Meu último post desta série da querela contra a evolução.
Continuando a discussão dos posts anteriores, este post atual recomenda e comenta um texto (já meio antigo, de 2008) do escritor Orson Scott Card: "Creation and Evolution in the Schools".
Uma pessoa pode estar certa a respeito de um dado fato e defender seu ponto de vista de maneira errada -- dogmática e intolerantemente, por exemplo. Isso não contribui para o avanço do debate e o convencimento de partes contrárias; e tampouco ajuda contra aqueles que não estão interessados em discutir, mas apenas em "polemizar" (pra dizer de maneira polida). Por isso mesmo, uma autocrítica ao comportamento de cientistas é tão importante; e o texto de Card linkado acima faz uma enumeração de atitudes que me pareceram desagradavelmente familiares. (Não acho que eu e o Marcelo nos afundamos nelas na discussão do post anterior, mas podem discordar de mim)
À guisa de introdução, devo alertar a certos leitores que Orson Scott Card tem a fama de ser, não necessariamente nessa ordem: mórmom; militarista; anti-homossexualidade e anti-casamento gay. Ou seja, à primeira vista, alguém que pareceria afinado com uma agenda conservadora. Mas, contudo, ele também:
- escreve bem;
- desenvolve raciocínios com clareza;
- é um escritor de ficção científica (escreveu Ender's Game, um livro do qual gostei muito e que gerou um filme que será lançado em breve)
Dá pra ver que é uma figura complexa, como mostra esta entrevista aqui.*
Bem, eis os sete pontos que ele levanta nas reações de "Darwinistas" (é assim que ele chama) ao "Intelligent Design":
1. Intelligent Design is just Creation Science in a new suit (name-calling).
2. Don't listen to these guys, they're not real scientists (credentialism).
3. If you actually understood science as we do, you'd realize that these guys are wrong and we're right; but you don't, so you have to trust us (expertism).
4. They got some details of those complex systems wrong, so they must be wrong about everything (sniping).
5. The first amendment requires the separation of church and state (politics).
6. We can't possibly find a fossil record of every step along the way in evolution, but evolution has already been so well-demonstrated it is absurd to challenge it in the details (prestidigitation).
7. Even if there are problems with the Darwinian model, there's no justification for postulating an "intelligent designer" (true).
Para ver o desenvolvimento das críticas, veja o texto completo; vale a pena, mesmo discordando de certos aspectos. O que me interessa destacar no texto pode ser resumido nestes três pontos: 1) ele coloca a evolução biológica como um fato; 2) considera que os problemas na explicação darwiniana existem mas admite que eles não justificam automaticamente a postulação de um "designer"; e 3) defende que tanto "darwinistas" quanto defensores do ID estão se comportando de maneira religiosa na defesa de seus argumentos, não reconhecendo fragilidades e incertezas básicas nos próprios conhecimentos.
Recomendo a leitura do texto e, também, do verbete sobre o ID na wikipédia (que é surpreendentemente bom, na minha opinião).
Para quem leu, vou me limitar a duas ressalvas gerais:
1. A "falácia das falsas simetrias": comparar, como Card faz, os defensores mais virulentos do darwinismo com religiosos e etc. é um lugar-comum por demais repisado pelos conservadores; embora, verdade, o comportamento dogmático e irrefletido não seja tão raro no meio científico, como em nenhuma área de atividade humana. Uma citação do que chamo de "falsa simetria":
That's the problem with both sides in this squabble. They are both functioning as religions, and they should stop it at once.A falácia da falsa simetria é a de apresentar oponentes como equivalentes quando, na verdade, não são -- no caso, querer falar do ID e da biologia evolutiva como se fossem ambos posições científicas cujos defensores estivessem se comportando religiosamente: o que, atrás da falsa aparência de "ponderação" equânime -- "oh, há intolerantes dos dois lados!!" -- trata-se de um discurso que abona unicamente um dos lados. Afinal, sabe-se da ligação do ID com idéias religiosas; reconhecê-lo como ciência é que é o verdadeiro ponto polêmico -- ponto que é simplesmente "dado de barato" por Card.
If both sides would behave like scientists, there wouldn't even be a controversy, because everyone would agree on this statement:
Evolution happens and obviously happened in the natural world, and natural selection plays a role in it. But we do not have adequate theories yet to explain completely how evolution works and worked at the biochemical level.
O final da citação, que destaquei negrito, me leva à segunda ressalva:
2. Diferenciar "Criacionistas" (ou, melhor dizendo, a "Creation Science") de adeptos do "Intelligent Design", defendendo que estes últimos NÃO negam a existência de evolução, só julgam que a explicação meramente mecânica dada pelo "darwinismo" não é suficiente. Bem, essa diferenciação aparentemente razoável não cola muito pra mim. E por que? Porque a única discussão mais séria e longa da qual participei que mencionou o "Intelligent Design" (nos posts anteriores) tomou um caminho muito diferente. Quem leu essa discussão poderá ver que o antagonista A.F.B. estava claramente negando a afirmabilidade científica da existência de evolução.
E está bem claro para mim que a imensa maioria dos polemistas conservadores, ao citar o "Intelligent Design" o usa, na verdade, para tentar conferir algum tom científico ao tipo de argumentação "Criacionista" no sentido (negativo) que o próprio Card dá ao termo.
Card, por sua vez, não chega a fazer exatamente isso: mesmo falando que a ciência evolucionista atual ainda não tem explicação para muitas coisas -- como, p.ex., como o processo evolutivo se dá efetivamente em nível químico (e aí deixo pra quem sabe mais que eu discutir com Card) -- ele admite que a existência de evolução de espécies é um "fato científico" praticamente inegável (como eu disse, knows some shit pelo menos).
Mas... no mesmo texto ele diz que, a bem do debate e de se evitar o dogmatismo que acometeria os próprios evolucionistas, o ID deveria ser ensinado nas escolas porque NÃO nega a evolução e tem, sim, defensores e argumentos científicos.
Colocado assim, isso parece até razoável, não? Mas é aí que meu sentido aranha se encrespa.
Convenhamos: dizer que "the Designists are not anti-evolution. They are anti-Darwin" não convence muito... mesmo. Até porque, como mostram os posts anteriores, nessa querela, há um preocupante histórico de falácias, uso indevido de dados, jogos retóricos e mesmo mentiras descaradas.
(Porra, a estratégia da cunha é um fato declarado por seus defensores, não uma caricatura da oposição.)
Agora, ao final, pode-se perguntar: que mal faria deixar adotar uma abordagem dupla em escolas? Ensinar também o ID? O mal é que, queridos, o ID não tem status científico. Nem de longe. Simples assim.
Evolução darwiniana não virou parte do currículo escolar do nada: passou por décadas de estudo, pesquisa e bombardeios incessantes até ser adotada no currículo normal (sendo que, nos EUA, foi probida por motivos religiosos em alguns estados até algumas décadas atrás). A escola fundamental sempre pega o rescaldo resumido do que já é bem aceito e estabelecido -- e potencialmente ultrapassado -- no meio científico. E dificilmente tem como ser de outro jeito, a não ser que as escolas conduzam suas próprias pesquisas.
A questão é: a todo momento vemos polêmicas e novidades teóricas surgindo nas ciências; elas vêm e vão, algumas surgem, entram na moda e depois caem; e outras acabam por substituir o paradigma dominante de sua área. Só que, veja só: a primeira preocupação daqueles que propõe novidades teóricas nunca é a de incluí-las o quanto antes no currículo fundamental. É a de testá-las e procurar estabelecê-las como consenso entre seus pares através do acúmulo de evidências.
Pois bem: o fato dos defensores do Intelligent Design quererem especificamente "pular" a fase de validação científica e se focar diretamente na defesa de seu ensino para crianças e adolescentes mostra claramente o quanto suas intenções são ideológicas e políticas muito antes de serem científicas; e que procuram na arena político-religiosa e no público leigo um apoio coletivo que não conseguem ter por seus próprios méritos científicos.
(Não são os únicos no mundo das ciências e pseudociências que fazem esse tipo de manobra, obviamente; mas são um dos que fazem isso de forma mais barulhenta.)
*Sobre a entrevista citada: embora me identifique mais com as certas posições de esquerda da entrevistadora, tenho ressalvas a sua interpretação um tanto passional e direcionadora. Tem momentos em que ela mostra certa má-vontade e sarcasmo para com as posições de Card, ao invés de tentar entender melhor o tipo humano que emerge dali. (Mas há horas que é complicado mesmo, especialmente no final, quando o próprio Card começa a atacar)
** Tive prazer em ver que a analogia do "Cavalo de tróia" já tinha sido usada antes, inclusive em estudo longo sobre as estratégias de institutos como o Discovery, o Creation Institute e correlatos para dar status científico ao criacionismo e colocá-lo nas escolas: Creationism's Trojan Horse: The Wedge of Intelligent Design.
(Interessante: é um livro de Oxford. Ainda estou esperando para ver os alegados "antidarwinistas sérios" de lá.)