segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Só pra avisar

Eu voltava da natação, era quase oito e meia da noite. Caminhava pensando, como sempre faço, pela Marquês de Abrantes, rua principal do bairro do Flamengo.

Uma moça jovem (não sei qual a idade) entrou na mesma calçada em que eu estava, uns quatro metros à minha frente, e andou na mesma linha que eu durante duas quadras. Usava uma camisa do Fluminense, uma mochila e um shortinho jeans realmente "short".
Não era exatamente algo "indecente", especialmente para a paisagem subpraiana dos bairros da Zona Sul do Rio; mas deixava as pernas inteiramente de fora, e, como a moça tinha uma silhueta bem-desenhada, chamava atenção.

Era uma paisagem casual e bonita, enfim.

De imediato me ocorreu que há gente que iria resmungar diante da cena; pessoas que, seja verbalmente ou simplesmente em pensamento, iriam reclamar do short da moça.
Que atitude pequena e tosca, pensei, a de não conseguir nem apreender a beleza de um corpo alheio sem se ofender, sem querer controlar. Ressalto que a moça não se tratava nem sequer de alguém que se enfeitou para "aparecer", nada de "piriguetismo"; a mistura de camisa de time com shortinho curto me pareceu um fruto natural da informalidade adolescente e do calor, algo corriqueiro*. O que chamava atenção mesmo era o fato das pernas da garota serem brancas e bonitas.

Mas bem: dessa reflexão sobre a paisagem humana à frente e seus hipotéticos detratores moralistas, pensei de imediato na situação-tipo em que pedreiros em obra, vendo uma mulher passar, gritam e gemem "gostosa" (entre outras coisas muito mais "calientes"). Que pequeneza absurda das pessoas nesse momento, pensei: ser incapaz de presenciar beleza sem querer constrângê-la, agredi-la. E me dei conta de que mexer com mulheres na rua é a forma de "punição" mais comum que homens dão às mulheres. Qual a "infração" que cometem essas mulheres? O crime de despertar a atenção deles, de atiçar seu desejo. Enfim: o delito simples da beleza. Ou, às vezes, simplesmente o delito de serem do gênero errado. Pois não se engane: é nada mais nada menos que o corolário machista do moralismo mexer com mulher em rua: o que se quer é simplesmente punir pelo constrangimento -- e, nesse ato, afirmar-se a si mesmo como dominante, como aquele que pode tomar liberdades. O que a cantada de rua quer dizer é isso: "Só pra avisar: eu = homem > mulher, => mando nessa porra => seu corpo é para o meu consumo".
Quem chama isso de "elogio" está sendo muito sonso ou muito, muito desonesto.

Pois bem: boa parte dessa linha de pensamento me veio num espaço de tempo quase tão curto quanto o short da moça (obviamente, de maneira menos articulada do que a apresentada aqui). E eis que, quando acabo de pensar, o universo me responde.
A moça do shorts passa por um botequim velho; homens ficam olhando; alguns segundos depois, eu passo pelo botequim e, nesse momento EXATO, dois homens -- típicos tiozões grisalhos e meio gordos de boteco -- começam a bater palma alto para a moça e a dizer "é isso aí!". Impossível quem estava do outro lado da rua não ter ouvido.
Repito: isso num bairro quase praiano, onde roupas curtas são parte razoavelmente comum da paisagem.

Então parei de andar por um momento.  E, pela primeira vez na vida, considerei seriamente bater boca com pessoas estranhas no meio da rua por algo que não me dizia respeito diretamente. Dizer a eles o quão toscos eram, perguntar o que exatamente queriam com aquilo, o que achavam estar fazendo.

Quem me conhece bem sabe que beiro ao autismo no quesito atenção ao que me rodeia, e que costumo ser lento na hora de agir ou reagir. Não sei lidar com pessoas que não conheço, nem gerir conflitos, e nem tenho prática em dar lições de moral. Tentei pensar no que falar, mas não me ocorreu nada suficientemente inteligente de imediato; nesse momento de hesitação, meu habilidoso lado "deixa-disso" argumentou em microssegundos coisas do tipo "que bem vai fazer, que efeito terá? E se você perder a calma, gritar e os caras acabarem querendo brigar com você?". Reforçando o argumento dele, a moça já estava lá na frente, muito à frente, caminhando para longe de um tipo de situaçãozinha desagradável que não deve ter sido a primeira e, certamente, não será a última de sua vida.
E continuei andando até meu apartamento.


Penso agora que um dos motivos de escrever isto é, sobretudo, o fato de não ter conseguido dizer nada naquele momento (o espírito da escada é o santo padroeiro dos blogs). Mas, mais que isso, acho que escrevo porque me impressionou a coincidência: é muito raro ter seus pensamentos ilustrados de imediato pela realidade empírica.


Não vou repetir o quão escroto é a coisa toda (OK, já repeti), mas afora o óbvio machismo, me impressiona o recalque necessário para que um tiozão mexa com uma menina: trata-se, no fundo, de querer anular aquilo que não se pode possuir. Não basta simplesmente olhar e admirar, é preciso se auto-afirmar -- por que, ao mostrar ao tiozão aquilo que ele não "tem" e não pode "ter", ele se sente diminuído em sua masculinidade; é preciso vexar publicamente -- para afirmar seu poder a si mesmo e evitar a mínima sensação de insegurança.

Há, claro, quem acha relativamente aceitável, tranquilo e, afinal, "normal" esse tipo de situação; e quem tenta, de alguma maneira, justificar com argumentos (sic) do tipo "que isso, é só um elogio; meio tosco,talvez, mas um elogio -- nem falaram palavrão!"; ou do tipo "também, ela tem que se cuidar mais, né, nem todo mundo é 'sofisticado' e gentil e sabe respeitar mulher..."; ou ainda "pra que se indignar com tão pouco? São só homens, tiozões de bar, tava querendo o quê?"

Quem sabe ela pára de usar shortinho na rua agora? Aí ela terá aprendido a se "portar"; a se "dar o respeito"; a "não confiar em homem"? Talvez não, claro; afinal, é coisa muito pequena perto do mar de pequenas (e grandes) merdas que muitas mulheres têm que aguentar ao longo da vida.


Bem, aos que praticam esse tipo e atitude e aos que a justificam, um recado sincero e sem muita importância: neste momento, neste aspecto específico, eu tenho nojo de vocês. De verdade.

Só pra avisar.



*Não que faça alguma diferença se ela tivesse se emperiquitado, querendo realmente "se mostrar": é um direito. Se você se incomoda com isso o bastante para se sentir no direito de vexar publicamente uma pessoa, bem, saiba aqui e agora: o problema é seu. Literalmente.

9 comentários:

André disse...

Belíssimo post Gabriel... sempre tive a mesma opinião que você e, até não muito tempo atrás, sempre evitava fazer algum comentário público em relação a situações degradantes como essa (ainda evito as vezes).

Se me permite a colocação, esse nojo que sentimos com este tipo de situação deveria ser expandido para outras barbaridades que ocorrem por aí, como piadas homofóbicas, apoio a corrupção, entre outras.

Seu texto me fez lembrar um documentário (não sei pode ser chamado assim, pois, só tem 17min) feito na Bélgica com um câmera escondida - uma garota anda pelas ruas de seu bairro filmando os absurdos que homens dirigem à ela... um belo post sobre esse minidocumentário pode ser lido no seguinte blog: http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/2012/09/olha-quem-manda-aqui-nao-mais.html.

Como já disse aqui uma vez... pobre do meu irmão que cresce no meio da espetacularização da barbárie.

Abraços,

André.

Ps: adorei o novo logo do blog.

luciana rosa disse...

Parabéns Gabri e, em nome de todas as mulheres, obrigada!

Gabriel G; disse...

André e Lu, obrigado!

André, irei checar o documentário... eu já li algumas vezes o "Escreva, Lola, escreva" e sempre gostei.
Abraços

Gabriel G; disse...

Sobre o assunto: resultado da pesquisa "chega de fiu-fiu", à qual apoio TOTALMENTE.

http://thinkolga.com/2013/09/09/chega-de-fiu-fiu-resultado-da-pesquisa/

Camila F disse...

Olá! Já tinha lido seu post, e guardado cá comigo.

Acabo de me sentir cerceada do meu direito de passar minha hora de almoço com meu livro no parque.

Senti insegurança e tristeza... Voltei correndo para a repartição fechada e insalubre...

E vim agradecer por seu texto!
Beijo

Marcel disse...

Ótimo texto Gabriel, acho que só faltou na "equação" o burro movimento de manada que exige sobre força crítica para não cair, claro que evento iniciado por esta cultura que bem traduziste em palavras...

Gabriel G; disse...

Camila,
:)

Fico triste de saber desse episódio pelo qual você passou, mas feliz de ver teu comentário: ele faz esse post valer a pena.
Beijo!

Gabriel G; disse...

Valeu, Marcel.
Esse aspecto que você acabou de citar é super importante, e tenho pensado bastante nele também: pessoas que agridem ou assediam outras em contexto coletivo, pela exigência de "fazer parte do grupo" -- além de receio de ser colocado no grupo daqueles que "merecem" assédio.
É uma dinâmica que todo mundo que frequentou escola já tomou contato, né?

Gabriel G; disse...

https://www.youtube.com/watch?v=HPFcspwbrq8&bpctr=1401314295