sexta-feira, 12 de julho de 2013

paranóia e mistificação

As três características básicas de uma crítica conservadora, segundo Marcelo Coelho:

"Em primeiro lugar, o método de julgar a obra nova a partir de critérios inalteráveis, já estabelecidos, anteriores e externos à própria obra. Em segundo lugar, a avaliação de que vivemos um período de declínio, de decadência, de degeneração, de doença cultural. Em terceiro, a postulação de que o crítico é representante do público, do "homem comum", que está a ser enganado pelo artista. Numa fórmula mais sintética, temos um crítico que é ao mesmo tempo fiscal, médico e promotor de justiça... e seus textos adquirem um ar de boletim de ocorrência, de diagnóstico psicossocial e de denúncia pública."

O rótulo de "Conservador", no modo de dizer de Coelho, não é tanto uma acusação -- ou seja, algo necessariamente ruim -- mas principalmente a identificação de uma postura bem reconhecível. Essas três características levantadas por Coelho juntam coisas tão distantes como a crítica de Monteiro Lobato a Anita Malfatti; o documentário "Why beauty matters", feito pelo filósofo inglês Roger Scruton (conservative auto-declarado); a famosa Exposição de Arte Degenerada organizada pelos nazistas na Alemanha; ou as posições sobre arte e arquitetura do professor de matemática e teoria urbana Nikos Salingaros.

O interessante é: Coelho fala da área cultural, mas essas três características podem ser vistas em discursos políticos (a maioria à direita, mas vários à esquerda) e em posições em geral sobre "o universo, a vida e tudo mais". Só pra ilustração, vou dar um exemplo meio fácil e caricato:  algumas das respostas conservadoras mais comuns ao casamento homossexual.

- Julgar um fato novo a partir de critérios inalteráveis, anteriores e externos ao fato: falar que dois homens não podem casar porque casamento é, por definição, a junção de um homem e uma mulher;

- Diagnosticar a derrocada geral, um "fim dos tempos": casamento entre pessoas do mesmo sexo é danoso porque denigre a essência da família, destruindo seu valor social -- o que automaticamente coloca os gays interessados em casar como egoístas que, conscientes ou não, não ligam para que o mundo em volta de si caia desde que tenham sua luxúria narcisista satisfeita. (Nesses casos, a crítica toma um caráter de urgência).

- Colocar a si mesmo como um representante do "homem comum" diante do tal fato acintoso: em geral, críticos ao "casamento gay" alegam estar simplesmente vocalizando o senso comum, o senso das pessoas que estão lá em casa se indignando, mas que estão por demais alijadas do debate pela "ditadura" de pensamento críptico e auto-indulgente dos intelectuais e militantes ditos "progressistas" -- ou da dita "ditadura" de complacência do "politicamente correto".

Não me refiro aqui ao puro "conservadorismo de ignorância" -- algo mais despolitizado a que todo ser humano está sujeito, e que é só emanação do atávico medo do desconhecido. Todas as pessoas são mais "conservadoras" em alguns aspectos e menos em outros. Tento me referir aqui a certa postura intelectual bem clara e reconhecível.

Só pra terminar, jogo minha impressão descuidada e não testada sobre o "conservadorismo ilustrado": ele faz sentido principalmente para quem considera, deep inside, que a idéia, o princípio, antecede o fato, o acontecimento. (e aí, por exemplo, se compreende porque, nessa óptica, um embrião sem sistema nervoso e sem capacidade de vida independente do corpo de uma mãe é tão "indivíduo" quanto um ser humano nascido e pensante).
Me parece que, para pessoas com essa posição, a perda de valores e referências comuns -- que, geralmente, são tidos como "naturais" -- é sempre algo e si terrível, catastrófico; e é, em geral, encarada como artificial ou doentia, que só pode levar à dissolução de tudo o que é naturalmente bom, belo e verdadeiro.


(rodapé final: por essa impressão teleológica e essencialista que o conservadorismo me dá que tendo a desconfiar seriamente da existência de conservadores ateus. Mas, ei: pode ser que eu esteja completamente errado e este blog aqui não seja um cavalo de tróia querendo dar aparência de secularismo a uma agenda nada secular. Vai saber.)

3 comentários:

Gabriel G; disse...

Detalhe importante: o rodapé final está meio fora de contexto. Ele NÃO quer implicar que todo aquele que se identifica com posições conservadoras é um "crente" ou um "filhodaputa falso" ou o que seja, nem que tenha sempre uma "agenda" teológica por trás do que diz; na verdade, é mais pra manifestar minha surpresa com o jeitão suspeito do blog citado.

Gabriel G; disse...

Detalhe importante 2: o título do texto NÃO implica que todo "conservador" é paranóico e/ou mistificador (embora eu tenha encontrado vários assim); é uma referência ao título do artigo de crítica a Anita Malfatti feito por Monteiro Lobato (linkado no texto)

luciana rosa disse...

sei lá.. cada vez mais eu percebo que postura conservadora e concepção religiosa andam juntas pq, na maior parte das vezes, é a religião que diz o que é naturalmente bom e belo e está como ponto de partida do raciocínio.