quarta-feira, 28 de dezembro de 2005

ALÔ?


— Alô?
Talvez a voz soasse um pouco alta para quem quer que estivesse do outro lado. De cá, amigos e outras mesas em conversas animadas, pratos, talheres, copos e garrafas. Falar alto no ruído é ato-reflexo. Podia ser pior — haver mais gente, teto mais alto e ressonante, bandinha tocando; mas não, o teto era baixo e não era quarta-feira.
— Oi... lembra de mim?
— Quem é?
— É a (sua irmã...?)...
Ainda assim, muito barulho. Não o bastante para não escutar, mas o suficiente para não se ter certeza a respeito do que se escutou. O que, numa ligação estranha, é das piores coisas. Voz inesperada, entonação inesperada e misteriosa. Imagens de pessoas possíveis passavam frenéticas na cabeça durante meio segundo, nenhuma batia. Amigos conversando, pessoal bebendo, namorada do lado. Voz de mulher na sua mão.
Putaqueopariu.
—Ah. (?....!)
Não importava mais se falava alto; pelo menos daria uma indicação de que estava realmente difícil entender (só se fala alto demais no telefone quando se está imerso no barulho, não?...).
— Faz tempo que a gente não conversa, né...?
Tinha um pânico antigo de não levar crédito, de suspeitarem injustamente de si. E quando tinha isso, fingia a verdade — o que, para sua infelicidade, é um dos comportamentos mais suspeitos. Numa situação suspeita, se estava realmente surpreso e indignado externava o sentimento com tanta veemência que os outros (se lhes sobrasse alguma maldade ou esperteza a mais) poderiam bem achar que mentia.
— Espera um pouco: quem tá falando?
A ligação termina. Na cara.
Pra bom entendedor, meia.
Pra quem não quer entender, nem um tratado.

Celular é uma merda.

terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Newton Foot

Telona do Pecado (*)


(* este texto foi originalmente publicado no antigo endereço do Wilbor. esta versão aqui possui algumas poucas mudanças.)



Marv: large lethal loser
Eu fui assistir Sin City. Na condição de leitor assíduo (e fervoroso) de Histórias em Quadrinhos, devo dizer que o evento era há muito aguardado. Mais especificamente, eu ansiava por ver o filme desde que soube de sua estréia nos EUA, principalmente pelo texto de Sérgio D'Ávila na Folha de São Paulo, que elogiava o filme sem reservas — o título do artigo, "é o melhor filme do ano, e estamos apenas em abril", é bem significativo a esse respeito.
É claro, desde que eu soubera da existência do filme, minhas entranhas de fã não puderam deixar de ficar alertas; entre as muitas histórias da série impressa de Sin City, havia algumas que coloco entre as HQs mais interessantes que li. Tinha curiosidade de ver que tipo de filme isso podia dar, e a presença do autor (o californiano Frank Miller) na direção do filme parecia ser bom sinal. Por outro lado, eu já conhecia bem o que um mínimo de boa expectativa cinéfila poderia produzir em termos de decepção, e muitas das adaptações de grandes obras das HQs tinham gerado filmes fracos (Do Inferno) ou patéticos (Liga Extraordinária). Assim, pus o filme de lado (na medida do possível), procurando não pensar nele até assisti-lo. A fala de D'Ávila, porém, foi tão enérgica que me fez ter reais esperanças — o que explica em parte o fato de que, no final, eu não tenha saído do cinema impressionado com o que vi. Posso dizer que esperava mais.

Antes de tudo, deixo claro: VALE A PENA VER O FILME. Dito isso, vou me meter a falar um pouco dele. Como fã e conhecedor da série original de Sin City, acredito que minha contribuição seja justamente ser impiedoso (heh), de forma que levantarei aqui apenas problemas.
De maneira geral, o filme investe na literalidade, em fazer a imagem e a narrativa filmada copiar o grafismo do desenho. Esta é a um só tempo sua glória e ruína. De maneira geral, as falas são idênticas, há enquadramentos de cena e tomadas iguais às histórias desenhadas, como se o quadrinho tivesse sido diretamente tomado como storyboard. Devo explicar que como eu conhecia as três histórias do filme — e a ponto de saber todas as falas e todas as cenas — a experiência de "tradução" que senti foi extremamente radical pra mim, produziu um estranhamento que ia do interesse ao mal-estar (este, por sorte, apenas poucas vezes).
É inútil tentar simplesmente transpor com literalidade para o cinema a beleza congelada do trabalho de Miller; é irônico traduzir para uma mídia de movimento um trabalho onde a ação parece com freqüência congelada, eternizada, como se tratassem de estátuas (Miller, nesse sentido, abre mão do jogo frenético de linhas dos quadrinhos americanos ou tão típico dos mangás hoje demasiado e exaustivamente popularizados entre adolescentes). Mas isso não chega a ser um problema, principalmente comparado ao aspecto auditivo.
Histórias em quadrinhos são uma linguagem onde é possível trabalhar um amplo paralelismo entre letras e imagens, entre narrativa visual e verbal, no qual ambas podem correr totalmente separadas sem estranheza. A transposição desse efeito para cinema é algo nada fácil; sem o cuidado devido, Sin City ganhou nada mais que a ordinária narrativa em "off". O que, na pressa do filme e literalidade da adaptação, também polui a narrativa visual com uma falação interminável. Em sua pressa, o filme perde a oportunidade de deixar o silêncio trabalhar em seu favor — uma grande qualidade dos quadrinhos de Miller — e torna-se tagarela.
Já a trilha sonora, uma coisa na qual o meio audiovisual do cinema poderia enriquecer a história, é ainda mais mal-trabalhada: é mesmo pífia. Sin City (a HQ) era digna de alguma coisa marcante, uma trilha sonora à la Tarantino: estilizada, brega, divertida, forte. Há certas referências, por exemplo, à música country na HQ; o filme poderia ter aproveitado esse gancho com humor e inteligência.

A construção de vários personagens, especialmente de Marv, é desalentadoramente inferior ao original (notem que no filme ele não grita de verdade em momento nenhum!). Claro, nesse aspecto meios escritos sempre tem grande vantagem; ainda assim, convenhamos que podia ser bem melhor (como podia também ser bem pior...). Mesmo que eu tenha gostado de ver Bruce Willis, Clive Owen e Benicio Del Toro (sem falar de Britany Murphy), ainda acho que o ideal de Sin City seria uma animação. Dispensaríamos assim o fetiche da semelhança dos atores, e focaríamos realmente no que importa: como passar um meio pictórico escrito/desenhado para um meio audiovisual em movimento, e o que significa fazê-lo tendo como partido a máxima semelhança.
O filme também é excessivo. Ao espremer várias histórias, o que temos é uma banalização da violência (a tão falada!) na qual ficam patentes as recorrências e repetições do próprio Miller. Decapitações, desmembramentos, mutilações genitais, tortura psicológica... é tudo tão rápido e em tal quantidade que há pouco tempo para se chocar mesmo com o horror da violência — "tempo" que no quadrinho há de sobra. Com apenas duas histórias, o filme já ficaria muito melhor. Mas sou mais radical: o que eu queria ver mesmo é um filme inteiro só com a epopéia de Marv bem caracterizada, com toda a densidade, desvario e desesperança que ela mereceria.
Pode ser apenas uma impressão minha, mas com toda a novidade visual e o ritmo exagerado, muito da lógica do filme me pareceu ser a de "dar ao público o esperado". Apesar da surpresa da radicalidade visual, pra mim há nele algo como "quadrinhos são diversão rápida, por isso vamos dar uma sucessão de historinhas para o público, que é o que ele espera". A primeira história em quadrinhos de Sin City, porém, não foi sob hipótese nenhuma uma "história rápida", e muito menos algo "esperado"; embora seja de cabo a rabo uma referência e superestilização do estilo "noir", a HQ foi para mim uma novidade, e isso principalmente pela sua densidade e seu enorme peso (no sentido mais "amargurado" do termo, um peso sofrido, uma obra difícil de ler). Ao escolher privilegiar o fato de ser uma "novidade" cinematográfica (o que realmente é em certos aspectos), o filme abre mão de uma parte nada desprezível da dimensão poética — dramática mesmo — do original. Pior pra ele. O filme, assim, trabalha contra a obra. No sentido "artístico", é claro (com o perdão da palavra); no marketing, só a ultraviolência já vai atrair um público enorme para o gibi — como bem o esperava as editoras, que por ocasião do filme relançou histórias da série em volumes encadernados "de luxo". Acredito que uma adaptação dessas precisaria de mais cuidado e — o que está por fora hoje em dia — mais reflexão. Mas é claro: pedir reflexão para um produto de indústria cultural — ainda mais pra um mísero quadrinho, vejam só! — é pedir pra ser acusado de forçar a barra, de ser preciosista, elitista ou simplesmente metido a besta.
Sin City, enfim, é extremamente interessante como experiência de adaptação cinematográfica de histórias em quadrinhos; como filme, nem tanto.

(Sem falar que não é nada animador lembrar que, ao contrário da VERDADEIRA Nancy (a de papel), Jessica Alba é "importante" demais pra mostrar os peitinhos na tela. Ora, como dizem na faculdade, se não agüenta bebe leite.

Esses últimos lastrinhos de puritanismo Holywoodiano me enervam demais. Em especial por serem, por assim dizer, descriminatórios: com a desconhecida atriz que faz a Goldie, tudo bem, seios à mostra; já a "estrelinha"... oh, não, o cachê não paga... Safardanas do inferno.)


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