quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Brasília, outro lugar (2)



arte e lugares outros



Brasília nasceu uma obra de arte e uma utopia.
Digo "obra de arte" num dos sentidos "tradicionais" modernos (mais ou menos desde o século XVIII) que se costuma compreendê-la: fruto materializado para o mundo de uma idealização individual do "espírito".




Em contraste à "arte", eu poderia dizer que as cidades costumam ser produtos de cultura: uma produção social e coletiva de sentidos e de fazeres e de formas, cunhadas no diálogo e no conflito das práticas sociais "mundanas". 


Brasilia, conquanto seja coletiva no sentido estrito em que toda construção civil o é -- pois são muitos os que a constroem -- é também em certa medida a realização idealizada por um número reduzidíssimo de pessoas. Número geralmente resumido, por propósitos práticos de narrativa, a dois: Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Nesse sentido (discutível) que aqui dei à "arte" moderna, há razões para considerar Brasília como sendo talvez  a mais vasta e definitiva obra de arte já criada na história recente da humanidade.



Acho essa linha de pensamento instigante porque é também fácil relacionar muitos de seus defeitos de origem às limitações inerentes de uma "obra de arte tradicional" frente à realidade. Limitação que poderíamos resumir em não considerar a cidade e a arte como  fruto coletivo. 
É preciso se perguntar: afinal, como uma cidade inteira se faz do nada sem considerar planos de moradias para as multidões que foram lá arduamente trabalhar na sua construção? Mas é claro que, ao se considerar aqui a velha questão da subordinação dos meios aos fins, é necessário lembrar do quanto a imbricação de processos e meios "atrasados" e espúrios a fins vanguardistas e "inovadores" está no D.N.A. das relações de classe de nossa sociedade de "liberais escravistas e comunistas empresários".


Mas a questão é que Brasilia era utopia, para além das conotações nacionalistas de refundação do "país do futuro", porque uma obra de arte é sempre uma utopia.
Não digo "utopia" no sentido popular de "mundo perfeito e impossível" (embora uma obra de arte, por ser um sistema fechado de regras autoreferentes que fazem sentido entre si seja, como a matemática, o que mais se aproxima do que chamamos de "perfeição"). Digo utopia no sentido mais literal da palavra cunhada por Thomas More: "ou-topos", ou outro lugar.




Brasilia é esse lugar outro do Brasil: tenho para mim que sua primeira característica de nascença, mas do que ser a si mesma, é a de não ser nenhuma das outras capitais do Brasil -- não ser Salvador, São Paulo, Recife, e principalmente não ser o Rio de Janeiro. Brasília se inicia, então, como esse lugar negativo, vazio.



democracia sonhada do vazio


Todos os signos arquitetônicos tradicionais do poder costumavam ser centrados nos edifícios. O poder era encarnado e imortalizado neles: os edifícios amedrontavam e impressionavam. Mas a caracterização arquitetônica de brasília, embora monumental, não amedronta; o que assusta e oprime em Brasília não é o poder dos edifícios -- é o espaço vazio.


Brasília em sua inauguração


O espaço vazio também é objeto de poder, claro. No Vaticano, o vazio da Praça de São Pedro é o enquadramento monumental do poder "sublime" da divindade "encarnada" na Basílica-mor da cristandade. Em Versailles, o "vazio" paisagístico é um conjunto supra-desenhado de jardins monumentais que criam perspectivas de amplidão absurda, falando do poder da monarquia francesa em seu ponto culminante. 
Mas em Brasília, o espaço vazio domina amorfo, não desenhado. Ele não é um coadjuvante desenhado por edificações, mas uma realidade dada, abstrata e infinda, na qual estas se inserem pontualmente.

Concedendo-me o precioso luxo da ingenuidade: diria que é naquelas fotos de multidões no eixo, cheias de gente observando ou protestando, que o sentido da amplidão de brasília se concretiza.




Brasília é uma construção simbólica de democracia. E talvez por acaso (e talvez não), a verdadeira democracia, a democracia em sua raiz, é um espaço vazio: pois o objeto da democracia -- o "povo" -- não tem nenhuma substância pré-dada, nenhuma"essência". Não é um dado grupo específico, uma etnia ou uma entidade coesa, não possui identidade real dada nem limites que não possam ser revistos. O "povo" da modernidade é a unidade coletiva da total instabilidade coletiva, onde tudo pode e está para ser criado -- a "democracia é esse espaço público, a res publica. 
Essa "democracia" vazia é naturalmente assustadora; e também é inabarcável à percepção fenomênica cotidiana do homem.


É esse vazio que Brasília encarna, é essa "insônia" de Clarice Lispector.  É possível ver, como muitos, Brasília como esse imenso espaço visual que derrota, oprime o indivíduo; mas a esses pergunto se não é precisamente ISSO que é o indivíduo quando confrontado sem mediações à "face gloriosa" da democracia: minúsculo, insignificante. Só a coletividade ocupa esse espaço.




O significado da minha Brasilia é a desse espaço ocupado por multidões; para além da formação de arquiteto e do encantamento com a forma e a fotografia: foi assim, cheio e revoltoso, que vi o eixo monumental pela primeira vez; e é assim que ela fica até hoje na minha memória.


Brasília pode ser tratada ou ocupada de maneira autoritária, usada como disneylândia burocrática, como o foi e o é há décadas. Mas o vazio está lá; e pra mim ele permanece, promessa ao futuro, à espera que "o povo" (seja o que isso for) o tome para si.




política de quintal e antibrasília


São comuns críticas a Brasilia por ser afastada, por estar fora do alcance -- aliás, estas são particularmente comuns entre cariocas um pouco mais velhos e conservadores. 


Compreendo bem os motivos, mas sou desconfiado de tais críticas. Nelas eu tendo a ouvir o eco de uma mal disfarçada saudade de uma política palaciana de favores. Uma política carioca, de Palácio do Catete, onde os políticos não poderiam "fugir da população" que os confrontaria.
Acredito que essas críticas dificilmente podem ser consideradas realmente democráticas. Sua concepção de "democracia" às vezes vai pouco além do direito de "reclamar cara a cara com os políticos". Ou seja: uma política que, travestida de "igualdade", na verdade é essencialmente doméstica. Uma política típica do "homem cordial" brasileiro (termo que, ao contrário do mal-uso genealizado, não quer dizer "homem amigável", mas sim homem que se pauta pelas relações pessoais. O homem cordial é tanto aquele que dá tapinha nas costas quanto aquele que pede favores em troca para fazê-lo. E, para mim, também é aquele que vincula a "participação" política a algum ideal de "conhecer" o político e poder encará-lo de perto.)


Morando no Rio, é até difícil falar de Brasília sem falar da antiga "anti-brasília", o Rio de Janeiro. Enquanto a paisagem brasiliana é vazio quase abstrato, a paisagem carioca é total protagonista. Enquanto a população brasiliana ainda está para ter uma "cara própria", o Rio exporta e esbanja sua identidade, contagiante e irritantemente seguro de si. Mas bem: uma capital com um Palácio do Catete seria ótimo para quem pensa e quer o Brasil em escala doméstica; um vício no qual, a despeito dos esforços paulistanos, os cariocas ainda me parecem ser absolutos campeões nacionais. Por motivos até compreensíveis. E é pelo pequeno tempo de convivência que me sinto tentado a dizer: sorry guys, o Brasil é MUITO maior que vocês. As futuras olimpíadas serão mais um desses momentos em que a mídia fará esforço para que se esqueça desse fato, mas eu pelo menos continuarei repetindo: O Rio não é mais distrito federal há 50 anos. Move the fuck on.


Sempre ouvi na minha vida inteira, e acho que sempre vai haver quem use o Rio como epítome do que é o Brasil, do "verdadeiro Brasil": essa natureza exuberante, essa gente criativa e bronzeada e desorganizada. Eu já digo que o não é o Rio que é mais "brasileiro" que o resto; os brasileiros é que são todos, uns mais outros menos, um pouquinho "cariocas". 
Mas tudo isso permanece pra mim algo doméstico e litorâneo. 


Pra mim o Brasil, como a Brasília mítica, é uma vastidão improvável.




Epílogo:


Quem leu este texto estranho até aqui pode ter percebido que falo de uma Brasília muito particular. Como indiquei antes,  desobrigado de manter a adequada distância crítica, falo aqui da minha Brasília mítica, a Brasília que vi encantada com olhos de estudante e que vejo nas fotos clássicas, a Brasília que me assombra não em desenho mas na própria idéia de sua existência.


      


Ao menos no instante congelado das fotos, nos parece que é com certo assombro que os migrantes se apropriaram dos edifícios no dia da inauguração: andavam naquela obra de arte, de ficção científica, de fantasia "paranóico-crítica" modernista.












Aquele foi o último, talvez pleno, momento de "Brasília-obra-de-arte". Brasília, no uso de décadas, agora que gerações nela nasceram e cresceram, é hoje uma obra de cultura. Já é uma construção coletiva. Já existem gerações de verdadeiros "brasilianos".







Mas a cidade permanece na mente de muitos brasileiros -- e, em muitos sentidos, na prática -- como esse "outro lugar".



7 comentários:

sandramilk disse...

embasbaquei!!!!! texto e imagens me tiraram a fala....

Franco disse...

já li algumas vezes, adorei!!

Impressionante como você coloca coisas que acho que estão dentro da gente (ou ao menos deste "brasiliano"). Sinto este espaço vazio a ser ocupado que menciona sempre que olho para o céu: tem vezes que o horizonte se revela pelos flocos de nuvem e outras pela cúpula terrestre que se evidencia quando não há qualquer nuvem!

Também gostei dos "pingos nos is" que ele faz ao dizer que o Distrito Federal já não é mais o Rio (há 50 anos) e que na verdade nós é que temos o rio dentro da gente e não o contrário...Aliás, como "brasiliano" sempre me senti um pouco carioca, como também mineiro, goiano...

São muitas viagens que são tão bem amarradas numa narrativa bem modernista, creio. Imagine só, eu fazendo parte de uma obra de arte, como figurante da pintura que a acultura e a dá vida (consequentemente a renova, por vezes na realização da ultopia, o outro lugar, por outras na anarquização ou negação dessa ultopia).

Tem muita coisa neste post que ainda não me caiu a ficha! Acho que meus sonhos jungianos me ajudarão a encontrá-las...

As fotos, estas falam por si e não sei quem compõe a arte de quem se do post, ou das fotos.

Adorei o blog!!

Valeu pela dica, Sandra.

sandramilk disse...

Uma amiga querida ,Dora ,moradora de BSB por um tempo , me pediu para postar depois de ler o texto do Gabriel....

O meu outro lugar se encontra
onde apoio a minha cabeça
Quando te abraço.
Essse espaço vazio de ti em mim,
Esse sim, é o meu traço reto
Sinuoso também, meu arquiteto

Esse espaço pleno de vazio
E o frio seco pra completar
Ai Brasília...sonho e assombro de nordestinos
Sem tino, sem destino prá caminhar
Brasília, Bulcão, Niemeyer, Costa
Só o tempo mostra quem gosta

Espaço pleno da energia do dinheiro
Que espalha a dor, ao invés do seu destino verdadeiro
Aquelas colossais histórias de laranjas
De anões, de biônicos, que o poder esbanja

Ai Brasília inventada, de grana na cueca.
De meleca, de detrito federal.
Ai, o céu, e o sol da cidade, o eixo monumental
Me dá uma saudade, uma saudade do Ceará
E o Paranoá nem é o Cocó
Nem Pajeú.
É uma invenção só
De Aza Norte a Aza Sul
Onde estou eu?
Onde estás tu?

Toda enquadrada eu fiquei
E eu mesma, eu mesma, onde eu deixei?
Não me encontrei no monumento
No redondo, no quadrado, no cimento
Armado, todo armado meu coração de Dragão
Do mar de Iracema, disse não, não,não

Só digo sim a essa cidade dos paletós
Se o encontro com esse outro lugar estranho
Diminuir esse vazio, tão cheio, tamanho
De ti em mim, de mim em ti, de nós em nós.

Maria Auxiliadora de Paula

sandramilk disse...

Engraçado Brasília tem para mim sabor de amizade... Um espaço que me deu de presente muitas pessoas queridas... Pensar nesta cidade sempre me aquece o coração...
Talvez por isso o texto de Gabriel mexeu tanto comigo....
Vira e mexe , lá estou eu olhando as fotos e percorrendo as palavra....
Pensando quem ainda não pode ler este texto....
Acho que ele vai se tornar um point no Wilbor....kkkkkkk Pelo menos no que depender de mim....

Anônimo disse...

Toda vez que olho pras fotos de Brasília lembro de um documentário que vi uma vez, e que levou anos para ser finalizado. Chama-se "Conterrâneos Velhos de Guerra", de Vladimir Carvalho.

Brasília ainda não conhece sua própria história. Talvez por isso ainda pareça um avião pousado no Cerrado -- aterrisagem muito recente, visto que a vegetação local marcante ainda não se embrenhou em torno dos pés, vigas, brancuras dos edifícios...

Franco disse...

Aí vão mais algumas dicas para os interessados:
1) o livro (de João Bosco Bezerra Bonfim, e o documentário (de Manfredo Caldas) "Romance do Vaqueiro Voador";

1) o livro de Tino Freitas, "Brasília de A a Z" que, embora voltado ao público infantil, traz uma série de curiosidades da cidade que muitos de nós "brasilianos" desconhecemos.

http://folhetodecordel.com.br/2010/romance-do-vaqueiro-voador-e-um-dos-50-escritos-sobre-brasilia/

http://www.youtube.com/watch?v=gm7F2IdXrNE

http://literatino.blogspot.com/

Franco disse...

Mais uma dica, da série "Brasília, outro lugar", com fotos de Brasília, outros tempos:

http://entrequadras.blogspot.com/