domingo, 2 de fevereiro de 2014

Cubofobia

Ao longo da vida passei por uma série de saias-justas em discussões, pela confusão que muitos fazem entre a acusação de um argumento falacioso com argumentos ad-hominem.  É verdade que, por vezes, estas coisas coincidem: o argumento falacioso pode ser utilizado de má-fé, caso no qual chamar o outro de mentiroso é simples constatação da realidade, mas em nome do raciocínio iremos assumir que na maior parte dos casos, o uso de falácias conhecidas é feito de forma incauta.
Carl Sagan lista uma série dessas falácias em sua grande obra “O mundo Assombrado pelos Demônios”.  Duas das mais comuns são a compreensão errônea da natureza estatística e a estatística dos números pequenos.  São descritas da seguinte forma:

·         estatística dos números pequenos – falácia aparentada com a seleção das observações (por exemplo: ‘Dizem que uma dentre cada cinco pessoas é chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e nenhuma delas é chinesa. Atenciosamente’). Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à noite não tenho como perder).

·         compreensão errônea da natureza estatística (por exemplo: O presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao descobrir que metade dos norte-americanos tem inteligência abaixo da média).

Estes dois recursos retóricos se relacionam com uma terceira forma, igualmente conhecida: a evidência anedótica – é o relato de caso.  Trata-se de utilizar a experiência pessoal como evidência capaz de explicar a realidade como um todo.  “Todo mundo no meu facebook odeia a Dilma, portanto, a população deve odiá-la e essas pesquisas de opinião são todas mentirosas”.

As redes sociais, na forma como existem hoje, são um fenômeno ainda relativamente recente.  Na época do Orkut, as discussões ocorriam dentro de fóruns fechados: para acessar os debates era preciso entrar em uma comunidade, entrar em algum dos tópicos e então ler uma sequência de argumentos.  O resultado é que cada comunidade tinha suas tendências e o debate corria de forma mais ou menos esperada, mas não havia qualquer expectativa de que aqueles grupos de pessoas representassem uma amostra representativa da sociedade.

A arquitetura do facebook promove um tipo de interação completamente diferente: as postagens são abertas, não necessariamente vinculadas a um argumento específico. Acontece que as timelines individuais do facebook, ou seja, as opiniões que aparecem no seu monitor quando você entra no site, não é uma amostragem representativa da população brasileira – e  em geral, são só reproduções do que é colocado pela grande imprensa, como podemos ver aqui.  Esse conjunto de material mostra apenas a realidade média do grupo social de cada usuário.  Dessa forma, se no seu grupo de amigos há muitas pessoas identificadas com posicionamento “x”, é provável que seu facebook reflita, majoritariamente, esta posição, o que pode passar a falsa sensação de que o conjunto da sociedade pensa desta forma.

Meu ambiente de trabalho é a academia. Para ser mais específico, o Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo.  Trata-se, tradicionalmente, de um reduto esquerdista, de forma que há um número expressivo de opiniões de esquerda veiculadas na minha timeline.  Ao contrário, se eu fosse um empresário do setor agropecuário, provavelmente a orientação política geral do meu facebook seria outra.

Ainda assim, tendo passado boa parte da minha vida em uma cidade rica e agrícola do interior paranaense, estudado em colégio particular e cursado engenharia civil e direito há, no meu grupo de amigos, uma parcela expressiva de pessoas que não só não são de esquerda, mas que ultimamente aderiram à radicalização do discurso contra os governos petistas.  Sei (e tenho verificado) que, para essas pessoas, as minhas publicações são um ponto fora da curva.  E sei também que o debate político promovido por essa neo-direita incidental é muito superficial.  Na maioria das vezes, observo apenas um sentimento de raiva e um aglomerado de piadas (talvez o cinismo, e não o patriotismo seja o último refúgio dos canalhas).  Os que se preocupam em conduzir uma discussão racional, raramente verificam seus fatos antes de postar, de forma que a imensa maioria das críticas são facilmente refutáveis, o que pode reforçar o sentimento, para essas pessoas, de que “esses caras tem desculpa pra tudo”.

Dois exemplos recentes:

·         a celeuma do reajuste do IPTU em São Paulo: o reajuste proposto era menor que o último aprovado por Kassab, e desoneraria boa parte da população de São Paulo, onerando aqueles que vivem em regiões da cidade com boa estrutura de transportes, coleta de lixo diária, iluminação e serviços.  A batalha ideológica foi travada como se todos fossem sofre um reajuste de 20%.

·         o jantar de Dilma em Portugal: posteriormente descobriu-se que Dilma (e sua comitiva) pagou por seus próprios jantares, sem fazer uso dos cartões corporativos.

Se é verdade que uma mentira contada muitas vezes passa a ser compreendida como verdade, um conjunto de pequenos fatos podem se acumular e compor um quadro de que os mal-feitos são rotina.  Ainda que se pudesse se refutar todas as alegações, as pessoas que estão no mindset condenatório, enxergarão apenas um grande volume de acusações.  O contraditório perde sua importância e eficácia.

É neste ambiente que passo a discutir o recente fenômeno da “cubofobia”: o medo de que o Brasil esteja se tornando um país comunista ou vivendo os preparativos de um golpe.  Poderíamos dizer, de forma mais divertida, que “cubofobia” é o medo irracional de um golpe comunista no Brasil que só gente quadrada nas três dimensões espaciais sente.

Dizer que Lula e Dilma apoiam governos autoritários, comunistas e genocidas não é novidade.  Em 2010 havia muita gente expressando o medo de que o Brasil se tornasse uma Venezuela (mesmo sem saber muito bem o que se passa na Venezuela).  O motivo era a falsa expectativa gerada por conta da discussão do PNDH-3, que limitaria as liberdades de imprensa e expressão e nos obrigaria a doar o pé direito de cada sapato prum camarada mais pobre.  A cada foto de Lula ou Dilma com Chavéz, Fidel, Raul ou Morales, um pequeno chilique.  Mas nada mais grave, isso passou e as pessoas nem se lembram do tal PNDH-3.

Em 2013, porém, a coisa começou a ganhar uma nova escala: a implementação do programa “mais médicos” transformou, automaticamente, uma massa de analistas políticos de facebook em especialistas nas questões relacionadas ao país caribenho.  De repente todos sabiam como é, de fato, a realidade em Cuba, e tinham críticas severas a respeito de temas que iam do sistema de saneamento básico de Havana à exploração das negras que enrolam charutos nas coxas “a incidência de câncer de coxa nas mulheres cubanas é 20% acima da média mundial”, diriam alguns.

O último episódio – e razão do texto – é “doação criminosa de recursos públicos” que o governo brasileiro fez para construir um megaporto em Cuba, enquanto os nossos portos sofrem com a falta de investimento e tem gente morrendo de sede no nordeste.  Junto com o episódio, pipocaram – outra vez – fotos de Lula e Dilma com Fidel Castro e as velhas reportagens indicando que Fidel é um dos homens mais ricos do mundo.

Então, compartilhei na minha timeline o seguinte quadro:



As reações, algumas públicas, outras em chat privado vieram mais ou menos no mesmo sentido: o BNDES empresta, mas o faz sem qualquer perspectiva de receber o dinheiro de volta.  Alguém lembrou da nossa complacência com o investimento do banco público na Bolívia (não foi dito exatamente qual, mas suponho que seja o da construção do gasoduto Brasil-Bolívia).  Mas poderíamos citar outras coisas, como por exemplo a postura do governo de não dificultar a nacionalização das refinarias da Petrobrás no país.  São casos diferentes, mas a postura frente a eles pode ser parecida.

O BNDES é um banco público com finalidade específica: promover o desenvolvimento econômico e social do Brasil através de investimentos diretos – sob a forma de financiamentos.  Não está escrito (e não faria sentido que estivesse), que o desenvolvimento não possa ser alcançado através de investimentos que ocorram fora de nossas fronteiras.  O BNDES funciona como qualquer banco, apenas com taxas de juros compatíveis com a realidade econômica – ao contrário do que ocorre com os bancos privados, relativamente livres para operar e cobrar as taxas que bem entenderem, como gostam os liberais.  O BNDES não vai atrás de governos ou empresas oferecendo dinheiro.  Recebe projetos, analisa garantias e capacidade de pagamento e aprova ou não os financiamentos.  Em relação à questão do porto de Mariel, gostaria de analisar a questão em três frentes: primeiro, sob o ponto de vista da motivação do investimento; segundo, sob o ponto de vista das prioridades de investimento do BNDES, por fim, sob a questão da política externa brasileira.

Em relação ao primeiro aspecto, sugiro a leitura dessa reportagem da BBC.  Pra quem não sabe, a BBC é uma empresa pública britânica de rádio e TV.  Obviamente um braço petista na mídia internacional.

Com a reforma do canal do Panamá, que passará a receber navios de maior porte, os chamados “pós-panamax”, a construção do porto passa a ter interesse estratégico para o país – o custo de exportações de grandes volumes para a Ásia seria bastante reduzido.  Cuba não tem capacidade de investimento e exportações, devido ao embargo econômico imposto pelos EUA.  Com a expectativa do fim deste embargo, o Brasil poderia se beneficiar da instalação de indústrias em Cuba, o que facilitaria as exportações para a América do Norte, Central e eventualmente para a Ásia, através do Canal do Panamá.  Cuba manteria as indústrias brasileiras em condição de zona franca (livre de tributação ou com tributação irrisória) e forneceria mão de obra qualificada barata.  Agora, onde já vimos isso antes?  Ah, nas tais multinacionais, pelas quais todos os estados brasileiros se estapeiam para receber.  As questões impostas a esse tipo de investimento, aliás, tradicionalmente vêm da esquerda: geração de empregos no exterior ao invés de local.  Mas é preciso lembrar que os países desenvolvidos abandonaram as indústrias pesadas há muito tempo, e que há a expectativa de geração de empregos por aqui também, na construção de navios e outros produtos.   O porto de Mariel foi construído pela Odebrecht, empresa brazuca, 80% dos insumos foram comprados diretamente do Brasil – ou seja, geração de empregos e dividendos por aqui.

   Na reportagem da BBC o depoimento mais interessante é o de Arthur Zanetti, diretor de relações internacionais da Fiesp (outro conhecido posto avançado do comunismo brasileiro).  Pra quem não quiser ler, aqui vai uma entrevista de Zanetti para o Jornal da Record:


Zanetti deve ter ouvido muito dos amigos: "pô, aí tu fode a gente, meu!"

Ironias à parte, existem duas coisas que a Fiesp não costuma fazer: apoiar governo petista e passar chances de ganhar dinheiro por conta de disputas políticas.

Em relação ao segundo aspecto, a questão das prioridades de investimento do BNDES: o argumento mais recorrente é o de que o Brasil deveria priorizar os investimentos internos, que é um absurdo investir 1 bilhão fora do país, temos gente morrendo de fome, de sede...bem, fui procurar o montante investido pelo BNDES em 2013...e foram R$514,583 bilhões.  Para este fim específico, achei interessante utilizar a veja como fonte.  Está aqui.  Tendo isso em vista, os R$957 milhões equivalem a 0,18% de tudo que o banco investiu ano passado...mas é claro que esse dinheiro não foi todo liberado em 2013, o que diminui ainda mais o impacto nas contas do ano.  Falar alto que R$1 bilhão é muita grana (é, mas há uma questão e escala), tem como única finalidade induzir as pessoas em erro, ao acreditar que é esse bilhão que está prejudicando os investimentos por aqui.  Trata-se da tal “compreensão errônea da natureza estatística”, uma das falácias mencionadas lá no começo do texto.

Ainda em 2013, o BNDES liberou R$10 bilhões para a Sete Brasil, que vai construir sondas para a exploração do pré-sal.  Ainda no ano passado, o governo liberou mais R$50 bilhões para o setor produtivo, que deverá ficar com R$372 bilhões em 2014.  Entãããããoooo.............não dá pra dizer que é o bilhão do porto de Mariel o responsável pelos não-investimentos em outros projetos no Brasil.

O desenvolvimento de grandes projetos no Brasil é complexo.  A nossa legislação é muito travada, e com o desenvolvimento, ainda incipiente, de uma legislação ambiental (que ameaça voltar pra trás), é difícil conseguir acesso às verbas, uma vez que o BNDES não pode, por lei, liberar valores para projetos que não obtenham todas as licenças necessárias.

Por fim, a questão da política externa: em relação a receber de volta os valores emprestados, o acordo que foi feito com Cuba vai no mesmo sentido da abertura promovida pela China. Será criada uma zona de exceção no país, as empresas brasileiras estarão livres de impostos (ou com taxação reduzida), as operações serão feitas em dólar e não haverá restrições para remessa de capitais.  Mas então, o que Cuba ganha com isso?

Um puta porto, que eles poderão usar sem ter que bancar a construção.
Equivaleria, mais ou menos, a um país querer construir uma base de lançamento de foguetes onde fizemos Alcântara.  É uma posição estratégica da qual se pode tirar vantagem, dada a economia de combustível, caso o governo hospedeiro conceda o direito do uso da terra.  Em caso de maior necessidade, talvez tivéssemos feito o negócio.  A moeda de troca? Ganharíamos alguma tecnologia e eventualmente um satélite lançado “de grátis”.

O pagamento do empréstimo (ou a maior parte dele) é de responsabilidade da Odebrecht, não do governo cubano.  A expectiva das indústrias é que os valores sejam pagos com os lucros do porto.  A questão é se podemos ou não confiar no empresariado nacional, não no governo de Cuba.  O BNDES tem confiado, já que, como vimos, empresta uma caralhada de dinheiro para empresas brasileiras todos os anos...e, como vimos, um calote de R$1 bilhão não parece ser algo que preocupe tanto o BNDES...talvez valha o risco.

Ainda assim, e a questão da Bolívia?  Por que Lula não apertou a Bolívia na questão das refinarias?  Por que havia a expectativa de renegociar o acordo de Itaipu com o Paraguai?  Por que fazemos alguns investimentos para outros países com condições de pagamento questionáveis?  Ora, por duas razões: primeiro, porque perto destes países, o Brasil é um colosso econômico.  Há pouco tempo atrás estávamos todos na mesma situação precária, com endividamento absurdo e sem capacidade de contrair novas dívidas ou investir.  O desenvolvimento regional é importante porque fortalece o comércio e a indústria, tanto a nossa quanto a desses países.  O efeito esperado é parecido com o que ocorreu no Brasil com os programas de redistribuição de renda.  Pobres com dinheiro gastam seus recursos porque precisam de coisas.  Com isso, injetam mais recursos na economia.  É uma conta simples.  Ainda assim, se for o caso de um vizinho ter dificuldades para nos pagar, que atitude devemos tomar?  Embargar economicamente?  Romper acordos de livre comércio? Bloquear importações? Deixar que o país devedor se afunde, levando para a miséria milhões de pessoas?  Tratam-se de dívidas pequenas para o porte do Brasil, e sei que é questão de posicionamento pessoal, mas não acho que essa via seja a mais produtiva ou mesmo a mais humana.

Cuba sofre com as consequências de um embargo econômico que não faz o menor sentido nos dias de hoje.  O que estamos fazendo lá não é caridade, é aproveitar uma oportunidade de investimento – não fosse assim, acreditem, a Fiesp não estaria tão de tesãozinho com o negócio.

Agora concluindo: o problema real não me parece ser o que vem sendo alegado pelo facebook.  O investimento é justificável do ponto de vista econômico, não representa um ralo pelo qual parcela significativa do dinheiro do BNDES esteja escoando para fora do país.  Também não se trata de um investimento em monta que prejudique qualquer coisa que possa ser feita por aqui.  Se os governos locais não conseguem ter acesso a esses recursos, as explicações são de ordem legal, política ou mesmo por incompetência na fase de elaboração de projetos.  A iniciativa privada não tem tido dificuldades com isso.

Só me resta pensar que a reação que assistimos agora é proveniente de uma hipersensibilidade desenvolvida por algumas pessoas só porque se trata de Cuba.  Quem reclama aqui são aqueles que piraram com o “mais médicos”, é quem perde o seu tempo investigando a vida pessoal do Fidel buscando qualquer coisa que justifique o investimento em Cuba como algo imoral.  Nesse sentido, cabem alguns questionamentos: é imoral negociar com a China?  Trata-se de outra ditadura comunista.  Ou vale tudo porque a escala de valores é outra?  Se for o caso, quanto dinheiro compra a honra do investimento oficial?  E com os EUA, que cometem a sua cota de barbaridades mundo afora, inclusive grampeando o celular da nossa presidente?  Alguém pensa em deixar de negociar com a maior economia do mundo?  E com o Japão, que mata tantos golfinhos, meu deus???

Em política externa, é comum que se façam concessões desse tipo.  FHC, o herói tucano, tinha bom relacionamento com Fidel e Chávez, e não me lembro de qualquer birra por conta disso.  Além disso, tinha suas relações questionáveis...como quando condecorou Alberto Fujimori com a Ordem do Cruzeiro do Sul, lembram? E Fujimori tinha uma biografia, digamos, questionabilíssima.  Enfim, ninguém achava que havia um golpe militar em curso, ou uma revolução comunista em andamento por conta destes episódios.

FHC claramente desconfortável na companhias de Chávez e Castro.


A relação Brasil-Cuba é uma relação de política externa, envolve interesses estratégicos econômicos.  Ocorreu sob FHC, sob Lula e continuará acontecendo, porque não há o que justifique um embargo brasileiro à Cuba.  E, sinceramente, eu tenho dificuldades em acreditar que os “cubófobos” estejam preocupados, de fato, com as condições de trabalho e as garantias individuais dos cubanos.  O motivo, e vocês não precisam admitir em público, é raivinha do PT e vontade de colar no governo federal a pecha de apoiador de líderes autoritários.  É o PNDH-3 da vez.




*pra não perder os tópicos relacionados do facebook, já que a discussão tende a rolar por lá mesmo:

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