sábado, 19 de setembro de 2009

Moon & Bá (3)

Vou continuar aqui o comentário e crítica iniciados pelo Marcelo sobre os Gêmeos Bá e Moon. (Peço para que os leitores compreendam estes 3 posts na ordem de cima pra baixo, como se fossem um único post: o do Marcelo primeiro, depois a nossa tira, e depois este aqui)

Um detalhe importante a se ressaltar aqui é o espaço diferenciado que os dois irmãos receberam na Folha de São Paulo; um espaço até maior que das outras tiras, que lhes fornece caracterização e destaque na página da Ilustrada.
Os irmãos estão aí há anos, com um trabalho consistente e de qualidade. Mas são o primeiro caso, até onde me lembro, de quadrinhistas que não são conhecidos como humoristas a serem convidados ao nobre rol da ilustrada (pois mesmo os que se afastaram do puro humor, como Laerte, começaram com ele); e são o primeiro caso que fico sabendo de autores que recebem tamanha deferência logo de entrada.

Essa atenção e esse espaço de destaque estão, óbvia e certamente, relacionados menos à qualidade do trabalho dos gêmeos -- que é consistente e belo já há anos-- do que ao sucesso gerado pela premiação do Eisner. Dá pra entender: enquanto o tão esperado Oscar brasileiro não chega nunca, de repente o Brasil ganha uma premiação equivalente em uma área que quase ninguém na imprensa dava importância. Parece o Gustavo Kirten ganhando o troféu em Roland Garros: de repente, tênis fica importante pra mídia!

Sendo justo: com todos os defeitos que tem, a Folha possui o melhor conjunto de HQs em jornal do Brasil (estou aberto a opiniões contrárias, não sou um grande conhecedor dos jornais brasileiros). De certa maneira, a presença dos gêmeos também é um sinal disso: a Folha faz um favor à divulgação e popularização dos quadrinhos ao dar cartaz a irmãos internacionalmente consagrados. (mais um dos muitos casos de coisas que precisam ser louvadas lá fora para serem reconhecidas aqui... Tom Zé que o diga)

A grande qualidade do espaço de HQ da Folha se deve, em primeiro lugar, aos autores que abriga -- por exemplo, já há décadas conta com três dos maiores bã-bã-bãns do gênero (Angeli, Laerte e Gonsales); mas também não deixa de se dever ao espaço e liberdade que a Folha confere aos autores. Para checar isso basta ver as firulas que Laerte faz nos espaços que lhe são proporcionados em diferentes cadernos, ou o uso que outros autores como Jan Limpens fazem.

Numa palestra do Paulo Ramos, ouvi uma coisa muito interessante: que no Brasil haveria uma produção regular de um tipo de tira em jornal que não existe em praticamente nenhum outro lugar do mundo.
Ramos chamou-a de “tira de reflexão sem personagem definido”. Até onde pude perceber, essa produção é caracterizada por humor sutil ou até obscuro (e às vezes por nenhum humor at all) e por uma experimentação com a forma narrativa específica dos quadrinhos (pra se ter uma idéia, praticamente todas as tiras de sucesso americanas sempre se basearam em personagens fixos). Acredito que o grande propagador e pioneiro desse novo “gênero” aqui seja o Laerte, embora ele por vezes também seja explorado magistralmente pelo Angeli.

Onde quero chegar com isso? No seguinte: os irmãos Bá e Moon, ao que me parece, procuram usar o espaço diferenciado que receberam seguindo justamente essa senda “lírica” e reflexiva. Mas se por um lado esse tipo de tom lhes cai bem e combina com seu estilo de trabalho (segundo o que conheci deles, que não foi tanto), por outro ele gera problemas.

Tanto Bá quanto Moon são desenhistas excelentes, e entendem pra caralho de narrativa gráfica. Mas enquanto alguém como Laerte vasculha, vira do avesso a sua linguagem (sendo justo, nem sempre com a mesma qualidade), os gêmeos parecem que, nas tirinhas pelo menos, já meio que "consolidaram" uma linguagem sua. Sei que comparar quase todo mundo com o Laerte é meio complicado, o cara não só é fodão como é extremamente experiente no caminho das tiras. Mas o meu ponto é este: pelo que me parece, os gêmeos já se deram por satisfeitos com uma espécie de “pegada” em suas tiras, e essa consolidação ainda é prematura na minha opinião.

Claro, podemos dizer que eles estão fazendo um exercício de variações em cima de um mesmo campo e estilo (acho que os exemplos que eu e o Marcelo pinçamos deixam isso visível). Isso seria perfeitamente defensável: ninguém precisa ficar pirando o tempo todo, e uma linguagem sólida e reconhecível é uma grande qualidade (Schulz e Henfil que o digam!).

Mas o problema é que, no “estilo” trabalhado, parece haver uma certa necessidade em procurar sabedoria no cotidiano que acaba às vezes simplesmente esbarrando na platitude. Sempre há uma beleza nos trabalhos de Moon e Bá na Folha – nunca vi nenhum diante do qual eu falasse “nossa, que trabalho vagabundo” – mas em vários há uma certo excesso de “facilidade” temática que, sinceramente, me irrita.
Há nisso, porém, uma certa coerência por parte dos gêmeos, a qual é preciso ressaltar. Sua antiga série “Dez pãezinhos”, que nasceu como revista independente já há vários anos e foi compilada em álbuns, já tinha a proposta de discutir coisas cotidianas (nome “Dez pãezinhos” era uma referência ao café da manhã dos dois).

Mas há armadilhas no cotidiano. Valorizar “as coisas pequenas da vida” e “ver a sabedoria escondidas nos clichês”, por sua vez, é algo que necessita de um olhar diferenciado, realmente deslocado; quando este falta, o trabalho esbarra na simples banalidade e o que era poesia via afetação. Quando falta o olhar novo, ao invés da arte “transfigurar” o clichê, este é que “engole” a arte. O “olhar poético” fica parecendo um pastiche, uma emulação da retórica artística, uma espécie de encenação do que as pessoas “esperariam que fosse a arte” (o nome “técnico” pra isso, segundo o Humberto Eco, é kitsch). Quando isso ocorre, o que poderia ser um novo belo, não consegue ser mais do que estetização do existente.
Nos casos em que a criatividade falta aos gêmeos, só nos resta então admirar sua habilidade narrativa e artística, ao mesmo tempo pensar sobre como essa habilidade poderia render coisas mais interessantes.

Mas esse problema não é de modo algum exclusivo dos gêmeos; nos dedicamos especificamente a eles aqui por causa da ampla evidência que têm recebido. Esse problema "estético" é um problema comum atualmente. A História em Quadrinhos brasileira enfrenta e terá de enfrentar esta espinhosa questão em seu amadurecimento: como "ser arte" sem ficar esbarrando na necessidade de provar que pode ser arte...

Já vou dizendo que nem ouso esboçar alguma resposta pra isso.


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4 comentários:

Gabriel G; disse...

Caramba, eu começo a falar e não paro mais.

Esse texto estava escrito há mais de um mês e já era grande; mas na hora de postar acabei aumentando mais ainda.

Espero que as questões colocadas estejam compreensíveis, pois tenho o péssimo hábito de escrever raciocínios interrompidos. Espero também que se entenda que não quero avacalhar os gêmeos e nem quem gosta muito do trabalho deles na Folha.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Como eu comentei no meu post, no decorrer desses 5 meses que levamos pra colocar essas idéias todas no ar, eu fui me cansando mais e mais dos gêmeos.

Pelo menos no que se refere à produção na Folha, os caras são bons desenhistas e pronto (minha opinião). As tirinhas estão cada vez mais pobres de argumento.

Por conta disso, não acompanho a polidez do Gabriel para os fãs dos gêmeos - acho uma merda mesmo.

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

O Gabriel achou o termo que eu estava procurando: "afetação".

Gabriel G; disse...

Mostrei esses três posts pro Bruno, e ele sintetizou bem a questão: não há violência na obra dos gêmeos, ela é "amena". Há melancolia, sim; mas não ultrapassa uma "tristeza de classe média". Não há tensão.