terça-feira, 29 de maio de 2018

Boleia Brasilis



Como o cartunista Ricardo Coimbra bem falou, a já histórica greve dos caminhoneiros mostrou que o TIOZÃO DO WHATSAPP é, no momento, a mais poderosa força popular no Brasil.
A intenção do cartunista de ironizar a auto-importância da juventude intelectualizada, contudo, também faz eco da percepção limitada que "nós", "classe média ilustrada", temos a respeito dos caminhoneiros, tendendo inconscientemente a enquadrá-los -- seja em viés até positivo ou em viés negativo -- a partir da imagem de broncos e pouco instruídos.  Mas há muito mais a se considerar a respeito da classe caminhoneira. Como um amigo comentou, ao passarmos lentamente pelo comboio paralisado na rodovia Dutra e presenciarmos a variada amostra humana: "essa é a cara do povo brasileiro". O atual tumulto, em compensação, serve para que saibamos mais a respeito: nunca tinha lido tanto sobre a logística do transporte rodoviário, o cotidiano dos motoristas e os perigos e amores da profissão.

Pois bem: nesta manhã tive uma aula informal sobre caminhoneiros brasileiros com o dono da banca da minha esquina. O jornaleiro (que parece ter mais ou menos a minha idade, uns trinta e tantos) trabalhou durante dois anos no CEASA, e até hoje tem contato com alguns caminhoneiros, incluindo grupo de Whatsapp, e parecia preocupado em desfazer os possíveis preconceitos que a cobertura da grande imprensa poderia estar incutindo em mim. Quero compartilhar alguns dados interessantes que ouvi.

Primeiro, o jornaleiro dividiu os caminhoneiros em três grupos geográficos básicos. Os caminhoneiros cariocas, segundo ele, seriam na média (sempre há exceções) um grupo mais desorganizado e mais "malandro", mas sobretudo mais bairrista, que conheceria relativamente pouco o Brasil (penso que ele destacou os cariocas por estamos eu e ele no Rio de Janeiro).  Os caminhoneiros de São Paulo e Minas Gerais, por sua vez, seriam os mais "cosmopolitas" (eu é que estou usando a palavra), ou seja, os que mais conhecem o Brasil a fundo e mais têm contatos país afora com outros caminhoneiros -- e, por isso mesmo, os que teriam sido mais centrais em puxar a greve. Os caminhoneiros da Região Sul, por sua vez, seriam os mais marcadamente de extrema-direita -- nas palavras dele, os que querem "a cabeça do Lula numa estaca". Todos estes grandes grupos, e mais todos os heterogêneos e múltiplos agrupamentos de caminhoneiros Brasil afora teriam, contudo, uma coisa em comum: querem que os sindicatos se fodam.

Mas para mim o dado mais interessante da conversa, que eu não havia visto ninguém trazer à tona até então, foi este: uma enorme porcentagem dos caminhoneiros brasileiros, especialmente os do interior, fez serviço militar. E fez serviço militar justamente para trabalhar depois como caminhoneiro -- pois eles podem sair do serviço já com o treinamento para isso, enquanto tirar a permissão profissional como civil é muito mais caro e burocrático. Isso, aliás, é muito comum em várias outras profissões no interiorzão brasileiro, onde o serviço militar é a principal chance de ensino profissionalizante. Atenção: não podemos nunca esquecer que o exército ainda é a grande escola técnica brasileira, bem como o grande exemplo popular de instituição que "funciona" minimamente bem.
Esse dado me parece crucial para se entender a enorme popularidade da idéia de "intervenção militar" entre os caminhoneiros -- assim como a perene boa imagem das forças armadas entre o povo dos grotões brasileiros.

Por outro lado, essa relação com o serviço militar também explicaria minha percepção de que os militares provavelmente não têm vontade alguma de agir contra a greve e os bloqueios. Faz sentido: para além de afinidades quaisquer no campo das idéias, ao enfrentar os grevistas os militares estariam entrando em conflito com uma razoável percentagem de:

  • a) ex-companheiros de corporação -- com os quais têm termos, códigos e experiências em comum;
  • b) pessoas com um senso compartilhado de união e soliedariedade (que já é gerada pelas muitas agruras comuns à profissão de caminhoneiro, mas que não seria exagero pensar que é intensificada quando há também uma base de formação militar entre estes);
  • c) gente armada, treinada para uso de arma de fogo e raçuda pra caramba ("nós" da classe-média-urbana-universitária-e-conectada-de-facebok fizemos algumas piadas e memes com o Brasil transformado em cenário de Mad Max pela falta de gasolina; mas esquecemos que boa parte dos caminhoneiros tem experiências diretas com cenários de terra-de-ninguém que efetivamente lembram Mad Max...)


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Dito isso, gostaria de comentar algo a respeito do que tenho visto em minha "bolha", formada em grande parte por acadêmicos (professores e alunos) de esquerda. Vi repetidas reações um tanto ressentidas tanto ao sucesso da greve dos caminhoneiros quanto ao apoio assustadoramente disseminado deles à ideia de "intervenção militar" (seja lá o que isso fosse para cada um deles), e quero comentá-las.

No primeiro caso, vi repetir-se a fala "sabe por que apoiaram essa e não a dos professores? Porque valorizam mais do carro (preço da gasolina) do que da educação!!". OH, que surpresa! então as pessoas valorizam mais questões financeiras e patrimoniais palpáveis a curto prazo do que questões mais abstratas e categoriais de longo prazo?
Claro, gente: no Brasil e na humanidade afora.
Meu caros amigos e conhecidos, professores e alunos de esquerda. Se é pelo lado da comparação que queremos proceder (que é uma direção muito válida), têm certeza que querem adotar esse tom em particular? Pois se querem, tenham consciência de que nós acabamos de ter nossa irrelevância política esfregada dolorosamente em nossa cara. Aceitemos a derrota e aprendamos com ela. Até porque, o que é mais escandaloso?  O fato do povo não valorizar e saber pouco da importância da universidade, ou o fato e nós, universitários (ditos instruídos) não valorizarmos e sabermos tão pouco sobre a realidade de categorias tão básicas quanto caminhoneiros e militares?

Sobre o apoio à "intervenção militar", tenho visto posts e tweets repetindo a cantilena de "mais educação", "mais aulas de história", "você não sabe como o governo militar foi corrupto??", "mostre isso (vídeo-relato de tortura ou video do Leandro Karnal) para quem falar que defende intervenção militar". Tudo isso (ou quase tudo) é verdadadeiro e relevante; mas todos os exemplos que vi, infelizmente, têm em comum o fato de chamarem o interlocutor de ignorante (quando não de idiota ou safado mesmo).
Se tais posts forem desabafos circulando internamente à bolha universitária, tais frases. memes e links são apenas consolos narcísicos de nós para nós mesmos -- o que já me pareceria um pouco ruim, pois creio que precisamos fazer as pazes com nossa relativa impotência profissional, sob a pena de nos tornarmos ressentidos e amargos. Mas se forem frases de debate destinadas a oponentes, o quadro é pior: são comentários "lacradores" destinados à irrelevância política, pois ninguém jamais foi convencido por ser chamado de ignorante ou burro. Não basta condenarmos o apoio popular aos militares sem sequer tentar compreender sua origem e meandros, colocando-o meramente na conta do espectro vago do "conservadorismo" e do "proto-fascismo" (que são coisas a serem temidas, obviamente, mas não são matrizes explicativas muito eficientes).
Depois de considerar o escrito por Rodrigo Nunes neste post, se eu fosse arriscar algo, diria isto: na hora de criticar ou desmontar a idéia de intervenção militar, posto que estamos lidando com uma categoria básica para a nação e imensamente popular, creio que cabe recuar um pouco nosso atávico tom de nariz torcido para com os militares e adiar momentaneamente nosso automático saque da carta histórica da ditadura; e então, tentando entender o que "intervenção militar" representa para o interlocutor, tentar explicar dentro do próprio sistema intelectual dele o porquê disso não funcionar, o porquê de não ser uma panacéia. Não vai ser nada fácil, mas será necessário.

Eu estou tão perdido nesse momento histórico quanto qualquer um, mas tenho uma convicção: ficar exibindo superioridade moral e intelectual para nós mesmos e para os outros é a última coisa que precisamos fazer, e a última coisa que vai nos ajudar.

Bom, o debate continua. Mais links que vi sobre esse assunto:
Relato de Larissa Jacheta Riberti
Relato de Rosana Machado
Reportagem da Piauí sobre a descentralização do movimento
Alguns Vídeos assistidos pelos caminhoneiros

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Bandeiras, política e futebol

"As pessoas têm que entender que a farda deles [PM] é sagrada, é a extensão da bandeira do Estado de São Paulo. Se você ofender a farda, ofender a integralidade do policial, você está correndo risco de vida. É assim que tem que ser".

Assim falou o Márcio França, mais um político da longa lista daqueles que foram lançados na vida pública brasileira por ter ocupado a cadeira de vice-governador ou vice-prefeito do governo ou prefeitura de São Paulo (rol que inclui Kassab, Bruno Covas e o próprio Alckmin).

O meu próprio "bandeirismo" passou há muito tempo. Sempre desconfiei da afirmação de que "O hino brasileiro foi 'eleito' um dos mais belos do mundo". A bandeira do Brasil eu acho bonita, mas ao longo dos anos desenvolvi um certo gosto por provocar o nervo nacionalista dos conterrâneos com algumas provocações: "digam o que quiserem sobre o lábaro estrelado, mas a mim parece o resultado de uma baita trombada entre um papagaio de massinha de modelar e uma parede branca (inclui as estrelinhas da dor de cabeça do  melhor estilo de desenho animado)". Acho educativo.

O brasileiro, diga-se de passagem, nunca foi maluco por ostentação de bandeira. Quem já saiu do país sabe disso. Quando fui morar nos EUA pela primeira vez, aos 16 anos, uma das coisas que mais me chamou a atenção foi a quantidade de casas que tinham a bandeira americana tremulando num mastro, bem na frente do jardim. Tudo parecia oficial. Ter bandeira na frente de casa é um indicativo claro de que, naquele espaço, a utilização da liberdade de expressão para ofender a estética da bandeira não é bem-vinda.

Todas as manhãs, na escola, os alunos são convidados a se levantar e recitar o juramento de lealdade à bandeira. Eu levantava junto, mas não dizia as palavras, claro. O professor da primeira aula chegou a me perguntar a razão pela qual eu não me juntava ao coro e não fez muito esforço para entender a simples resposta: "não sou deste país". "Mas deveria ser grato", respondeu.

No Brasil, bandeira era objeto de torcida, a gente só se ufanava em época de copa, exceção feita aos gaúchos com seus adesivos de bandeira (do estado) nos parachoques dos automóveis.

De 2013 pra cá, as coisas por mudaram. Por estar presente naquela que foi a maior manifestação daquele ano, presenciei, em tempo real, o momento no qual a semente do nacionalismo exacerbado brotou: uns 500 depois que viramos na 9 de julho, saindo da Rebouças. Ali, várias pessoas, nas suas sacadas, saudavam à multidão com bandeiras verde-amarelas. A retribuição foi quase automática: toma hino nacional (errado, claro) de volta. Dois dias depois, na Paulista, bandeiras de partidos e movimentos sociais eram arrancadas das mãos dos manifestantes e incendiadas - "jamais será vermelha".

Porrada por conta de bandeira, cor de camisa e hino, aliás, eram coisas que se restringiam aos estádios de futebol. Talvez ter trazido o clima de Fla-Flu para a política (aliás, a TV Folha tem um programa de debate com este nome) tenha despertado no povo a reação que nos é familiar no universo das torcidas organizadas, o caminho da violência. As piadas, os memes que vemos sobre o "grupo rival" lembram muito os que se veem entre torcidas depois de uma goleada. As acusações de "juiz ladrão", a depender dos resultados são outra lembrança, além dos programas de mesa-redonda, no caso da política, a diversidade de opiniões na mídia é bem menor.

Saindo da digressão futebolística, eu não gosto de generalizar fascismo, mas a sacralização dos símbolos nacionais e sua utilização como elemento identificador daqueles que fazem a "defesa da pátria" é um sintoma meio sério. Primeiro, porque automaticamente coloca toda a oposição desbandeirada o selo de "traidores da nação". Segundo, porque deposita sobre a bandeira o peso de uma porção de causas parciais. É a volta do "Brasil: ame-o ou deixe-o". Aqui uma rápida digressão: não consigo mais lembrar dessa frase sem citar o Leminski - "ameixas, ame-as ou deixe-as".

Ao colocar o culto à pátria acima do direito à livre expressão, na prática eleva-se o nacionalismo a um patamar superior ao da democracia. Ameaçar quem ofende à PM ou à bandeira com a morte, como fez o governador, leva a questão ao extremo. É a solução dos opacos, porque mais simples. Democracia é um negócio bagunçado, cheio de nuances, opiniões divergentes, um sistema no qual nem sempre a nossa vontade individual prevalece.

Fora isso, daqui a pouco tem copa, eu quero torcer pelo Brasil, com direito à pipoca, bandeira e camisa. Fico com a gélida sensação de que essas coisas - com exceção da primeira - foram tomadas de mim.