segunda-feira, 21 de junho de 2010

Saramago

Morreu. E muitos falaram e vão falar muitas coisas; não tenho nada particularmente relevante para falar, mas ainda assim vou dizer três coisas.

1.  Saramago foi um daqueles que me fez ficar feliz por eu pertencer à língua portuguesa, e me fazia olhar com certa pena àqueles que não a têm impressa em si.
Após ler Ensaio sobre a cegueira, fiquei contagiado algumas semanas a pensar "saramagueamente", a produzir em minha cabeça frases que parodiavam/imitavam/homenageavam seu estilo peculiarmente e poeticamente lusitano de se expressar. Isso já passou faz tempo, mas ainda agora fico imaginando como os pobres tradutores poderia tentar verter suas saborosas/áridas construções de palavras para o inglês, por exemplo, sem se sentirem completamente inadequados à tarefa e sem sentirem, mesmo que só por um pequeno momento, sua própria língua como algo  inadequado.
(Pensando bem, talvez o filme "Blindness" de Fernando Meirelles seja a melhor adaptação possível de Ensaio sobre a cegueira, não para o cinema, mas para a língua inglesa...)

2. Curiosamente, o primeiro livro de Saramago que li me foi emprestado pelo Marcelo: O Evangelho segundo Jesus Cristo. Foi também o primeiro livro de Saramago de que ouvi falar, ainda na adolescência, através de minha mãe.
Eu andava com uma idéia de roteiro na minha cabeça envolvendo Jesus e o diabo. Meio surpreendido, ao ler o livro vi que Saramago já tinha há muito feito dentro dele algo na direção pretendida por mim (e com aquela elegância e profundidade que fazem suas idéias parecerem rabiscadas por um chipanzé esforçado). Então: Saramago me fez desistir de uma história.
(Ao mesmo tempo, fiquei pensando o que Neil Gaiman -- tão interessado em Deuses como persongens de suas obras --acharia se lesse o livro. Mas aí já entra o problema acima referido da tradução.)

3. O primeiro texto que li de Saramago foi sua introdução ao livro Terra, de Sebastião Salgado. Livro ao qual tenho hoje várias ressalvas (como a todos os livros de SS: qual o mercado em torno deles, afinal?). Mas o texto inicial até hoje está em minha memória.


Oxalá não venha nunca à sublime cabeça de Deus a idéia de viajar um dia a estas paragens para certificar-se de que as pessoas que por aqui mal vivem, e pior vão morrendo, estão a cumprir de modo satisfatório o castigo que por ele foi aplicado, no começo do mundo, ao nosso primeiro pai e à nossa primeira mãe, os quais, pela simples e honesta curiosidade de quererem saber a razão por que tinham sido feitos, foram sentenciados, ela, a parir com esforço e dor, ele, a ganhar o pão da família com o suor do seu rosto, tendo como destino final a mesma terra donde, por um capricho divino, haviam sido tirados, pó que foi pó, e pó tornará a ser. Dos dois criminosos, digamo-lo já, quem veio a suportar a carga pior foi ela e as que depois dela vieram, pois tendo de sofrer e suar tanto para parir, conforme havia sido determinado pela sempre misericordiosa vontade de Deus, tiveram também de suar e sofrer trabalhando ao lado dos seus homens, tiveram também de esforçar-se o mesmo ou mais do que eles, que a vida, durante muitos milénios, não estava para a senhora ficar em casa, de perna estendida, qual rainha das abelhas, sem outra obrigação que a de desovar de tempos a tempos, não fosse ficar o mundo deserto e depois não ter Deus em quem mandar.

Se, porém, o dito Deus, não fazendo caso de recomendações e conselhos, persistisse no propósito de vir até aqui, sem dúvida acabaria por reconhecer como, afinal, é tão pouca coisa ser-se um Deus, quando, apesar dos famosos atributos de omnisciência e omnipotência, mil vezes exaltados em todas as línguas e dialectos, foram cometidos, no projecto da criação da humanidade, tantos e tão grosseiros erros de previsão, como foi aquele, a todas as luzes imperdoável, de apetrechar as pessoas com glândulas sudoríparas, para depois lhes recusar o trabalho que as faria funcionar -  as glândulas e as pessoas. Ao pé disto, cabe perguntar se não teria merecido mais prémio que castigo a puríssima inocência que levou a nossa primeira mãe e o nosso primeiro pai a provarem do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. A verdade, digam o que disserem autoridades, tanto as teológicas como as outras, civis e militares, é que, propriamente falando, não o chegaram a comer, só o morderam, por isso estamos nós como estamos, sabendo tanto do mal, e do bem tão pouco.

Envergonhar-se e arrepender-se dos erros cometidos é o que se espera de qualquer pessoa bem nascida e de sólida formação moral, e Deus, tendo indiscutivelmente nascido de Si mesmo, está claro que nasceu do melhor que havia no seu tempo. Por estas razões, as de origem e as adquiridas, após ter visto e percebido o que aqui se passa, não teve mais remédio que clamar mea culpa, mea maxima culpa, e reconhecer a excessiva dimensão dos enganos em que tinha caído. É certo que, a seu crédito, e para que isto não seja só um contínuo dizer mal do Criador, subsiste o facto irrespondível de que, quando Deus se decidiu a expulsar do paraíso terreal, por desobediência, o nosso primeiro pai e a nossa primeira mãe, eles, apesar da imprudente falta, iriam ter ao seu dispor a terra toda, para nela suarem e trabalharem à vontade. Contudo, e por desgraça, um outro erro nas previsões divinas não demoraria a manifestar-se, e esse muito mais grave do que tudo quanto até aí havia acontecido.

Foi o caso que estando já a terra assaz povoada de filhos, filhos de filhos e filhos de netos da nossa primeira mãe e do nosso primeiro pai, uns quantos desses, esquecidos de que sendo a morte de todos, a vida também o deveria ser, puseram-se a traçar uns riscos no chão, a espetar umas estacas, a levantar uns muros de pedra, depois do que anunciaram que, a partir desse momento, estava proibida (palavra nova) a entrada nos terrenos que assim ficavam delimitados, sob pena de um castigo, que segundo os tempos e os costumes, poderia vir a ser de morte, ou de prisão, ou de multa, ou novamente de morte. Sem que até hoje se tivesse sabido porquê, e não falta quem afirme que disto não poderão ser atiradas as responsabilidades para as costas de Deus, aqueles nossos antigos parentes que por ali andavam, tendo presenciado a espoliação e escutado o inaudito aviso, não só não protestaram contra o abuso com que fora tornado particular o que até então havia sido de todos, como acreditaram que era essa a irrefragável ordem natural das coisas de que se tinha começado a falar por aquelas alturas. Diziam eles que se o cordeiro veio ao mundo para ser comido pelo lobo, conforme se podia concluir da simples verificação dos factos da vida pastoril, então é porque a natureza quer que haja servos e haja senhores, que estes mandem e aqueles obedeçam, e que tudo quanto assim não for será chamado subversão.

Posto diante de todos estes homens reunidos, de todas estas mulheres, de todas estas crianças (sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra, assim lhes fora mandado), cujo suor não nascia do trabalho que não tinham, mas da agonia insuportável de não o ter, Deus arrependeu-se dos males que havia feito e permitido, a um ponto tal que, num arrebato de contrição, quis mudar o seu nome para um outro mais humano. Falando à multidão, anunciou: “A partir de hoje chamar-me-eis Justiça.” E a multidão respondeu-lhe: “Justiça, já nós a temos, e não nos atende. Disse Deus: “Sendo assim, tomarei o nome de Direito.” E a multidão tornou a responder-lhe: “Direito, já nós o temos, e não nos conhece." E Deus: "Nesse caso, ficarei com o nome de Caridade, que é um nome bonito.” Disse a multidão: “Não necessitamos caridade, o que queremos é uma Justiça que se cumpra e um Direito que nos respeite.” Então, Deus compreendeu que nunca tivera, verdadeiramente, no mundo que julgara ser seu, o lugar de majestade que havia imaginado, que tudo fora, afinal, uma ilusão, que também ele tinha sido vítima de enganos, como aqueles de que se estavam queixando as mulheres, os homens e as crianças, e, humilhado, retirou-se para a eternidade. A penúltima imagem que ainda viu foi a de espingardas apontadas à multidão, o penúltimo som que ainda ouviu foi o dos disparos, mas na última imagem já havia corpos caídos sangrando, e o último som estava cheio de gritos e de lágrimas. 


Após tantas e tantas palavras: o resto, disse-o outro, é o silêncio.

4 comentários:

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Que bom que o Tong, dos EUA, gostou do blog.

Cara, não conhecia esse texto do livro do Sebastião Salgado...muito legal.

E quer dizer então que o Saramago, gajo filhodumaputa roubou-lhe uma idéia, o pá? Fez bem! Rsrsrs!!

O Evangelho é um desses livros que de tanto emprestar já não sei mais onde está.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Tava discutindo Saramago agora há pouco, e acabei relendo o teu post. Confesso que cuspi um pouco de água pelo nariz ao ler a seguinte frase:

"Meio surpreendido, ao ler o livro vi que Saramago já tinha há muito feito dentro dele algo na direção pretendida por mim (e com aquela elegância e profundidade que fazem suas idéias parecerem rabiscadas por um chipanzé esforçado)."

Muito bom!

Gabriel G; disse...

Opa, Valeu!

E o Tong, heim? Nunca mais apareceu aqui... ele que amava tanto nosso blog!

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

O Tong tá muito ocupado com o blog dele...o último post diz o seguinte:

尼禄时期的大迫害,虽然只影响到罗马的教会,但是他使用的手法极其残酷。许多
基督徒因为不愿放弃信仰、不愿拜皇帝而遭受酷刑,比如在梵蒂冈花园,基督徒被
挂在石柱上受火刑,在角斗场,基督徒被投去喂饿狮,等等。据传统说法,使徒彼得
和使徒保罗就在此期间殉道。罗马教会也由此大伤元气,但是,罗马教会并未被剿灭,
不久之后,基督徒越剿越多,许多教内活动转入地下。
耶路撒冷教会方面,教会领袖“主的兄弟”雅各早在公元六十二年被当时的大祭司
和犹太公会处以石刑而死。耶稣的另一位世俗兄弟西门继而为教会领袖。
公元六十六年,犹太奋锐党人举行了反抗罗马人的大暴动。尼禄派军阀维斯帕先领
兵开赴中东地区平爆。六十八年六月,尼禄因罗马内乱而自杀,各地军阀抢争帝位。
维斯帕先在群雄逐鹿中胜出,建立新的罗马王朝。新王朝的宗教政策换汤不换药,继
续对基督教会采取高压政策。七十年,维斯帕先的儿子提图斯攻克耶路撒冷,将圣城
几乎夷为平地,罗马士兵进入圣殿,将所有他们认为值钱的东西,包括各类