segunda-feira, 27 de julho de 2009

Retrospectiva literária 2008

Demorou, mas aqui vai o primeiro comentário sobre o que li no ano passado...

Este meu post estava sendo rascunhado já há vários meses, mas só encontrei a vontade de terminá-lo após ler este ótimo post e ver a ótima discussão subseqüente no O Biscoito Fino e a Massa, do Idelber Avelar.

No ano passado, o Marcelo me ofereceu um livro emprestado, com empolgação e ênfase. Resolvi ler então, no primeiro semestre ainda, o “libelo” de Richard Dawkins contra a idéia de Deus e as religiões como um todo, “Deus, um delírio”.

Primeiro quero comentar o nome do livro. O título brasileiro não está errado em conteúdo; o livro fala algo assim mesmo. Mas está errado em forma. O título original, “The God Delusion” é ao mesmo tempo mais elegante e mais “clínico”. Dá o tom da fala de Dawkins, muito mais do que o claramente ofensivo “Deus: um delírio”. Aliás, o nome brasileiro me soa um golpe publicitário. O nome traduzido, de certo modo, parece estar mais de acordo com aos vários comentários que destacavam Dawkins como “intolerante”. Acho que um título mais fiel talvez fosse A ILUSÃO DIVINA. Embora ainda seja diferente do original, acho que seria mais próximo.. se bem que não faço idéia do que o autor acharia. (Se eu estivesse nesta última FLIP, talvez cogitasse em questionar o próprio Dawkins sobre essa tradução – embora eu certamente não chegasse a perguntar de fato)

Como não acredito que essa tradução venha por carolice dos editores, acho que é por oportunismo que acabou-se por divulgar e criticar o livro como “ofensivo”. Por um lado, o oportunismo de parecerem ficar “de bem” a comunidade crente (já que, num mundo crente, defender publicamente o direito de ser ateu já soa em si algo ofensivo); por outro lado, o título e as críticas podiam chamar atenção dos consumidores ateus mais “revoltados”; e, enfim, com essa propaganda poderia-se vender o livro sobre o sempre rentável rótulo de “polêmico”.

Não que o livro não seja “polêmico”; mas o mais exato é dizer que ele procura, sim, um debate público e incisivo sobre coisas que as pessoas preferem não falar.

Mas vamos à obra. Não vou fazer aqui resenha alguma sobre o livro. Leia-o, vale a pena. Só vou destacar aqui algumas impressões.

A questão toda do livro, pra resumir, é esta: foi feito fundamentalmente como um apelo para que os ateus “saiam do armário” e se afirmem publicamente. Alguns pontos importantes:

— colocar que a recente onda de obscurantismo religioso e pseudociência (leia-se: criacionismo, design inteligente e outras mumunhas) que tem voltado com toda a força no Ocidente seria um GRANDE mal — talvez o pior mal a acometer a humanidade recentemente. Ele deveria ser combatido frontalmente.

— revelar e atacar o costume de se achar que “religiões merecem respeito” — ou seja, a noção não-declarada mais onipresente de que os conjuntos de símbolos, mitos e ideais religiosos mereçam um tipo de deferência, um respeito maior do que o que o reservado a qualquer outro conjunto de idéias. A mensagem de Dawkins é: se você acha que algo religioso é errado e estúpido e não se pronuncia a respeito, não é porque você é “tolerante” ou “esclarecido”, é porque não quer colocar o seu na reta. A frase de Idelber Avelar resume bem a posição: tem que respeitar religião porra nenhuma.

— ressaltar que a existência de Deus não é uma coisa “simples” e “natural” de se acreditar; na verdade, seria em si uma idéia bastante extravagante. Você não devia ter vergonha de admitir que NÃO ACREDITA. ELES é que deveriam se envergonhar de acreditarem em algo que não pode ser provado, de quererem que você acredite com eles e, pior ainda, por acreditarem que o ato de acreditar sem provas é em si a benção maior.

Esses três pontos me pareceram bem razoáveis. Não pude evitar sair um pouco mais ateu da leitura do livro – nenhuma grande mudança, bem entendido, mas saí entendendo melhor algumas coisas.

Sobre a retórica do autor: minha impressão geral é de que se trata de um livro muito honesto, e essa honestidade é que impressionou. Honesto em suas qualidades e em suas limitações.

Ele é em sua maior parte ponderado e argumentativo, raramente cedendo ao apelo emocional. Há sarcasmo, mas na maioria das vezes ele é sóbrio e até elegante. Em alguns pontos, Dawkins descamba o nível de sua argumentação, e em alguns poucos pontos ele exagera — eu, que nunca fui nada religioso, me incomodei com algumas partes da crítica dele ao Novo Testamento. No entanto, esses momentos são surpreendentemente muito poucos, se pensarmos no quanto se alardeou sobre a “intolerância” do autor. Além disso, não achei nenhum grande furo em seu raciocínio: mesmo seus exageros, embora possam ser relativizados, não poderiam ser simplesmente refutados nem descartados. E estes, na verdade, me pareceram muito mais fruto da exasperação sincera do que da apelação planejada.

O que se sente no texto é que há momentos em que o autor simplesmente perde a paciência diante do nível das bobagens com as quais tem que lidar como se fossem argumentos válidos e sérios. Um tipo de exasperação que uma pessoa inteligente costuma a sentir diante da obtusidade alheia — e que às vezes chega a impedir que se debata sobriamente. É possível que Dawkins seja um excelente vendedor/pregador, e use conscientemente essa exasperação pontual para atrair a empatia do público ao qual se volta. Mas eu, em particular, não creio que seja esse o caso.

A parte mais "antropológica" do livro tem apontamentos interessantes e vários momentos enfurecedores. Ou melhor, enfurecedores para pessoas como eu, da “área de humanas”; nós, “humanidades”, costumamos dar muito valor à sutilezas e às belezas simbólicas das manifestações culturais humanas, e o discurso seco do Biólogo falando para leigos é por vezes irritantemente simplificador e “seguro de si” para um público como nós.
Para resumir a crítica a respeito, vou citar novamente o Idelber. Sobre Dawkins: "ele é ótimo para desmontar cientificamente o teísmo. Ele é péssimo quando tenta ser sociólogo, antropólogo ou historiador. Ele é péssimo para explicar o poder simbólico das religiões". Concordo plenamente com isso: quando começa a falar do papel social e simbólico da religião, Dawkins parece mais impaciente, precipitado e redutor.

Mas até considero esses defeitos perdoáveis até certo ponto, por tratar-se de um livro para leigos interessados, por ser sincero e por procurar ocupar um espaço realmente político em sua intervenção.
Policamente falando, o livro nos deixa muito mais conscientes dos termos do debate em jogo, de como os ateus sofrem sim discriminação e de como existe sim um movimento de evangelização do estado e da educação que não se resume aos EUA.

Pra terminar, uma indubitável qualidade: a parte do livro que fala sobre a seleção natural é magnífica. Senti que nunca havia percebido a real extensão e elegância do conceito até então. E fiquei com vontade de ler os livros de Dawkins sobre evolução e seleção natural, pois só o pouco que li a respeito do assunto em “Deus, um delírio” já foi para mim mais interessante que toda a crítica que o autor faz à irracionalidade religiosa.

Agradeço aqui novamente ao Marcelo por me passar o livro.


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5 comentários:

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Gabriel

Em primeiro lugar, parabéns pelo post, é uma excelente análise do livro do Dawkins. O do Idelber também é muito bom, embora se apegue mais a um aspecto particular do livro, o seu é mais amplo e contempla mais coisas.

Segundo, esse é um dos livros que eu mais gosto de emprestar, porque o Dawkins fala com muita propriedade sobre o tema que propõe. Fico contente que você tenha gostado.

Passando agora a comentar o post em si, tenho algumas considerações:

Concordo plenamente que há um problema de tradução no título do livro: Delusion é realmente adotado pelo Dawkins como um termo clínico, talvez fosse mais apropriado que o título fosse “A ilusão Deus”, ou “A ilusão divina”, como você propôs. Da forma como o título foi traduzido, realmente parece mais ofensivo do que é de fato – e certamente é um livro que acaba ofendendo um pouco, pelo fato de que as religiões se revestem desse privilégio de que “Deus não se discute”.

O livro é sim, muito honesto, como você aponta, e realmente tirando uma ou outra coisinha mais bem humorada que mal educada, a leitura é bastante fácil e interessante, como costumam ser as melhores obras de divulgação científica. Chamar o Dawkins de intolerante é uma crítica injusta, a intolerância geralmente sai do pensamento dogmático.

Só não sei se concordo com o ponto de vista de que o Dawkins seja péssimo quando tenta ser sociólogo, antropólogo ou historiador. Porque acho que ele não tenta. Isso talvez se deva ao fato de que eu tenha certa dificuldade em encarar as Ciências Humanas como Ciência, a não ser no sentido amplo do termo. Isso não quer dizer que as Ciências Humanas não sejam o melhor arcabouço teórico para a compreensão dos fatos sociais, mesmo porque as chamadas “ciências duras” não costumam fazê-lo. Agora, penso que não é possível fazer a análise sobre Deus e as religiões sem se referir ao grande problema de ambos: a sua repercussão social. Nesse ponto, o olhar de Dawkins é feito do ponto de vista de um cientista: é duro e seco mesmo.

Na minha formação de geógrafo, tenho um pé (menor que o outro) nas humanidades, e me debato um pouco com as idéias de alguns autores que considero muito mais metafísicos que objetivos, como o Milton Santos, por exemplo. Roberto Lobato Correa trabalha a mesma temática com um enfoque muito mais objetivo, utilizando-se de dados, espacialização e empirismo. Nunca vi problema na objetividade, aliás, considero aspecto fundamental do conhecimento científico, faz parte do princípio da “Navalha de Occam”. Acho possível encarar os fatos sociais e os objetos das humanidades de forma mais objetiva.

Para concluir, concordo contigo: a área de excelência do Dawkins, que é a Biologia evolucionista é um tesão, e quando o cara escreve sobre o assunto realmente demonstra o melhor de sua capacidade. Recomendo a leitura de “O gene egoísta”, que considero ser um livro melhor acabado que “Deus, um delírio”. Pra quem se interessou por esse aspecto do Dawkins, é um prato cheio, e esse ano é o bicentenário do Darwin – que na minha opinião pessoal e muito questionável, dada a quantidade de grandes autores – é o autor da obra mais importante da história da Ciência.

Gabriel G; disse...

Valeu, Marcelo!

Compreendo a questão da geografia, já conversamos sobre isso: o problema de, numa disciplina em crise de identidade e de conformação, ter que disputar o espaço da objetividade e coentificidade mínima com uma retórica "metafísica" surrupiada das áreas "humanas" e freqüentemente temperada de "politização", retórica essa que é muitas vezes preferida pelos alunos por ser um lugar onde a picaretagem consegue se esconder melhor e onde esses alunos podem dar vazão à sua própria mediocridade e proselitismo.

Queria alguma vez conversar com você a respeito de exemplos concretos. O pior é que não sei se alguma hora vou ter tempo de ler tanto Popper quanto Milton Santos, hehehe...

Gabriel G; disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gabriel G; disse...

Sobre a crítica do Idelber ao Dawkins, eu incluí para deixar a minha própria crítica mais ácida...:)

Na verdade, acho que nem o Idelber acha que o Dawkins realmente quis ser "historiador e antropólogo"; foi o jeito irônico de dizer que -- e isso eu concordo -- que Dawkins se aventura um pouco em campos que não são os dele, e é muito redutor quando o faz.

Não vou poder especificar pedaços que me incomodaram, porque não tenho o livro em mãos e já o li faz algum tempo. Vamos simplesmente dizer que, mais do que explicar a irracionalidade das religiões, Dawkins às vezes parece dedicado a "exorcizá-las". É uma posição logicamente defensável, claro. Mas nesse esforço -- que é compreensível como posição política -- perde-se de vista o quanto a estrutura religiosa foi formadora de toda a nossa civilização -- e não, não apenas das partes más.
A fala do "imagine o mundo sem religiões", por exemplo, já mostra como o texto tem um espírito retórico e político. Afinal, tira de grandes conflitos e mortes muitos de seus motivos mais importantes.
Embora provavelmente a coisa fosse ser bem menos feia, eu tenho comigo que as pessoas certamente discriminariam e ofenderiam umas às outras SEM religião, e ainda se matariam no oriente médio com ou sem Alá.

Se fôssemos realmente pensar em "como seria o mundo sem religião", sem que ela tivesse SEQUER EXISTIDO, uma resposta mais científica seria que não daria nem pra imaginar. "Outra seria a face do mundo". Na verdade, é BEM possível que ainda estivéssemos vivendo como coletores em cavernas. E isso não é exagero.

Embora seja muito razoável dizer que hoje a religião seja uma forma psicológica, social e cientificamente ultrapassada, que seja melhor abandoná-la, ainda assim não se entende cultura alguma sem se entender a religião. Certamente Dawkins sabe disso (ou pelo menos espero que saiba); e é razoável que, não vá ficar discorrendo sobre a participação indelével da religião na formação civilizatória num livro que conclama os ateus que saiam do armário.

Mas ignorar esse aspecto, simplificar retoricamente a maneira como a religião se conecta a nossa cultura, é uma coisa que ME chama atenção: eu até deixo passar(foi o que quis dizer quando falei que era "perdoável"), mas não consigo ignorar. Imagino que, para um cara como o Idelber, que é filósofo e estuda literatura, o incômodo seja muito maior.

Gabriel G; disse...

Mas ainda há outras pequenas coisas que me incomodaram.
Tem uma cutucada que Dawkins dá no Foucault, por exemplo (acho que foi nele). Não vou lembrar exatamente agora, mas Dawkins, do nada, insinua que as considerações deste seriam "vazias" (ou algo parecido). Isso de maneira completamente não-explicada e fora de contexto, sem nem se dar o trabalho de explicar quais considerações essas seriam.

Eu imagino que deve ter a ver com as críticas de caras como Foucault à racionalidade científica. Eu compreendo isso politicamente: pelo que sei, do fim dos anos setenta até os noventa alguns autores franceses como o Foucault e outros bem mais "metafísicos" foram recebidos com muito oba-oba nas universidades de língua inglesa, gerando uma moda acadêmica que acabou por se converter em contraposição à "objetividade" e "cientificidade"... daí acho que a "alfinetada" do Dawkins vem dessa briga acadêmica.

O que acho uma pena é que Foucault, pelo menos naquilo que li, fazia uma crítica extramente RACIONAL à racionalidade das instituições -- ou melhor: ao que haveria de irracionalidade escondida sobre uma fachada de "autoridade científica". Se bem que ESSE assunto é a expertise dos Frankfurtianos -- Adorno e Cia...