domingo, 4 de março de 2007

Ruminações sobre o fracasso


Nunca fui afeito às classificações winner-loser dos gringos, mas ao menos as compreendo um pouco melhor hoje que antes.
Como me foi apontado recentemente: o loser americano não é apenas o cara que não consegue chegar lá. O loser é, acima de tudo, o cara que desistiu.
É horrível pensar que ser pobre pode ser confortável. E não me refiro simplesmente à pobreza monetária, vejam bem.
Mas é o que nos exemplifica a vida de Harvey Pekar, excelente autor underground de quadrinhos. Pekar é conhecido e faz muito sucesso há décadas. Mas em uma entrevista, disse que nem telefona para R. Crumb (gênio quadrinhista, amigo e parceiro básico de Pekar) porque não tem dinheiro para pagar o interurbano.
Ele não viaja porque não tem dinheiro. Não vê pessoas nem conhece países (falou que adoraria vir ao Brasil) porque falta grana.
De fato, ele não pára de falar da FALTA de dinheiro em momento algum da entrevista. Só não explica porque não consegue ganhar mais dinheiro, ou mantê-lo.
Hervey Pekar, criativíssimo, é um cara que desistiu. Ou nunca quis. É quase um loser militante – isto é, se os real losers tivessem culhões suficientes para serem militantes.
A pobreza é seu escudo.
Tendo em vista a mentalidade extremamente neurótica, metódica e obsessiva do autor, não é difícil entender sua criatividade e seu apego a seus problemas (como os hipocondríacos), e nem é exagerado supor uma fortíssima aversão à mudança. Pekar não ganha dinheiro porque, na verdade, não quer encarar o desconforto de ter que mudar sua forma de viver para gastar esse dinheiro.
A julgar pelo que se vê, a vida de Pekar não seria apenas “comum”. Seria pobre com “p” maiúsculo (ou minúsculo?). Não porque vive sem dinheiro e entre pessoas monetariamente pobres, mas porque não aspirou a quase nada que já não seja. Sua criatividade e sua forma de transformá-la em narrativa são riquíssimas. Mas, por outro lado, prenderam-no ainda mais a si próprio.
Então, leio um texto de Contardo Caligaris (num jornal molhado da goteira da casa de meu pai, um que eu tinha tudo pra não ler) que fala que os jovens de hoje sonham pequeno. Não deixo de concordar imediatamente e de ver um eco em mim mesmo.
Me lembrando de Pekar: quantas vezes não usei (e não uso) minha pobreza (entre outro vários obstáculos) como escudo? De uma forma confortável de me manter com minhas manias e não ter de pensar mais à frente?
E vejam bem, não falo de “sucesso” ou “ficar rico”, mas de ansiar e procurar uma vida extraordinária, difícil, heróica, uma vida fodona mesmo.
A academia pode ser um cemitério para um “artista”? Não por ser burocrática mas justamente por ser criativa? Uma prisão com conforto e com alguma liberdade é a mais eficiente de todas.
A primeira vez que alguém me chamou de comodista foi aos 15 anos de idade. Fiquei sinceramente ofendido, como poucas vezes.
Porque era verdade.
Aos 19 anos de idade, uma amiga me chamou de covarde. Em matéria de ofensa, nada nunca mais doeu tanto quanto aquilo.
Porque era verdade.
(Pelo menos passei a ter alguma consciência do problema)
Pode a “maturidade” se tornar uma prisão?
Pode o “sucesso” se tornar uma prisão?
Pode o “fracasso” ser confortável?
O caso de Pekar diz que sim.


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5 comentários:

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Lembro da discussão...é um bom conceito de loser, muito embora eu ache que tem vários tipos de loser, não só o cara que "tem medo de ser feliz". Como o loser é muito usado, perde um pouco da unicidade do sentido. Tem loser que nem é loser, tem os que são rotulados mas não são...mas tem os de verdade.

O fato, é que todos eles tem uma coisa em comum: essa coisa inércia, da comodidade da pobreza de espírito.

Prova disso é que não muitos losers se reabilitam...não conheço ex-loser, mas nem ex-chato ou ex-burro.

São coisas da alma.

Unknown disse...

Foda-se!
A opção de ser daquele jeito - pois dizer loser da maneira que estão dizendo no texto é concordar com a visão do autor - é dele. Ele quis uma vida mais tranquila, sem muita graça, Pekar quis continuar sendo um arquivista de hospital. A opção foi dele. Porra! Deixa o cara! Chega de achar inteligente - ou de atitudes inteligentes - aqueles que se parecem com a gente.
Que saco! Que prepotência!...

Grande abraço

marcio alex pereira

Marcílio, o gêmeo malvado disse...

Márcio,

acho que ninguém tá desmerecendo o Pekar. É só uma constatação, uma análise do "loser" que não é definitiva, mas interessante, visto o uso muito frequente da expressão.

Por mim, tanto faz. Ele pode ser pão-duro, doido, acreditar em fantasma, ter uma verruga no meio da bunda (em "qual" meio? rsrsrs!)...nada disso interfere na produção. Agora, não dá pra condenar quem nota certas coisas, já que o subjetivismo é inerente ao processo da crítica. Todo mundo pensa algo sobre quem conhece.

No mais, e o nosso tricolor que não perder mais?

abraços!

Gabriel G; disse...

"legal quem parece com a gente"?

Cara, o que eu sublinhei no final do texto é justamente o quanto eu poderia me assemelhar ao Pekar!

Tenho muito mais a ver com ele do que com qualquer winner de butique...

Gabriel G; disse...

A questão principal que Pekar me coloca é: "inteligência" também pode ser uma PUTA duma prisão.

(mas é claro que a burrice é uma prisão muito pior)