quarta-feira, 18 de julho de 2007

Foda-se doutor!

Chega de Excelências, senhores!
FAUSTO RODRIGUES DE LIMA
EM 13/6 , um juiz do Paraná desmarcou uma audiência porque um trabalhador rural compareceu ao fórum de chinelos, conduta considerada "incompatível com a dignidade do Poder Judiciário". Não muito antes, policiais do Distrito Federal fizeram requerimento para que fossem tratados por "Excelência", tal qual promotores e juízes.
Há alguns meses, foi noticiado que outro juiz, este do Rio de Janeiro, entrou com uma ação judicial para obrigar o porteiro de seu condomínio residencial a tratar-lhe por "doutor".
Tais fatos poderiam apenas soar como anedotas ridículas da necessidade humana de criar (e pertencer a) castas privilegiadas. No entanto, os palácios de mármore e vidro da Justiça, os altares erguidos nas salas de audiência para juízes e promotores e o tratamento "Excelentíssimo" dispensado às altas autoridades são resquícios diretos da mal resolvida proclamação da República brasileira, que manteve privilégios monárquicos aos detentores do poder.
Com efeito, os nobres do Império compravam títulos nobiliárquicos a peso de ouro para que, na qualidade de barões e duques, pudessem se aproximar da majestade imperial e divina da família real.
Com a extinção da monarquia, a tradição foi mantida por lei, impondo-se diferenciado tratamento aos "escolhidos", como se a respeitabilidade dos cargos públicos pudesse, numa república, ser medida pela "excelência" do pronome de tratamento.
Os demais, que deveriam só ser cidadãos, mantiveram a única qualidade que sempre lhes coube: a de súditos (não poderia ser diferente, já que a proclamação não passou de um movimento da elite, sem nenhuma influência ou participação popular). Por isso, muitas Excelências exigem tratamento diferenciado também em sua vida privada, no estilo das famosas "carteiradas", sempre precedidas da intimidatória pergunta: "Você sabe com quem está falando?".
É fato que a arrogância humana não seduz apenas os mandarins estatais.
A seleta casta universitária e religiosa mantém igualmente a tradição monárquica das magnificências, santidades, eminências e reverências. Tem até o "Vossa Excelência Reverendíssima" (esse é o cara!). Somos, assim, uma República com espírito monárquico.
As Excelências, para se diferenciarem dos mortais, ornam-se com imponentes becas e togas, cujo figurino é baseado nas majestáticas vestimentas reais do passado. Para comparecer à sua presença, o súdito deve se vestir convenientemente. Se não tiver dinheiro para isso, que coma brioches, como sugeriu a rainha Maria Antonieta aos esfomeados que não podiam comprar pão na França do século 18.
Enquanto isso, barões sangram os cofres públicos impunemente. Caso flagrados, por acaso ou por alguma investigação corajosa, trata a Justiça de soltá-los imediatamente, pois pertencem ao mesmo clã nobre (não raro, magistrados da alta cúpula judiciária são nomeados pelo baronato).
Os sapatos caros dos corruptos têm livre trânsito nos palácios judiciais, com seus advogados persuasivos (muitos deles são filhos dos próprios julgadores, garantindo-lhes uma promiscuidade hereditária), enquanto os chinelos dos trabalhadores honestos são barrados. Eles, os chinelos, são apenas súditos. O único estabelecimento estatal digno deles é a prisão, local em que proliferam.
A tradição monárquica ainda está longe de sucumbir, pois é respaldada pelo estilo contemporâneo do liberal-consumismo, que valoriza as pessoas pelo que têm, e não pelo que são. Por isso, após quase 120 anos da proclamação da República, ainda é tão difícil perceber que o respeito devido às autoridades devia ser apenas conseqüência do equilíbrio e bom senso dos que exercem o poder; que as honrarias oficiais só servem para esconder os ineptos; que, quanto mais incompetente, mais se busca reconhecimentos artificiais etc.
Numa verdadeira República, que o Brasil ainda há de um dia fundar, o único tratamento formal possível, desde o presidente da nação ao mais humilde trabalhador (ou desempregado), será o de "senhor", da nossa tradição popular.
Os detentores do poder, em vez de ostentar títulos ridículos, terão o tratamento respeitoso de servidor público, que o são. E que sejam exonerados se não forem excelentes!
Seus verdadeiros chefes, cidadãos com ou sem chinelos, legítimos financiadores de seus salários, terão a dignidade promovida com respeito e reverência, como determina o contrato firmado pela sociedade na Constituição da República.

Abaixo as Excelências!
FAUSTO RODRIGUES DE LIMA , 36, é promotor de Justiça do Distrito Federal.
Folha de S. Paulo, 16 de julho de 2007
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O brilhantismo do texto não está em sua redação, que talvez seja um pouco juvenil...mas o fato de apontar essa característica brasileira do respeito monárquico. Achei o artigo excelente, mesmo porque eu nunca fui adepto dos trajes formais e nunca entendi a lógica em usá-los. Não sei bem o que significa estar "bem-vestido", embora não considere que me vista mal...já fui barrado no fórum por falta de calças (calma, estav de bermudas), em bailes de formatura novamente pela falta de calças (dessa vez, calça social), e até de bares nessa provinciana cidade de Maringá.

Já li, numa comunidade do orkut de um bar conhecido aqui da cidade uma discussão a respeito de permitir ou não a entrada de pessoas trajando bermudas, regatas ou bonés...99% dos argumentos eram favoráveis à proibição, alegando que "isso é roupa de malaco". O texto se refere exatamente à esse tipo de preconceito: o preconceito contra pessoas que não se importam com a pompa exigida pela sociedade, contra quem se recusa a usar calça e camisa dentro de um bar lotado em dias em que a temperatura do lado de fora passa dos 30 graus à noite.

Já conversei com amigos meus a respeito disso...todo mundo aparentemente concorda com o fato de que no Brasil se vive formalismo demais à toa, embora com ressalvas: "Ah, mas aí, quem trabalha tem que usar camisa, né? Pra parecer profissional". Outra comum: "É, mas a gente nota que as pessoas respeitam mais a gente quando estamos de terno". Ok, concordo um pouco com a segunda assertiva, mas ela não deveria implicar em achar que quem não está de terno seja merecedora de menos respeito. Quanto a parecer profissional...bem!

Além disso, tem a questão dos doutores, excelências e pronomes de tratamento em geral, discussão já velha e batida, que infelizmente nunca resolveu coisa nenhuma (e nem vai). Gostaria de ser tão otimista quanto o promotor que escreveu o texto acima e acreditar que no meu período de vida ainda verei gente de chinelos nos fóruns e juízes sendo chamados de "senhor", como todos nós, mortais.


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4 comentários:

Marcel disse...

As vezes temos que dançar o "samba do criolo doido" pra sermos aceitos no mercado de trabalho, tenta advogar que nem eu, com cara de moleque e sem camisa e calça social pra você ver se consegue... Acabamos sendo carrascos e vítimas do próprio mecanismo social formalista em que vivemos... De qualquer forma, a questão das roupas, acho que o buraco é mais embaixo, há toda uma propaganda da indústria da moda que quer vender e quando me refiro a indústria da moda não é só moda chique, mas todo tipo de roupa. Isso tudo gera empregos e recolhe tributos e para ter bom desempenho precisa diversificar o tipo de vestes usadas... Não estou discordando de usarmos mais calça jeans do que social (principalmente em nosso friozinho ralo), mas há mais coisas envoltas do que apenas formalismo em relação as vestimentas, claro que há também excesso, aliás, existe um exagero ilógico de formalismo "roupal" em muitos e muitos casos...
Agora que ficar chamando os outros de Excelência, "douto Doutor" é no mínimo um saco(principalmente quando se sabe que a dita autoridade não é tão excelente assim)... Trato os meus clientes por Senhor e Senhora (no máximo uma Senhorita de vez em quando) porque não ser tratado igual e poder tratar uma autoridade da mesma forma eu não sei???? Realmente deve ser ranço monarquista-absolutista do século retrasado... E ainda tem as becas, para essas não há justificativa (nem da industria da moda)...

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Marcel,

sou contra o formalismo onde ele não é chamado (e não sei se ele é chamado com muita frequência). Não só em roupas ou tratamento.

De qualquer forma, é só uma bronca minha, porque essas coisas me irritam, não acredito que veremos esse mundo abdicar do mundo formal.

Anônimo disse...

Aprendi muito

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Anônimo,
Agradeço o comentário, me levou a reler este texto já "meio antigo", tem uns 2 anos e meio.

Só uma correção...pensando agora, eu acho que quando vivi nos EUA presenciei ainda mais formalismo na maneira de se vestir. Na Europa já não sei, mas recentemente um amigo sueco esteve aqui a negócios, e usava o paletó com uas "calças curtas", dessas que terminam no meio das canelas.

Só pra constar.