção desmerecer o Alan Moore nem promover uma comparação injusta entre ele e os autores citados. Mesmo porque são coisas diferentes, artes diferentes...definitivamente Orwell, Huxley, Bentham e Moore são diferentes. Claro que os três primeiros são diferentes entre si, mas como Orwell já disse, “alguns animais são mais iguais que outros”.
Mas Orwell e Huxley (grandes criadores) fazer a caracterização de um "totalitarismo" do ponto de vista da opressão. O que eles querem mostrar é a distorção do ser humano, e se referem aos oprimidos.
Sem querer comparar o mérito literário, Moore (que, obviamente e declaradamente leu muito os dois) devassa mais estratos: devassa a vida interior do grande chefe, da menina amedontrada, e de vários paus-mandados em diferentes estratos de um mundo podre
E, veja bem: salvo engano meu (ou seja, se alguém já fez) ele traz sim uma novidade à tradição dos totalitarismos. Veja bem, a questão de Moore, ao contrário de Orwell e Huxley, NÃO É tanto a da distorção do ser humano e do totalitarismo inexpugnável. Mas é a da LIBERTAÇÃO do ser humano, e a demosntração silmultânea que sistemas totalitários são na verdade muito frágeis: seu sucesso depende totalmente de nossa submissão, de nossas coleiras interiores.
Ele talvez seja mais romântico... vide, afinal, o final quase feliz.
Bom, eu acho que repressão e libertação são coisas diretamente ligadas.
A caracterização da opressão dos regimes totalitários traz um desejo de libertação (nesse caso, mais evidente em Orwell).
O desejo que permeia 1984 é o de ver Winston resolver a vida, se libertar daquilo que o impede de ser feliz. Certamente é o que ele quer até um certo ponto do livro. E acho que , ao contrário do que fez na "revolução dos bichos", onde a descrição do regime e o processo que leva à ascenção e decadência do mesmo, em 1984 o regime compõe a história em que Winston é bastante importante.
mas a liberdade de Winston não é a libertação política ativa. É a liberdade da fuga, da privacidade individual e do amor... tudo facilmente esmagável, como mostra o final de 1984. É um livro completamente desesperançado, porque a fragilidade humana é desnuda, descarnada e exposta de maneira muito radical.
O V de Vingança original é uma história menos voltada à idéia de opressão fascista do que à idéia de anarquia. O principal assunto é a liberdade anárquica, e é isso que o filme apaga.
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