Abaixo, trechos (longos) do texto (curto) de Rui Sardinha, "espelhinho, espelhinho meu", que foi publicado na revista V!RUS nº 2.
(...) Até a puberdade domina, na criança, o pensamento animista. Assim, não existindo uma linha clara que separe os objetos das coisas vivas, é bastante natural que estes falem, dêem conselho, ajudem os personagens em suas façanhas ou que os homens possam se transformar em objetos ou vice-versa(...). Incapazes de grandes abstrações, os objetos encantados fornecem o substrato material necessário à simbolização das dúvidas e anseios que povoam o universo infantil.
Sabemos, entretanto, que a passagem da infância para a fase adulta se dá justamente através do arrefecimento do pensamento animista em prol das explicações mais abstratas (aquilo que chamamos de pensamento científico ou raciocínio lógico). Cônscio de si, de suas limitações e potencialidades, poderá finalmente promover o questionamento das imagens míticas tão essenciais em momentos pretéritos.
Entretanto, tanto individualmente quanto em termos de estruturas sociais, há momentos onde o vínculo com o pensamento mágico se mostra necessário para compensar a aspereza da vida ou a imaturidade da formação psíquica. Um bom exemplo disso pode ser obtido no conto Branca de Neve.
(...) A necessidade que a madrasta-rainha tem de se reportar constantemente ao espelho mágico (um objeto programado para dizer somente a verdade) reitera obsessivamente seu comportamento infantil. Não podendo sublimar, a madrasta-rainha encontra-se aferrada ao princípio de prazer que a satisfação narcísica do reconhecimento de sua beleza ímpar lhe proporcionava.
(...) É sabido que o modo de existência dos nossos objetos tecnológicos – neste caso, dos objetos computacionais com interfaces tangíveis – aproxima-os muito mais do universo objetivo e lógico das ciências, requisitando também do interator ações e procedimentos afeitos ao pensamento abstrato. A maravilha com a qual aqui se lida não é, certamente, a da ordem do sobrenatural e sim das capacidades inerentes ao processo de desmistificação do mundo. Mas também é preciso não esquecer que este é apenas um dos lados deste cristal multifacetado que é o ser humano, e que o pensamento animista pode, muitas vezes, melhor responder às demandas internas, ainda mais numa sociedade que insiste a nos reduzir a homo consumens.
Mas, assim sendo, uma importante diferença marca a transição dos espelhos mágicos de nossa época daquele narrado pelo conto de Branca de Neve. Se lá ele revelava à madrasta-criança a impossibilidade da satisfação de seus desejos, os atuais oferecem-nos a construção imaginária (hiperbolizada por tais constructos tecnológicos) de um eu que tudo pode, da satisfação plena de todos os desejos. Não mais através das simbolizações, mas da posse desses objetos (o que leva ao surgimento de uma nova categoria – os tecno-excluídos ou deprimidos digitais).
Assim, diante do espelho digital, ao inquirí-lo sobre seu narcisismo contemporâneo, a top model ouviria: “Real senhora, sois aqui a mais bela. Porém Branca de Neve é que de vós ainda mais bela!”, e, diante da infelicidade de seu prossumidor, o espelho acrescentaria: “Não vos preocupeis, clicai aqui e vos fornecerei a lista atualizada de todas as tecnologias de embelezamento disponíveis no mercado”.
E assim, vive feliz nossa madrasta-modelo, pelo menos até que seu dinheiro acabe.
SARDINHA, R. L. Espelhinho, espelhinho meu. V!RUS, São Carlos, n.2, 2 sem. 2009. Disponível em
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