Sem mais tempo pra estar aqui, eu sei. Mas no esforço de escrever uma tese de doutorado que é basicamente interpretação (ainda que não de arte), é interessante e inquietante ler o texto "Contra a Interpretação" de Susan Sontag (1965).
Interessante por colocar várias coisas nas quais eu pensava há tempos -- como a relação com os textos sagrados e a necessidade de tornar "simbólico" algo que não mais serve mas que, contudo, não pode ser descartado. E inquietante por, no fundo, eu concordar com ele mesmo naquilo que se volta contra mim.
Segue trechão:
Evidentemente, não me refiro à interpretação no sentido mais amplo, o sentido no qual Nietzsche (corretamente) diz: "Não existem fatos, apenas interpretações". Por interpretação entendo nesse caso um ato consciente da mente que elucida um determinado código, certas "normas" de interpretação.
Em relação à arte, interpretar significa destacar um conjunto de elementos (X, Y, Z, e assim por diante) de toda a obra. A tarefa da interpretação é praticamente uma tarefa de tradução. O intérprete diz: "Olhe, você não percebe que X em realidade é — ou significa em realidade — A? Que Y é em realidade B? Que Z é de fato C?" Que situação poderia inspirar este curioso projeto de transformação de um texto? A história nos fornece os elementos de uma resposta.
A interpretação aparece primeiramente na cultura da antigüidade clássica mais recente, quando o poder e a credibilidade do mito haviam sido quebrados pela visão "realista" do mundo, introduzida pelo conhecimento científico. Ao se colocar a questão que obceca a consciência pós-mística — a similitude dos símbolos religiosos —, os textos antigos já não podiam mais ser aceitos em sua forma original. Passou-se então a invocar a interpretação para conciliar os textos antigos às "modernas" exigências. Assim, os estóicos, de conformidade com sua idéia de que os deuses tinham de ser morais, interpretaram como alegorias as rudes aventuras de Zeus e de seu agitado clã na épica de Homero. O que realmente se pretendeu mostrar com o adultério de Zeus com Leto, explicaram, foi a união do poder e da sabedoria. Dentro do mesmo espírito, Filon de Alexandria interpretou as narrativas históricas literais da Bíblia hebraica como paradigmas espirituais. A história do êxodo do Egito, a perambulação pelo deserto durante quarenta anos e a chegada à terra prometida, dizia Filon, representavam em realidade uma alegoria da emancipação, das atribulações e da libertação final da alma humana. A interpretação, portanto, pressupõe uma discrepância entre o claro significado do texto e as exigências dos leitores (posteriores). Ela tenta solucionar essa discrepância. .O que ocorre é que, por alguma razão, um texto se tornou inaceitável, entretanto não pode ser desprezado. A interpretação é uma estratégia radical para a conservação de um texto antigo, considerado demasiado precioso para ser repudiado, mediante sua recomposição. O intérprete, sem na realidade apagar ou reescrever o texto, acaba alterando-o. Porém ele não admite isso. Ele afirma que pretende apenas torná-lo inteligível, revelando seu verdadeiro sentido. Ainda que dessa maneira o texto fique profundamente alterado (outro exemplo notório são as interpretações "espirituais" rabínica e cristã do Cântico dos Cânticos, claramente erótico), os intérpretes afirmam revelar um sentido que já se encontra lá.
Entretanto, nos nossos dias a interpretação é ainda mais complexa. Pois o zelo contemporâneo pelo projeto da interpretação é freqüentemente inspirado não pela piedade para com o texto problemático (que pode ocultar uma agressão), mas por uma agressividade aberta, um claro desprezo pelas aparências. O antigo estilo de interpretação era insistente, porém respeitoso; criava outro significado em cima do literal. O estilo moderno de interpretação escava e, à medida que escava, destrói; cava "debaixo" do texto, para encontrar um subtexto que seja verdadeiro. As mais celebradas e influentes doutrinas modernas, as de Marx e Freud, em realidade são elaborados sistemas de hermenêutica, agressivas e ímpias teorias da interpretação. Todos os fenômenos que podem ser observados são classificados, segundo as próprias palavras de Freud, como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve ser investigado e posto de lado a fim de se descobrir debaixo dele o sentido verdadeiro — o conteúdo latente. Para Marx, acontecimentos sociais como revoluções e guerras; para Freud, os fatos da vida de cada indivíduo (como os sintomas neuróticos e os lapsos de linguagem), bem como textos (um sonho ou uma obra de arte) — todos são tratados como motivos de interpretação. Segundo Marx e Freud, estes acontecimentos parecem inteligíveis. Na realidade, nada significam sem uma interpretação. Compreender é interpretar. E interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato, descobrir um equivalente adequado.
Portanto, a interpretação não é (como supõem muitos) um valor absoluto, um ato do espírito situado em algum reino intemporal das capacidades. A interpretação também precisa ser avaliada no âmbito de uma visão histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, a interpretação é um ato que libera. E uma forma de rever, de transpor valores, de fugir do passado morto. Em outros contextos culturais, é reacionária, impertinente, covarde, asfixiante.
O nosso é um tempo em que o projeto da interpretação é em grande parte reacionário, asfixiante. Como os gases expelidos pelo automóvel e pela indústria pesada que empestam a atmosfera das cidades, a efusão das interpretações da arte hoje envenena nossa sensibilidade. Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.
Mea culpa, mea maxima culpa
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