quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Eu nunca quis ser jovem

Um dos blogs de arquitetura que visito ocasionalmente é A Barriga de um Arquiteto (cujo nome, salvo engano, vem do filme The Belly of an Architect, de Peter Greenaway). Seu mantenedor, o lusitano Daniel Carrapa, é também um arquiteto-professor-blogueiro e, além de escrever muito bem, tem um campo de interesses e reflexões com vários pontos de tangência aos meus (academicamente, inclusive). O post de Carrapa que reproduzo mais abaixo -- e que não é sobre arquitetura -- me pareceu particularmente relevante. 
 Lina, tempo e espaço.
A citação inicial de Lina Bo Bardi me chama atenção não só pela pessoa citada-- arquiteta que admiro não só pela arquitetura em si, mas pela rara e preciosa imbricação "modernista" entre elaboração arquitetônica e visão política/estética do mundo; mas porque eu, ainda que sempre um tanto moleque e acostumado a ser  "o mais novo" várias vezes em diversos contextos, nunca fui exatamente encantado com a minha própria juventude. (Devia ter postado isto quando fiz trinta anos, em abril...)
Meu interesse no texto está também no fato de que, embora um pouco mais novo, eu me veja forçosamente incluído na "geração" que Carrapa define como sua.


Eu nunca quis ser jovem
Daniel Carrapa
Eu nunca quis ser jovem. O que queria era ter história. Estas palavras de Lina Bo Bardi são hoje tão contra-corrente que merecem reflexão. O modo como encaramos o acto de envelhecer muda durante o percurso de uma vida inteira. Todos sabemos, em abstracto, que vamos morrer um dia. Mas, enquanto jovens, a abstracção esmaga-lhe o significado. É bom ser imortal.

Recordo-me do tempo em que envelhecer tinha um sentido de desfasamento das coisas. Ficar velho é perder o fio da contemporaneidade, é o caminho para a incompreensão do presente, na linguagem, na música, na moda. Ah, quanta arrogância.

Há um momento na vida em que a morte, por uma conjugação de factos, se torna real. Percebemos que a morte está lá, algures na nossa frente, inevitável. Para alguns a consciência trará temor, angústia. Para todos, talvez, um enorme sentido de perda das coisas, de toda a experiência, todo o saber que se vai perdendo em nossa volta, até que nós próprios nos extingamos, um dia, no vazio do esquecimento dos outros.

Presumo que não seja fácil ser jovem, hoje. Mergulhados num mundo que os envolve em subtilezas, adquirindo comportamentos, costumes, códigos invisíveis. Curioso que a sociedade da televisão produza uma imagem eternamente rebelde dessas criaturas mitológicas, para citar João Lopes, estereotipada à exaustão em mil e uma novelas “para jovens”. Uma estética desalinhada, no penteado, nas calças descaídas, no estilo informal, simulação perfeita de uma irreverência toda ela ficcionada. Quem leia o conteúdo pela superfície tomará essa imagem como digna dos novos hippies, de tão ostensivamente anti-sistema. E no entanto, nos mais pequenos pormenores, se denuncia o afinco de um produto de consumo desenhado em laboratórios de marketing social, fabricando pequenos seres para quem a vida não faz sentido sem os seus iphones e ipods.

Não, não é fácil ser jovem, hoje. Não é fácil resistir aos estrategas dos targets que barricaram o seu trajecto, implacáveis. Não é fácil compreender que nem sempre o que somos e o que pensamos nasceu na nossa cabeça. Que as convicções, os gostos, os desejos, até a formatação dos afectos, nos é incutida por uma profusão de veículos externos afinados para nos seduzir como esponjas. 

Sei que estou a ficar velho. Pertenço a uma geração sem causas. A minha geração não tem nada que a defina para além de uns programas de televisão e umas gasosas que deixaram de existir. Não, nós não fizemos nenhuma revolução, não protagonizámos nenhum conflito de gerações, não vislumbrámos nenhum sentido, não erguemos nenhum símbolo, não alvitrámos doutrina em que valesse a pena erguer uma sociedade. Na melhor das hipóteses, mostrámos o rabo a um qualquer ministro por causas fúteis há muito esquecidas de todos.

Somos uns rebeldes na nossa cabeça. Uma coisa apenas nos define. Não gostamos muito uns dos outros. Mal educados para a vida em comunidade, somos complacentes com os nossos defeitos que intoleramos, passe a palavra, em todos os outros. Desengane-se quem tome tal por desatenção ou charme latino. É, tão só, uma tragédia.
Sim. Eu sei que estou a ficar velho.

2 comentários:

Pedro Caluzni disse...

Interessante e angustiante o texto de Daniel Carrapa. Como já disse Milton Santos "O consumismo é hoje o grande fundamentalismo" destas gerações.
Abraço!

Pedro Caluzni disse...

"Monumento a um jovem monolito"

Ao completar trinta anos, você ganhará os olhos duros dos sobreviventes. Só verá sua amada na parte da manhã e da noite, só encontrará seus pais de vinte em vinte dias. E quando seus velhos morrerem, você ganhará um dia de folga para soluçar e gritar que deveria ter ficado mais próximo deles. Sorria, você é um jovem monolito e a vida vai ser pedrada. O trabalho é uma grande cadeia e você sentirá muito alívio por ter uma. A cadeia engrandece o homem. E o sangue do dinheiro tem poder. Reze. Reze ajoelhado por uma carreira, dê a sua vida por ela. Viva como todo mundo vive, você não é melhor que ninguém. Porque o dinheiro move montanhas, o dinheiro é a igreja que lhe dará o céu. Sorria, você é um jovem monolito e o mundo é uma pedreira. Eles irão moer você todinho. De brinde, muitos domingos para chorar sua falta de tempo ou operar uma tendinite. Nas terríveis noites de domingo, beba. Beba para conseguir dormir e abraçar mais uma monstruosa segunda-feira. Aquela segunda-feira que deixa cacetes moles e xoxotas secas para sempre. A vida é uma grande seca, mas ninguém sente calor: Nas salas refrigeradas, seus colegas de trabalho fabricam informação e, frios, sonham com o dia dez do próximo mês. Você é o Babaca do Dia Dez, não há como mudar o seu próprio destino. Babaca que acorda assustado, porque ninguém deve atrasar mais de vinte e cinco minutos. Eles descontam em folha e você é refém da folha, do salário, do medo. Ninguém tem o direito de ser feliz, mas você ganhará a sua esmola de seis feriados por ano. E todos nós vamos enfrentar, juntos, um imenso engarrafamento até a praia. Para fingir que ainda estamos vivos. Para mostrar que ainda somos capazes de sentir prazer. Para tomar um porre de caipirinha sentado em uma cadeirinha de praia. É uma grande solução. E você ainda ganhará quinze dias de férias para consertar a persiana, pagar contas, fazer uma bateria de exames. Ninguém quer morrer do coração, ninguém quer viver de coração. Eu não duvido da sua capacidade de vencer: Lembre disso no primeiro divórcio, no primeiro infarto, no primeiro AVC.

André Dahmer